domingo, 29 de janeiro de 2017

Conversas na Vila

Era mais uma manhã escura de janeiro. Na vila, fazia frio e chovia. Corria um daqueles invernos habituais, longos e modorrentos com chuva miudinha e persistente. Com a humidade excessiva, os quintais, à ilharga das casas, onde se acumulava o estrume dos animais, que se acomodavam na loja, por baixo ou ao lado das habitações, tinham um cheiro peculiar a decomposição, pouco agradável! O tempo passava lento, com aquele assardaniscar do carujo a ensopar a terra, mas a fazer crescer as águas freáticas e a ribeira, o que era bom!
Mas certo é que, com o tempo que fazia, a vida nas fazendas era muito agreste. Mesmo assim, todos se levantavam logo pela manhã cedo, ainda ao lusco-fusco.
A mulher punha o almoço em cima da mesa da cozinha. Comiam as migas ou as sopas de leite ou o feijão pequeno e, ala que se faz tarde! Com o almoço na barriga, os homens lá iam, casaco pelas costas, para se protegerem da humidade e do ar frio da manhã, dar o almoço aos vivos, que já faziam a chinfrineira matinal com a fome. A burra zurrava assim que ouvia a voz do dono e os porcos cuí, cuí, pediam também o almoço! A manhã avançava e andavam por ali, entretidos, a dar as forragens secas ao gado, guardadas desde o último verão. Ração de feno para ovelhas e cabras. Palha triga e caneirões de milho para os animais de carga e de tiro.
— Raio de tempo este que não deixa fazer nada nas fazendas! — disse Bernardo Garrancho, de si para si, arreliado com a invernia que tudo trazia enchapuçado!  — As fazendas querem ver o dono todos os dias! E ninguém as trata melhor! Por isso, lá diziam os antigos, “Quando o dono morre, as fazendas vão com ele!”
Por vezes passava ali pela porta da loja um vizinho ou mesmo um conviva habitual dos domingos à tarde, na taberna:
— Bons dias nos dê Deus!
— Tu por aqui, Tonho?! Tu que moras da praça baixo, aqui no cimo de vila a esta hora?! Anda por aí passarinho novo!
O seu nome era António Dias, mas os amigos chamavam-lhe Tonho Racha! A alcunha vinha-lhe de repetir muitas vezes na roda de conversadores, na praça ou na taberna, sobretudo quando já estava com um copito: “Se for preciso, racha-se já um diabo!” Apanharam-lhe o ponto! Mas lidava bem com a alcunha que, afinal, não lhe arrancava nenhum bocado! À provocação de Garrancho respondeu:
— Ná! Não quero, nem tenho idade para isso! A minha mulher tem feito vir muitos ao mundo porque … é a parteira da terra!
— Bem sei! E que tem isso?!
— Tem que, para alvoroço de crianças, já basta as que tenho, que são minhas e dela e as dos outros que ela vai ajudando a nascer! 
— Então e depois?!
— Depois, é que vim só a dizer ali ao João Jarêto para falar com o patrão a ver se me pode ir lá dar uma jeira daqui a um mês ou dois, à entrada da primavera. Tenho a fazenda do Vale de Caria com o mato a querer avançar para um leirão que este ano quero semear de batata. Aquilo tem que ser atalhado quanto antes. Senão, os vizinhos vá de me censurarem a dizer que ali não entra ferro de enxada nem charrua! E, como bem sabes, a semente quer mudar de terra de vez em quando, senão deixa de luzir! Olha lá, ou!... Mas, que andas tu a fazer, Bernardo?!
— O que hei de andar a fazer, Tonho? — respondeu Bernardo Garrancho. — Com o tempo como tem ido, ando aqui a dar de comer à burra e aos bácoros, porque as cabras, essas, estão sempre na serra. O meu neto, que pode bem melhor que eu, ainda hoje tem que dar lá um salto para lhes dar a ração, apesar do tempo que faz! Tenho lá ainda as galinhas e os coelhos que também estão sempre a reclamar a sua parte. Na semana passada a raposa fez-me lá estragos! Escavou um buraco por baixo da parede de madeira e rede do galinheiro, conseguiu entrar e matou-me meia dúzia de galinhas, o estupor! Aquilo deve ter sido um desassossego! Mas quê?! Se é no verão, estamos a dormir lá ao lado, em casa, e podemos acudir logo que haja alarido nos animais. De inverno vimos a dormir para a vila e é o que se vê! Já viste como vai este ano que ainda há dias começou?! Um alagoeiro que alto lá com ele! Nada se pode fazer que as terras não estão capazes!
— Deixá-lo — retorquiu Tonho Racha. — Uma temporada assim é boa para as couves negras e, sobretudo, para as nascentes. Sem elas como é que, no verão, regamos as batatas, os tomates e as alfaces?! Sofremos esta inclemência, se é que podemos assim chamar-lhe, mas a partir da primavera, vamos gozar o que agora estamos a amargar! E lá diz o ditado: “Quem manda, pode”!
