segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Nos bancos da praça

— Já vou estando velho! — disse Chequim da Oles para os companheiros, como princípio de conversa, naquela tarde. — E, passados todos estes anos, ainda não atinei com a resposta!
Era conhecido por aquele nome por ter nascido nas casas da Oles. Toda a sua mocidade foi trabalhar e guardar gado nas terras baixas e férteis daquele sítio. Mas herdara a casa que os pais tinham na vila! Os que estavam com ele, sentados no banco da praça, ouviram o que tinha dito e olharam-no. Não percebiam o que queria ele dizer com aquilo!
— Que estás tu para aí a relatar ó Chequim?! Parece que estás arloucado! Vê lá se falas com’é dado, de maneira que a gente te entenda! — interveio o Zé Canhoto. Canhoto, por ser esquerdino, já se vê! Aproveitara um momento de pausa dos fregueses e viera à praça dar fé do que se passava. Mas podia continuar a vigiar a porta da sua taberna, ao fundo da igreja, que deixara aberta! — Picou-te o moscardo ou estarás tu a esgrouviar da cabeça, meu dialho?
— Por que raio teriam eles feito aquilo? — continuava a perguntar, de viva voz, o Chequim da Oles ao adjunto de tagarelas. Mas fazia-o como se não esperasse resposta.
Não era burro de todo. O pai ainda o mandara aprender algumas letras com o Padre José David dos Reis. Onde é que isso já ia!...
Muitos lustros passaram! Quem o queria ver agora, já bem entrado nos anos, era sentado na praça, a dar dois dedos de conversa a outros da sua igualha e com idade do mesmo quilate!
— Certas idades, convidam a novas vidas! — tinham-lhe zumbido aos ouvidos.
— Vós falais que nem doutores, falais. — teria dito. — Isso soa bem à rapaziada nova, como diz o outro! Mas é de mau agouro para os que por cá andam há muito!
Lembrava-se dos tempos da sua juventude, quando era cachopo novo, todo cheio de nove- horas!
— Dali, já só para a quinta das cruzetas! — pensava, em voz alta, quando via os velhos da vila, sentados nos bancos ou no muro da praça, encostados às pilastras.
Nessa altura andava a zurzir segredos de bem-querer ao ouvido das cachopas. Acabou por casar com a Rosária das Lameiras. Boa moça e de alguns haveres. Veio a herdar, por sua banda, algumas courelas e um bom pedaço de pinhal. Juntas às dele, davam umas boas jeiras em ricas terras aráveis e tinham lenha para as invernas. Punham pé nas baixas junto à ribeira, depois, também, nas Lameiras, na Fonte da Portela, nos Aldeões e na Serra. Com boas e abundantes colheitas hortícolas, fruta, batata, milho, azeite, vinho, trigo, centeio e pasto. Praticamente tudo! Governava a família e tirava das fazendas o sustento para o gado miúdo, rebanhos e animais de carga.  
Tiveram doze filhos! Seis machos e seis fêmeas. Sãozinhos e escorreitos, que os benzera Deus! Era vê-los a espigar e a calcorrear paredes e cômoros atrás das cabras e das ovelhas e à frente dos bois, a guiá-los, nas lavradas, com o pai na rabiça do arado! Aquilo era rapaziada de ímpeto e vivacidade que nem as ondas do mar alteroso!
— Uma dúzia de filhos, ó Chequim! Assim é que se vê quem é que tem… unhas! — diziam-lhe os amigos, a mangar e com uma pontinha de malícia!
— Tende lá tento na língua rapazes, que eu bem sei o que vos vai nessa mente corrupta! — ripostava sem se abespinhar. — Mas perdoe-vos Deus metade da vossa maldade, almas do dialho, que eu vos perdoo o resto. Não quero, um dia, ser responsável por entrardes com a consciência pesada na eternidade! — disse-lhes.
Mas o tempo fora-se, impiedoso! D’abanão, mal deu por ela, encontrava-se ele nos bancos da praça, no lugar da provecta gente de outrora.
— Cá na vila, já não há velhos como dantes! — mal se ouvia dizer no soalheiro.  
— Ele há coisas! Criaturas com a maluqueira que o tempo apenas vai fluindo para o vizinho!
Parecia-lhes que os velhos eram sempre os mesmos que por ali costumavam ver sentados nos bancos. Na verdade, todos tinham cabelos já muito ralos e brancos. E ostentavam, na face, profundas gaivas, que os tornavam semelhantemente uniformes para a morte! — Como diz o santo a respeito do pecado: “Veem o argueiro no olho do próximo mas não veem a tranca no seu próprio olho!” Se calhar é por não terem ângulo de visão! — riam.
Esperem-lhe pela volta!
— Não há velhos? Há sim senhor! Então, os velhos agora somos nós! Nós é que vamos ocupar os bancos da praça onde eles se sentavam antigamente! — sentenciavam. E com razão!
— Cada um tem que estar onde manda a idade! — falava a experiência pela boca de Bernardo Garrancho que, entretanto, interviera na conversa. A alcunha deste, vinha-lhe de ter o dedo indicador direito curvado em gancho. Devido a um ferimento, em consequência de um acidente de trabalho, o dedo sarara naquela posição e não mais voltara a endireitar-se!   
— É assim mesmo! — ripostaram-lhe.
Fossem lá pedir agora ao Chequim da Oles, para cavar um bocado de vinha! É o cavas! Já não tinha genica nenhuma! Isso era dantes! Ah! caraças! Levantava-se de manhãzinha, ia cortar um molho de mato, ougava-o, trazia-o às costas para a furda e traçava-o, tudo em menos duas horas! Outros tempos!
Mais tarde, já casado, a família crescera, a vida, graças a Deus, melhorara e pôde atirar-se, a custo, à compra de um carro e uma junta de bois, com que passou a ir ao mato e à lenha, acompanhado dos dois filhos mais velhos. Duas sonaves que alto lá com eles, como se podia ver pelos ombros forçudos e pela grande chave das mãos de que, na vila, poucos se podiam gabar.
Mas Chequim tinha trazido à conversa, naquela tarde, um pensamento:
— Farto-me de matutar por que raio teriam eles tirado o concelho à nossa terra?! — disse, esclarecendo, enfim, a curiosidade dos circunstantes. — É o demonho duma pergunta que fiz toda a vida!
Para onde fora a câmara, o tribunal, o notário-tabelião e os registos, que cá estiveram tantos séculos e que tanta falta nos faziam?!
