As características físicas dos habitantes da Partida
são semelhantes às da generalidade dos portugueses, sem qualquer
particularidade digna de registo.
Quanto à sua atitude mental é difícil reduzi-la a uma
fórmula única. Orlando Ribeiro no «Guia de Portugal», III Volume, «Beira
Baixa», afirma que o temperamento dos habitantes é por toda a parte afável,
confiável e acolhedor. Por longas caminhadas ao sol ardente, pode o viajante
entrar às casas, beber água do asado e quedar-se à fresca, no paleio com o
lavrador que descansa do jantar ou a moça ou mulher sentada ao tear. Se não
comeu, repartem com ele de boa vontade, e se no caminho topa com um homem ou
mulher trazendo cesto de fruta logo o põem no chão e, com simplicidade e
nobreza, oferecem do que levam. O camponês da Arraia ou do Campo, ou até o
pequeno lavrador que arrenda coutos e semeia folhas de trigo, conserva o
essencial destas virtudes antigas. Onde, porém, elas se deparam na maior pureza
é nos charnecos e ratinhos das pobres terras de xisto, gente de proverbial
honradez, que não mente, que não toca no molho de lenha ajuntado por outro à
beira do caminho solitário, que ousa deixar a chave da adega ou do celeiro
escondida num buraco da porta a que todos conhecem o sítio».
A franqueza
parece ser de facto uma característica da gente da Partida, que é expansiva e
aprecia sobremaneira a convivência social.
Os homens, sempre que podem, juntam-se nas tabernas,
onde conversam e bebem, juntando-se em «sociedades» de ocasião. É criticado um
homem que entre numa taberna e beba só. O normal é juntarem-se vários, havendo
o hábito de cada um pagar pelo menos uma «rodada», isto é, um copo de bebida
para cada um dos que fazem parte da «sociedade». É até talvez este o motivo por
que alguns homens bebem frequentemente demais: integrar-se numa «sociedade»
grande é o primeiro passo para se beber em excesso.
A esta sociabilidade parece associar-se, contudo, uma
certa independência que se manifesta em certos modos de comportamentos
habituais e ocasionais. Assim, por exemplo, não há notícia de alguém da Partida
ter feito vida de mendigo. As poucas pessoas que têm tido necessidade de viver
da caridade pública, são espontaneamente auxiliadas pelos vizinhos da terra, de
modo a não terem que mendigar aqui e muito menos noutras terras.
Um acontecimento revelador da atitude mental que
acabamos de referir verificou-se há pouco tempo, quando o Reverendo Padre
Manuel de Oliveira Campos que aqui esteve a residir durante alguns anos, foi
transferido para outra paróquia e a Partida ficou novamente entregue ao pároco
da freguesia. Como protesto da transferência daquele sacerdote, que foi sentida
como um recuo no processo de emancipação em relação à sede de freguesia, a
população da Partida, em massa, recusou a assistência religiosa que o pároco
quis prestar-lhe, não assistindo uma única pessoa às missas que ele aqui veio
celebrar aos domingos, durante alguns meses, e pedindo a assistência de
sacerdotes de outras freguesias para casamentos, enterros, baptizados, etc.
Houve até enterros sem a assistência dum padre, o que representa um enorme
sacrifício para os familiares dos falecidos. Esta espécie de greve religiosa manteve-se durante mais
de dois anos e só terminou quando aqui ficou colocado outro sacerdote, que
ainda cá se encontra.
Por outro lado desdenha-se dos habitantes das aldeias
vizinhas, havendo alcunhas a alusões zombeteiras para quase todos eles: os de
S. Vicente são «piolhosos»; os dos Pereiros são «quadrasanhos»; os da Paradanta
é «onde a fome se canta»; Alcains é a «terra dos cães»; diz-se «se vais ao
Castelejo vens de lá andarejo», «se vais ao Souto da Casa , partem-te lá uma
asa»; «se vais à Enxabarda põem-te lá uma albarda»; etc.
Sobretudo em relação aos habitantes da sede de
freguesia, é manifesto o desdém com que se lhe referem que é, aliás, comum a
outras terras da região. «Cães da Vila, chamam os do Louriçal do Campo aos de
S. Vicente da Beira» (Dias, Jaime Lopes - «Etnografia da Beira» Vol. V, Lisboa,
1929, p. 192). Este sentimento da generalidade dos habitantes da região para
com os de S. Vicente da Beira é muito antigo, pois vem do tempo em que esta
aldeia era sede de concelho, que foi extinto nos fins do século passado,
precisamente devido a um levantamento geral da população das anexas e
freguesias da sua jurisdição, que convergiram para a vila num dia e hora
previamente combinada e queimaram todos os papéis da Repartição da Fazenda. Já
neste levantamento a Partida desempenhou um papel muito activo.
Embora não seja talvez tão rígida como em outras
comunidades rurais, também aqui se verifica uma divisão sexual do
trabalho. Cada sexo tem os seus
trabalhos tradicionais. Assim, por exemplo, o homem lavra, cava, roça mato,
colhe azeitona, poda oliveiras e outras árvores, mata e abre o porco, etc. e a
mulher executa os vários serviços domésticos e algumas tarefas agrícolas mais
leves, tais como sachar, regar, plantar e semear hortaliças, etc. (…) A criação
de porcos à pia é também uma tarefa
das mulheres, que ainda executa todas as operações de fabrico do enchido e lava
das tripas. O homem mata, abre e salga os porcos.