S. Pedro, que era quem podia, não estava a colaborar. Aquela invernia ensopava tudo!
— Mas — acrescentou Tonho Racha — volúvel, é a oração do crente! Agora quer chuva, logo quer sol e calor! Por isso é que o santo decide como lhe apraz, sem atender aos rogos dos homens!
O resultado ver-se-ia na primavera, com a natureza a rebentar, prenhe vida.
O “casarão”, assim designado pela família, era a loja térrea dos animais em casa de Garrancho, onde os dois amigos se encontravam em amena conversa. Espaço em parte coberto pela “casa velha”, também assim apodada pela família e, em parte, a céu aberto. Tinha um portão largo que dava diretamente para a rua, por onde entravam as carradas de mato e carqueja, mas também o feno, a palha e os caneirões para o gado, no inverno. E de onde saía o estrume para todas as fazendas que ele cultivava.    
— Mas, ó Tonho — disse Bernardo Garrancho — tenho aqui um barril de tinto na loja. Está ali a ouvir a conversa! Vai um copinho? Olha que é de boa vontade!
Tonho Racha era um grande apreciador de aguardente, a sua bebida preferida pela manhã cedo, logo que se levantava! Depois, durante o dia, passava tanto para o vinho tinto como para o branco! Dizia que nunca fora homem com preferência por qualquer cor! E nunca recusava um copo à porta de uma adega, desde que fosse cheio de uma bebida da família da uva fermentada.
— Se vai?! Homessa! Ó Bernardo, isso nem se pergunta! Um homem, para ser um bom cristão, nunca deve recusar um copo de vinho! É como se fosse uma obrigação e até um preceito da nossa religião! Na adega, como na missa, há de beber-se sempre vinho! — riram!
Bernardo Garrancho estendeu-lhe o copo de meio quartilho que Tonho levou à boca e bebeu sem descansar.
— Aaah! — fez de satisfação!
A seguir a um copo foi outro, que Garrancho gostava de tratar bem os amigos! E Tonho Racha não se fez rogado.
— Já fui a muitas adegas cá na vila a provar o deste ano — disse — e olha que este é um dos mais bem apaladados! — concordaram os dois!
— Espera! — disse Garrancho — tens ainda que beber mais um. Vou ali à salgadeira buscar um bocado de presunto para acompanhar.
Veio um pedaço de presunto. Febra bem curada de sal, com uma tira de gordura entremeada para não saber a seco! Mas Bernardo foi ainda buscar um bom naco de queijo de cabra curado que a mulher era hábil em fazer e metade de um casqueiro!
— Mau, ó Bernardo, não me estejas já a arranjar o jantar! Olha que ainda é muito cedo! Ainda agora é de manhã!
— Nada disso. Hoje já comeste o almoço?
— Bebi só um copo de aguardente com passas de figo.
— Ora então aí tens! Isto é apenas uma bucha para aconchegar. Toca a comer e a beber!
Depois, aproveitaram para conversar sobre a agricultura e as sementeiras. Como é que ia o tempo, como é que não ia. Se andava bom para as colheitas, se não andava. E mal se descuidaram estava a chegar a hora do jantar. Despediram-se com mais um copo para a sossega!
Não fossem os afazeres com os animais nas lojas e os amigos para o palratório e estes homens andariam ali por casa a rebolar, sem nada produzir, como que a morrinhar ou sentados à lareira. Quando assim era, uma dormência tolhia-lhes o corpo habituado que estava à exercitação diária do trabalho. As pernas entorpeciam. Depois, levantavam-se e iam ao janelo da cozinha, encostavam-se à vidraça a olhar o horizonte. Lá fora, via-se a invernia muito agarrada que acaçapava todo o vale onde se situa a vila, ao fundo da encosta da Gardunha. E depois punham-se, absortos, a ver cair a água dos beirais, mesmo ali nas casas defronte. O regato à roda das parede de ambos os lados da calçada lá ia, rua abaixo, com pouco mais que uma chisca. Com as trovoadas e aguaceiros é que a valeta, pouco profunda, não podia conter o caudal que extravasava para a calçada.
Mas muitas vezes os homens, nestas manhãs molhadas, também iam para a taberna fazer sociedade. Bebiam, riam em voz alta, jogavam as cartas, ao tanguinho ou ao burro. Falavam dos negócios do gado, da vida agrícola e contavam passagens para matar o tempo. E assim passavam a maior parte destes invernos feios e mortiços, sem nada poder fazer!
Inverno rima com inferno!
Seria isto uma grande verdade, não fosse certo que a água é um bem precioso que não podemos dispensar e que torna a natureza úbere!
Eram estes homens, prisioneiros da sua própria condição, que vinham às portas das lojas, das casas ou das tabernas. Olhavam, impotentes, o cinzento carregado do firmamento, enquanto a chuva fazia o seu caminho do céu à terra, aspergindo-a vagarosamente como uma canção dolente!