— Dizem que os ricos não queriam cá o concelho porque, quando quisessem tratar dos seus assuntos bem podiam fazê-lo, indo de charrete, refastelados, a Castelo Branco! Gente rica! Vai lá, vai… É mais fácil passar um camelo…
— Ah! Finalmente percebe-se a tua inquietação e compreendem-se agora as tuas perguntas! — declarou Adelino Cansado que até ali estivera sem bulir um som.
Ao contrário de muitos dos do seu tempo, Chequim da Oles sempre tivera o bichinho de se incomodar com os caminhos que ia trilhando a comunidade vicentina. O que nos reservava o futuro com os dias cada vez mais sombrios que se atravessavam. O assunto, achava ele, devia interessar a todos! Mas era como clamar no deserto! Não compreendia por que é que os seus companheiros de ajuntamento não se interessavam por coisas tão importantes.
— Cedo percebi que fomos uma terra de grandes pergaminhos. A nossa vida, no correr do ano, estava cheia de datas assinaladas!
Ah! Caramba, havia grandes acontecimentos nas Festão de Verão, no Natal e na Páscoa. Enormes procissões do Senhor Santo Cristo e do Enterro do Senhor. O pálio estava reservado aos homens mais importantes da vila! Hoje andam ó tio, ó tio, a perguntar quem lhe quer pegar! — disse para o adjunto. Não teve repercussão naquelas cabeças toscas.
— Tinham alguma consciência coletiva ou andavam no mundo por ver andar os outros?! — intrigava-se. E começou a vociferar:
— Vocês destas coisas não querem saber! Só vos interessa as vossas leiras e beber copos na taberna! Do resto não vos acusa a consciência! — continuava no seu solilóquio. — Por isso chegámos ao que chegámos!
Os outros nada opinaram sobre o assunto que há muito o afligia. Lá lhe pareceu que estavam desatentos, talvez a pensar nas vindimas do fim do verão que se aproximava, que era o que concretamente mais lhes tocava. Vai daí, arreliou-se:
— Mas, que diabo! Ninguém quer falar da nossa terra? Vocês parece que estão mortos! Mortos!
— Ali o Tonho Insonso só dorme! — e apontou para a extremidade do banco. — Já parece o Tonho da Lija que tem a doença do sono! Ó Tonho picou-te a mosca ou estás a remoer as couves?!   
Com a algazarra, o Tonho Insonso, acordou! Cerrou as mãos em punho, meteu os indicadores dobrados nas covas dos olhos e esfregou-os! Estava modorrento e como não discernia muito bem, Chequim da Oles atirou de través, entre dentes, aos companheiros de conversa, como quem lança um osso a sete cães:
— Este alma de chichentes faz justiça à alcunha que lhe puseram! Parece que não tem sal! Sim senhor! Ora com fêto! Se calhar, por isso, é que nunca arranjou mulher!
Todos gargalharam com a tirada. Mas ele ainda ouvira parte do comentário. E a zombaria era como se esses cães o mordessem, fundo, no ego!
— O que foi?! Que berraria é esta?! — disse, finalmente, confuso, o pobre homem. Tinha a certeza que chasquearam dele e que lhe tinham chamado ruminante. Mas, optou por nada dizer, que era homem cordato e boa pessoa, lá nisso todos concordavam!...
João Jerolme, outros dos presentes, que tardava em se juntar à conversa, aproveitou um avo de compasso de espera e retomou o assunto do Chequim da Oles:
— Não te assanhes, ó Chequim! Se bem estou a perceber, estás a meter-te em política! — disse. — Olha que isso, nestes tempos, não é coisa boa, meu homem! — confidenciou-lhe, paternalmente, como mais velho do grupo. Ele sabia a rês que estava a governar em Lisboa por aqueles tempos!
— Não me meto em política! O que ninguém pode é impedir-me de querer saber das coisas que se passam na minha terra! Se isso é política!... — replicou Chequim da Oles.
— Tu lá sabes. Mas não te adiantes muito nos condutos. Às duas por três, podes ter que ir parar a África à força, se é que, pelo caminho, não vais mas é servir de comida aos peixes e nunca mais se ouve falar de ti! Não te metas com políticos que é má gente! E lá dizia o outro que a ignorância se manifesta pela política!
Chequim da Oles, feito um exame de consciência, concordou com o amigo. E, embora a contra gosto, aceitou o seu conselho. Por uns tempos prometeu não maçar a reunião de comparsas com as questões da política!
João Jerolme era o mais instruído dos do grupo. Pela idade e pelo saber. A sua família, mais abastada, tinha-lhe permitido frequentar um colégio de jesuítas por alguns anos.
Muitas vezes, nas tertúlias, se falava do tempo. Como é que andava, como é que não andava, se ia bom para as colheitas, se não ia. Se chovia ou fazia sol para medrarem as árvores e as searas e darem boas colheitas!...
Bernardo Garrancho, cuja escola tinha sido a terra, o campo, a chuva com muitas molhas e o sol com escaldões, animais e plantas, sabia bem ler-lhe as aparências. Se uma nuvem grossa e escura aparecia, no horizonte, a ocidente, ao fim da tarde, ajuizava:
— Ó rapazes, há uma barda além por cima do Ingarnal. Amanhã chove pela certa! Assim eu tivesse a certeza de entrar no reino dos céus!  
João Jerolme, mais pensador, percebia os efeitos do tempo, mas não podia compreender que ímpeto da natureza era aquele. Apenas sabia que fora essa força imparável que o relegara para o banco da praça ou para o balcão da taberna. Era quando, amiúde, erguia o copo de vinho na mão, já trémula, declarava, simplesmente, para o círculo de amigos, como um presságio:
— O tempo! O tempo! …
E, fosse ou não o efeito do vinho a subir-lhes às cachimónias, o que é certo é que alguma coisa ali parecia pairar. Por instantes, todos os da roda quedavam. Enquanto os olhos da sua natureza rude aparentavam alcançar alguma luz por entre a escuridão. Eles bem compreendiam o Jerolme: o tempo era, afinal, o grande mestre que tudo ensina, tudo cura, tudo faz esquecer, tudo cria e tudo destrói!
Tinha sido o tempo, esse mesmo, esse vilão, o que eles não podiam nem sabiam qualificar, que lhes roubara as suas vidas!

