- Olha
filha, ”dizia a minha mãe” sempre é melhor que ficares praí a trabalhar no campo de sol a sol, à chuva, ao frio, ao vento.
Quando
tinha a tua idade já andava a servir; escola! Qual escola qual carapuça, nesse
tempo só os cachopos; “e não eram todos”; tiravam a quarta classe. Os pais
punham-nos logo a guardar cabras. Naquele tempo era uma dor dalma, muitos só viam as primeiras botas
quando iam para a tropa, porque lhas davam lá.
Na
vila havia meia-dúzia de casas ricas, as quintas, as melhores terras eram
deles, muitas famílias nem um palmo de terra possuíam.
Dois
ou três meses antes das festas de verão, as famílias mais pobrezinhas compravam
um borreguito para ser comido nos dias das festas, como não tinham horta,
engordavam-no nos ribeiros e na ribeira.
Ai
daquele que fosse apanhado a roubar um molho de mato nas terras dos ricos…
- Olha
filha, dizia a minha mãe; no tempo da azeitona, homens e
mulheres andavam por esses olivais fora ao oitavo e ao nono; eram oito litros
ou nove para o patrão e um para a camarada toda, uma miséria; ao fim do dia,
por vezes não ganhava-mos um quartilho de azeite; quando as oliveiras estavam
sujas e pouco carregadas. Quando
estavam de carrola, os homens colhiam
uma saca num instante. É por causa destas e doutras que antes te quero ver a
servir.
A
minha mãe era criança quando o concelho acabou, andava na praça a jogar ao
paspelho quando viu um senhor a fechar a porta do balcão da cadeia, ao fundo
das escadas estava um homem com uma carroça cheia de livros, o que fechou a
porta subiu para a carroça e abalaram.
Certa
vez a minha mãe, com ar sério e grave, voltando-se para mim, disse:
- Andam para ai a recordar o senhor fulano, a senhora fulana, o que é que fizeram pela nossa terra? Até deixaram abalar a câmara, que rai de ricos foram eles.
- Andam para ai a recordar o senhor fulano, a senhora fulana, o que é que fizeram pela nossa terra? Até deixaram abalar a câmara, que rai de ricos foram eles.
Ainda
me lembro como se fosse hoje das palavras da minha mãe.
- A vila nunca mais foi a mesma. Está cada vez mais deserta, há ruas onde moram duas ou três pessoas; os soldados partiam para a guerra, a emigração, a falta de trabalho, tudo isto contribuiu para a desertificação.
- A vila nunca mais foi a mesma. Está cada vez mais deserta, há ruas onde moram duas ou três pessoas; os soldados partiam para a guerra, a emigração, a falta de trabalho, tudo isto contribuiu para a desertificação.
Adiante,
águas passadas não movem moinhos, e depois!
Um
dia, uma vizinha falou com a minha mãe no nosso almiar, eu estava ao cimo das escadas a ouvir a conversa.
- Ó
Maria, esteve na praça um senhor e uma senhora à procura de duas criadas, e se
nós mandasse-mos as nossas filhas?
A
minha mãe não ficou muito convencida, eu muito menos, servir! A minha amiga lá
me convenceu e fomos. Teria os meus quinze anos quando abalei, os patrões eram
boas pessoas, andei por lá cerca de um ano, aos domingos a patroa dava-nos a
parte da tarde para irmos passear, uma vez conhecemos um rapaz da nossa idade
que nos acompanhava.
- Casavas
com ele?
- Eu
não, nem sequer tem a quarta classe.
- Isso
para mim era o menos, não casava com ele porque não tem a primeira comunhão.
Um
grande clarão vermelho sobressaia por detrás da serra do Engarnal,
aproximava-se a noite, no chafariz coaxavam as rãs, no velho cedro, escondidas
nas ramagens ouviam-se os sons estridentes das cigarregas; o sino da torre da igreja badalava as ave-marias.
- O
anjo do Senhor anunciou a Maria…
Quartilho: Quarta parte da canada.
Carrola: Ramos, ladrões carregados de
azeitonas.
Almiar: O pequeno espaço da habitação que se situa ao fundo das escadas.
Cigarrega: Cigarra
Linguajar vicentino: praí; dor dalma; rai.
Linguajar vicentino: praí; dor dalma; rai.
J.M.S
Um comentário:
Era assim, naquele tempo! E até muitos anos mais tarde, as melhores expetativas das raparigas, mal terminavam a escola, era irem a servir para fugirem aos trabalhos do campo. Algumas tinham sorte porque eram respeitadas pelos patrões; outras eram tratadas como fossem escravas: mal comidas, trabalho até altas horas, e por vezes até maus tratos físicos.
Uma das memórias mais traumatizantes da minha adolescência passou-se quando tinha 11 anos, a 4º classe acabada de fazer: num domingo à tarde, na Praça, estava com um grupo de raparigas da minha idade e vejo um casal, dentro de um carro, a olhar insistentemente para nós. Acho que ninguém ligou muito, mas, passado algum tempo, há um homem que se chega ao pé de nós e me diz que aqueles senhores tinham gostado muito de mim e queriam que eu fosse servir para casa deles. A minha reação foi desatar a correr pela rua abaixo e esconder-me em casa, debaixo da cama. Fiquei lá o resto da tarde, não fosse a minha mãe saber, ir à minha procura e mandar-me para a Covilhã. Depois de muitas histórias que tinha ouvido contar à minha avó, às minhas tias e à minha mãe, a última coisa que queria fazer na vida, era ser criada de servir.
M. L. Ferreira
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