A mulher da Partida não lavra. Também não entra numa
taberna para beber e, se alguma vez tem de lá ir chamar o marido, não se detém
(…).
Ao contrário do que poderia esperar-se dum certo
sentimento de superioridade da população da Partida, a integração de elementos
estranhos, por motivo de casamento ou outro, é geralmente fácil. Em pouco tempo
estes elementos passam a ser tratados como se fossem naturais daqui, não sendo
alvo de quaisquer atitudes segregacionistas.
A íntima relação que existe entre as actividades
agrícolas a que se dedicam e o ritmo da natureza, obriga os habitantes da
Partida a dedicarem uma atenção especial ao tempo. Se bem que sejam conhecidas
e muitas vezes mencionadas as estações do ano, também é frequente a designação
dum determinado período do ano pelo nome dum Santo que nele se venere ou festa
que se celebre, como é o caso do «S. Miguel» que designa a primeira metade do
Outono. Outras vezes é associada a época do ano com os principais trabalhos
durante ela realizados, dizendo-se no «tempo das sementeiras, «no tempo das
malhas», etc.
Os fenómenos meteorológicos, sobretudo, são alvo de
uma particular atenção. As suas causas não são geralmente conhecidas, como é
óbvio, mas as condições em que ocorrem encontram-se muito bem catalogadas, como
se verifica até pelos ditados populares que pudemos recolher sobre o assunto:
«Pastor, pastorão,
Nem de Inverno nem de Verão,
Nunca se larga o gavão (capote com capuz e mangas)»;
«Geada na lama, água na cama»;
«Circo na lua, água na rua»;
«Janeiro quente traz o diabo no ventre»;
«Manhã de nevoeiro, ou muita água ou bom solheiro»;
«Entrudo borralhudo, Páscoa em casa, Natal na praça»;
«São Miguel erveiro, guarda o palheiro»;
«Em Abril ainda a velha queimou o carro e o carril, e
o maior bocado ainda o deixou para o mês de Maio»;
«Se a candieirola chora (2 de Fevereiro, dia de Nossa
Senhora das Candeias) está o frio fora, se se ri, está o frio para vir».
Retirado
de «PARTIDA - COMUNIDADE DA ZONA DO PINHAL NA BEIRA BAIXA»,
de Luís Leitão - Composto e impresso nas
Oficinas Gráficas do Jornal do Fundão, 1991.
Nota: O livro de onde foi retirado este
texto foi escrito a partir de um trabalho académico realizado pelo autor, em
colaboração com Ruy Faria, durante o ano letivo de 1970/1971. Só isso justifica
algumas das posições mais extremadas referidas pelo autor, que naquela altura ainda
existiam entre as gentes das várias localidades à volta de São Vicente.
Felizmente que hoje tudo é bastante melhor; não porque tenha passado o tempo
suficiente para produzir grandes mudanças, mas sobretudo porque o contexto
sociocultural do País se alterou significativamente nas últimas quatro décadas,
potenciando também mudanças em termos das atitudes e comportamentos das pessoas.
M.
L. Ferreira
2 comentários:
Cães:
O meu pai também usava essa expressão, referindo-se a todos os poderosos, não a cada um isoladamente, mas quando estavam ou vinham em grupo, normalmente de fora da terra ou misturados com a elite local.
Por exemplo, os membros da Junta de Freguesia de São Vicente ou um ou mais grandes proprietários locais nunca eram chamados cães. Mas se houvesse um evento que os juntasse, mais ao presidente da Câmara, mais o Governador Civil e o Bispo, então já eram chamados cães. Há nesta expressão a ideia de matilha (de poderosos).
Aplicar-se a expressão aos de São Vicente, é natural por parte dos do Louriçal, pois foi da Vila que lhes vieram, durante séculos, as imposições judicial e fiscal, entre outras.
Boa noite José Prata
Tentei contactá-lo pelo outllook em zear64@hotmail.com .
Chamo-me Maria José Afonso Lopes Ramalho, sou prima do Luis Leitão e sobrinha neta do Tio Júlio Leitão e Tia Ressurreição, pelo lado materno que viveram na Partida. A minha avó morava em S. Vicente, no cimo de vila e eu tenho o seu nome. Vivi em Angola mas frequentei a telescola em S. Vicente. Sou sobrinha neta do Pe. José Assunção Lopes que cuidou da minha mãe (Teresa Maria Afonso Lopes) e dos seus cinco irmãos pequenos, quando o meu avô ( Luís Lopes de S. Vicente) morreu.
Gostaria muito de oferecer os seus livros à minha mãe que tantas saudades tem da infância e das histórias que eu vejo postadas no blog, mas não sei como fazê-lo pois vivo em Faro onde dou aulas ao 1º ciclo.
Aguardo a sua resposta.
Cumprimentos, parabéns e obrigada pelo que tanto me tem deliciado com estas postagens.
Mª José Afonso Lopes Ramalho
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