Nota: Neste texto foram utilizados termos regionais ou locais, incluindo nomes de pessoas, que não se encontram na ortografia e dicionários oficiais.
                                                

José Barroso

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Está quase a chegar a nossa vez de nos sentarmos nos bancos da praça!
O problema é que anda cada um para o seu lado, como é que nos vamos juntar?
Tempos velhos, rumos novos...

Anônimo disse...

Ó Zé é aqui que entra a realidade virtual. Estas nossas intervenções no blog (que mais não é que a nossa praça "virtual")como o mais poderoso símbolo de ponto de encontro, transmutando a realidade natural. Estamos perto... estando longe e é menos afetivo que a praça real, porquanto não vemos os sorrisos nem ouvimos as gargalhadas, mas mantem o elo e como a outra está aberta a quem gostar de "vender jogo" e aparecer para dois dedos de conversa.
O texto recupera uma linguagem arcaica, que já nos dá prazer em ouvir...e remete-nos para a Praça com tal força que até o Zé Teodoro acusa o toque.
F.Barroso

Anônimo disse...

Sinto-me uma privilegiada por ter vivido a maior parte dos anos que tenho num tempo em que o mundo, e sobretudo Portugal, deram um salto qualitativo enorme em muitos aspetos das nossas vidas. Mas às vezes, tal como o Jerolme, sinto que esse salto também nos roubou muitas das coisas boas que o Chequim da Oles e os seus contemporâneos puderam viver. Sobretudo ter tempo e amigos para se sentarem na Praça a filosofar sobre as questões existenciais que os atormentavam.
Coisas simples e muitas vezes sem respostas, mas podiam partilhá-las e, se calhar, isso tornava a vida melhor.

M. L. Ferreira