Há uns tempos, o
Ernesto Hipólito ofereceu-se um livro antigo. Foi a minha leitura deste verão.
Chama-se A Paixão
de Jane Eyre e foi escrito por Charlotte Bronte, irmã da autora do Monte
dos Vendavais. A primeira edição saiu, em Inglaterra, no ano de 1847. A edição
portuguesa não está datada e parece ser de meados do século passado.
A ortografia
é diferente da atual e também da anterior ao acordo ortográfico agora em vigor.
Além dos aspetos visíveis, ainda se usava o ponto de interrogação invertido no
início da frase interrogativa (que não pude reproduzir).
No trecho que
aqui vos deixo, a cena passa-se num colégio de meninas órfãs, propriedade da
Igreja Evangelista local. Decorre uma visita/inspeção do pastor, acompanhado
pela sua esposa e filhas…
Entretanto, Mr.
Brocklehurst, em pé, diante do fogão, com as mãos atrás das costas, passava
majestosamente revista à classe inteira. De repente, piscou os olhos, como se
qualquer coisa lhe ferisse ou chocasse a vista; virando-se, disse com um tom
mais rápido que até aí.
- Miss Temple, Miss Temple! Quê? Quem
é aquela aluna com cabelos frisados? Cabelos vermelhos, senhora, e frisados, todos
frisados?
Levantou a bengala e apontou
êsse horrível objecto; a sua mão tremia.
- É Júlia Severn –
respondeu, com tôda a tranquilidade, Miss Temple.
Júlia Severn, hem? E porque
frisou ela os cabelos? Porque razão, apesar de todos os princípios e regulamentos
desta casa, uma casa evangélica, um estabelecimento de caridade, procede ela
como se estivesse lá fora, no mundo? Aqui não se querem caracóis!
- Os cabelos de Júlia são
assim mesmo, naturalmente encaracolados – respondeu Miss Temple, ainda mais tranquila.
- Naturalmente! Sim, mas nós
não nos devemos conformar com a natureza; quero que estas meninas sejam filhas
da Graça. E depois, porque tanto cabelo? Já disse, e torno a dizê-lo, que quero
os cabelos penteados, com modéstia e simplicidade. Miss Temple, é preciso
mandar cortar os cabelos a essa menina: mandarei amanhã um barbeiro. E estou a
ver aqui outras com excesso dessas excrescências. Aquela crescida, diga-lhe que
se volte. Diga à primeira divisão que se levante. Que se virem tôdas para a
parede.
(…)
- Êstes carrapitos têm de
ser cortados.
Miss Temple pareceu
discutir.
- Minha senhora, -
prosseguiu êle – sirvo um Amo cujo reino não é deste mundo: a minha missão é
mortificar nestas raparigas as vaidades da carne e ensinar-lhes a vestirem-se
com modéstia e sobriedade, e não a trazerem os cabelos enfeitados com ricos
atavios. Cada uma das raparigas aqui presentes anda penteada como se a vaidade
em pessoa a tivesse arranjado por suas mãos. Repito: êstes cabelos têm que ser
cortados; pense no tempo perdido…
Aqui, Mr. Brocklehurst foi
interrompido pela entrada de três senhoras. Pena foi que não tivessem chegado
um momento mais cedo, para ouvirem êste sermão sôbre os adornos, pois vinham
admiràvelmente vestidas de veludo, sêdas e peles. As duas mais novas (duas
lindas raparigas de dezasseis a dezassete anos) traziam feltros cinzentos; à
moda de então, enfeitados com penas de avestruz e, sob os graciosos chapéus,
viam-se-lhes as tranças e os caracóis; a mais velha das três vinha envôlta num
rico chaile de veludo enfeitado de arminho e com uma franja de cabelos postiços
tôda encaracolada.
As senhoras foram recebidas
com tôda a deferência por Miss Temple (eram Mrs. e Misses Brocklehurst) e
conduzidas aos lugares de honra, ao fundo da sala.
José Teodoro Prata
Um comentário:
Como dizia o outro: “Bem prega Frei Tomás… “.
Esta cena passou-se há muitos anos, mas mantém-se atual. Ainda hoje, aqueles que mais apregoam a moral e os bons costumes são muitas vezes os que mais pecam, e vivem sem quaisquer sentimentos de culpa.
Amigo Ernesto, como vês isto sem ti não é a mesma coisa. Faz-nos falta o teu bom humor e, já agora, os teus “miminhos”…
M. L. Ferreira
Postar um comentário