Nota: neste texto foram utilizados termos ou expressões regionais ou locais.  

José Barroso 

3 comentários:

Anônimo disse...

O tempo, tal qual como por estes dias: frio, e modorrento, com chuva miudinha e persistente. As vontades, também as mesmas: ainda há dias, que nos valesse S. Pedro; hoje já toda a gente está farta de água, que não se pode fazer nada fora de casa. Tem razão o Santo, que sem sol e sem água nada cresce. E sabedoria também, que os homens precisam de tempo de descanso, de conversa e uns copitos com os amigos.
Boas lembranças me trouxe este texto dos tempos de morrinha da infância!
E recuando à fotografia do casamento, penso que só os noivos poderiam esclarecer definitivamente a sua identidade e por isso já tinha desistido de tentar esclarecer o enigma. Mas hoje fui à Vila e, numa última tentativa, mostrei a fotografia à senhora Maria de Jesus do Nita e à irmã. Tanto uma como a outra disseram logo que era o primo Manel e a Eugénia. Identificaram mais algumas pessoas e até lhes pareceu que o rapaz da gorra, à direita, seria um dos irmãos Francisco (pai do Hélder) ou José (marido da Maria José Passaraça) e a senhora mais alta ao lado da noiva seria a Mercês Patanucha que ainda vive na Partida.
A ser verdade, o casamento terá sido no ano de 1954 e o noivo terá morrido em 1960. Ou então nada disto é verdade e a rapariga à frente da Graça é mesmo a Carmelinda…
M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Um bom retrato dos dias vagarosos das invernias: os gestos lentos, os cheiros e os sons dos animais, a humidade a entranhar-se em tudo, o ter tempo para dar importância aos pormenores, como levar o amigo ao pipo e partilhar uns copos e a bucha.

Anônimo disse...

O Ti Bernardo era um homem muito sociável, generoso e muito afetuoso, que gostava para além de "vender jogo" com os amigos, como bem narra o texto, dum copinho em boa companhia.
Por volta dos 80 anos uma das noras apanhou-o aos beijinhos na avó, o que se tornou tema de conversa recorrente na família e tinha sempre qualquer coisa ao lume para mordiscar nos dias, como o de hoje, em que a humidade se entranha até aos ossos e para acompanhar o copo.
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