sábado, 24 de fevereiro de 2018

Quarta classe ou comunhão

(…) Mal a gente saía da escola, as nossas mães punham-nos logo a servir.
- Olha filha, ”dizia a minha mãe” sempre é melhor que ficares praí a trabalhar no campo de sol a sol, à chuva, ao frio, ao vento.
Quando tinha a tua idade já andava a servir; escola! Qual escola qual carapuça, nesse tempo só os cachopos; “e não eram todos”; tiravam a quarta classe. Os pais punham-nos logo a guardar cabras. Naquele tempo era uma dor dalma, muitos só viam as primeiras botas quando iam para a tropa, porque lhas davam lá.
Na vila havia meia-dúzia de casas ricas, as quintas, as melhores terras eram deles, muitas famílias nem um palmo de terra possuíam.
Dois ou três meses antes das festas de verão, as famílias mais pobrezinhas compravam um borreguito para ser comido nos dias das festas, como não tinham horta, engordavam-no nos ribeiros e na ribeira.
Ai daquele que fosse apanhado a roubar um molho de mato nas terras dos ricos…
- Olha filha, dizia a minha mãe; no tempo da azeitona, homens e mulheres andavam por esses olivais fora ao oitavo e ao nono; eram oito litros ou nove para o patrão e um para a camarada toda, uma miséria; ao fim do dia, por vezes não ganhava-mos um quartilho de azeite; quando as oliveiras estavam sujas e pouco carregadas. Quando estavam de carrola, os homens colhiam uma saca num instante. É por causa destas e doutras que antes te quero ver a servir.
A minha mãe era criança quando o concelho acabou, andava na praça a jogar ao paspelho quando viu um senhor a fechar a porta do balcão da cadeia, ao fundo das escadas estava um homem com uma carroça cheia de livros, o que fechou a porta subiu para a carroça e abalaram.
Certa vez a minha mãe, com ar sério e grave, voltando-se para mim, disse:
- Andam para ai a recordar o senhor fulano, a senhora fulana, o que é que fizeram pela nossa terra? Até deixaram abalar a câmara, que rai de ricos foram eles.
Ainda me lembro como se fosse hoje das palavras da minha mãe. 
- A vila nunca mais foi a mesma. Está cada vez mais deserta, há ruas onde moram duas ou três pessoas; os soldados partiam para a guerra, a emigração, a falta de trabalho, tudo isto contribuiu para a desertificação.
Adiante, águas passadas não movem moinhos, e depois!
Um dia, uma vizinha falou com a minha mãe no nosso almiar, eu estava ao cimo das escadas a ouvir a conversa.
- Ó Maria, esteve na praça um senhor e uma senhora à procura de duas criadas, e se nós mandasse-mos as nossas filhas?
A minha mãe não ficou muito convencida, eu muito menos, servir! A minha amiga lá me convenceu e fomos. Teria os meus quinze anos quando abalei, os patrões eram boas pessoas, andei por lá cerca de um ano, aos domingos a patroa dava-nos a parte da tarde para irmos passear, uma vez conhecemos um rapaz da nossa idade que nos acompanhava.
- Casavas com ele?
- Eu não, nem sequer tem a quarta classe.
- Isso para mim era o menos, não casava com ele porque não tem a primeira comunhão.
Um grande clarão vermelho sobressaia por detrás da serra do Engarnal, aproximava-se a noite, no chafariz coaxavam as rãs, no velho cedro, escondidas nas ramagens ouviam-se os sons estridentes das cigarregas; o sino da torre da igreja badalava as ave-marias.
- O anjo do Senhor anunciou a Maria…

Quartilho: Quarta parte da canada.
Carrola: Ramos, ladrões carregados de azeitonas.
Almiar: O pequeno espaço da habitação que se situa ao fundo das escadas. 
Cigarrega: Cigarra
Linguajar vicentino: praí; dor dalma; rai.

J.M.S

Um comentário:

M. L. Ferreira disse...

Era assim, naquele tempo! E até muitos anos mais tarde, as melhores expetativas das raparigas, mal terminavam a escola, era irem a servir para fugirem aos trabalhos do campo. Algumas tinham sorte porque eram respeitadas pelos patrões; outras eram tratadas como fossem escravas: mal comidas, trabalho até altas horas, e por vezes até maus tratos físicos.
Uma das memórias mais traumatizantes da minha adolescência passou-se quando tinha 11 anos, a 4º classe acabada de fazer: num domingo à tarde, na Praça, estava com um grupo de raparigas da minha idade e vejo um casal, dentro de um carro, a olhar insistentemente para nós. Acho que ninguém ligou muito, mas, passado algum tempo, há um homem que se chega ao pé de nós e me diz que aqueles senhores tinham gostado muito de mim e queriam que eu fosse servir para casa deles. A minha reação foi desatar a correr pela rua abaixo e esconder-me em casa, debaixo da cama. Fiquei lá o resto da tarde, não fosse a minha mãe saber, ir à minha procura e mandar-me para a Covilhã. Depois de muitas histórias que tinha ouvido contar à minha avó, às minhas tias e à minha mãe, a última coisa que queria fazer na vida, era ser criada de servir.
M. L. Ferreira