segunda-feira, 8 de maio de 2017

Mordomias

Éramos amigos desde que me lembro. Não que tivéssemos andado os dois a brincar na Praça, que naquele tempo começávamos a trabalhar logo assim que aprendíamos a andar e a rua eram só para alguns, mas porque às vezes nos encontrávamos por lá, quando íamos com as cabras ou ao mato e fazíamos companhia um ao outro.
Depois ele foi para a escola e já não nos víamos tanto, mas continuámos a dar-nos bem. Depois fui eu que abalei para Castelo Branco, a trabalhar para as obras, e já só nos encontrávamos de raro em raro.
Quando chegou a altura da tropa, eu fiquei por cá e a ele mandaram-no para Angola, e foi aí que perdemos o rasto um do outro.
Um dia estava eu sentado ali na Sé, em Castelo Branco, a fazer horas para a camioneta, e vejo parar um vulto à minha frente, mas nem fiz caso.
            - Então tu já não me conheces, homem?
            - Olha quem é ele! Dá cá um abraço, homem! Estava bem longe de te ver aqui hoje!
            - Há quantos anos é que a gente já não se via!
- Já lá vão uma tormenta deles! E olha que se tu não me falasses já nem te conhecia! Eras assim um lingrinhas como eu e agora estás tão gordo! E todo engravatado, que até pareces um doutor…
            - Mas olha que eu a ti conheci-te bem! Estás na mesma… Olha lá, tu já comeste?
            - Eu não; como quando chegar à terra.
            - Anda mas é daí que hoje comes comigo, que ainda é cedo para a camioneta.
E fomos a uma casa de pasto que havia ali ao pé. Mal nos sentámos, puseram-nos logo à frente uma grande travessa de frango com batatas fritas, um pão inteiro e um jarro cheio de vinho. Quando acabámos de comer, fiquei à espera que trouxessem a conta e até com medo que não tivesse dinheiro que chegasse, mas nada. Ele levantou-se, pegou-me por um braço e saímos porta fora, que já se estava a fazer tarde para a camioneta.
            -Então, não pagamos o comer?
            - Deixa estar, que já está pago.
            Se ele o dizia...
            - E quando cá voltares, procura por mim na Devesa, que eu ando muito por lá, e bebemos umas cervejas. Agora também tenho que ir apanhar a camioneta, que tenho que apresentar serviço.
            - Não me digas que és cobrador…
            - Ná; cobrador não sou, mas ando de cá para lá a ver em que é que param as modas, que andam por aí uns meninos a modos que a mijar fora do testo…
            Ainda nos encontrámos mais umas poucas de vezes. Ou comíamos o frango com batatas fritas ou bebíamos umas cervejas, que eu nem gostava muito daquilo, mas mal a gente entrava num lado qualquer metiam-nos logo uma rodada à frente. E quando ia para pagar, era sempre o mesmo:
 - Mas que vida é a nossa? Come-se e bebe-se e não se paga? Nunca tal se viu.
            - Então, eles querem assim… Não te rales.
          - Ná! Assim não nos entendemos. Lá que tu não pagues, vá que não vá, que se calhar até és amigo deles, agora eu não os conheço de lado nenhum.
Um dia íamos a entrar num café muito fino que lá havia, que até tinha uma porta que andava à roda e tudo. A ele deixaram-no entrar, mas a mim houve logo um que me deitou a mão:
            - Aonde é que você vai? Não sabe que não pode entrar aqui sem gravata!
            Ele olhou para trás e só disse estas palavras:
            - Quem é que disse que não pode? Ele vem comigo e entra onde eu entrar!
E entrei. E serviram-nos como se fossemos uns doutores. Mas doutra vez entrámos num café onde estavam uns poucos à conversa. Assim que nos viram, ó pernas para que vos quero! Só o ouvi murmurar:
            - Ide-vos embora, ide, que eu logo vos cozo…
Até fiquei parvo. Se os homens não tinham feito mal nenhum, porque é que ele estava com aquelas coisas?
Depois eu casei-me e fui para a França, e nunca mais nos vimos. Um dia, passados uns anos, ouvi dizer que tinha morrido, não se sabe bem como. Aí lembrei-me daquelas patuscadas à borla e de ter pensado cá para comigo que tantas mordomias ainda haviam de acabar mal. Antes me tivesse enganado, que ninguém gosta de ver acabar mal um amigo.

M. L. Ferreira 

2 comentários:

Anônimo disse...

História muito bem contada e irrepreeensível do ponto de vista estético!
Quanto a um dos protagonistas quase de certeza que sei quem era. Refiro-me ao que, de facto, gozava das mordomias. Porque o outro era apenas um beneficiário ocasional. Mas não arrisco alvitrar o nome, porque há sempre uma margem de erro. Como já aqui me aconteceu. Porém, creio que não será difícil. Basta pensar nos métodos persuasivos que o texto dá a entender.
Portanto, se é a situação que eu imagino, o que posso dizer é que muitos, como ele, foram comprados por um soldo e reduzidos a tiranetes no seu espaço de ação. Caso não seja, então retiro o que disse, porque tirei conclusões erradas. Que, mesmo assim, ficam apenas comigo. A não ser que a MLF e o ZT optem por divulgar factos. Nessa hipótese, direi quem o que me sugeriu esta história, mesmo que tenha sido uma sugestão diferente da realidade que lhe deu origem.
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

Por norma não costumo revelar os nomes dos protagonistas das minhas histórias. Em primeiro lugar, porque teria que pedir autorização e nem sempre é possível; depois porque muitas vezes invento coisas que alteram a verdade; finalmente porque a verdade nem sempre é muito abonatória do caráter dos protagonistas e quem sou eu para atirar achas para a fogueira?… Mas penso que podem sempre criar-se outras histórias à volta do mesmo tema e este terá pano para mangas. Força, ZB!
A propósito disto tudo, lembrei-me do Padre Leal e de como em determinadas alturas o elogiei. Depois alguém me informou que ele tinha sido da PIDE e atuava sobretudo no meio dos mineiros da Panasqueira, beneficiando largamente destes seus serviços. Arrependi-me dos elogios. Deixo um parágrafo do livro A GUERRA DA MINA, de Daniel Reis e Fernando Paulouro Neves que o José Teodoro me emprestou:
«A Companhia fazia as contas no fim do ano. Pelo Natal, a um que trabalhava todo o ano, davam aí uns cinquenta a cinquenta e cinco escudos. Um capataz recebia aí uns duzentos de gratificação no fim do ano, e já era muito.
Mas o Padre Leal que rezava as missas e fazia os sermões aos mineiros, recebia vinte contos e achava pouco. Ainda por cima dizia à direcção para não nos aumentar o ordenado porque, dizia ele, se assim nos embebedávamos, que faríamos se ganhássemos mais? E nós com os filhos a morrer de fome!».

M.L. Ferreira