terça-feira, 17 de abril de 2018

À marouva

As colheitas há muito tinham sido realizadas, nova safra, novas culturas. Os alqueives estavam a ser arados para receberem as sementes de centeio. Nas terras úberes, lavradores semeavam trigais.
Regatos, ribeiros e ribeiras eram desviados para os lameiros, inundando-os para a erva crescer.
As únicas frutas que existiam eram os citrinos, nem toda a gente possuía laranjeiras, tangerineiras… os mais abastados tinham nas suas terras pequenos pomares, assim como diospireiros, nogueiras, romãzeiras, privilégio de alguns. Daí o rifão: de manhã são ouro, ao meio-dia prata e à noite mata.
Nunca cheguei a compreender, pobre camponês não as plantava!?
Ainda se viam aqui e acolá laranjeiras e tangerineiras; diospireiros, nogueiras, romãzeiras… rareavam nas casas dos pequenos proprietários.
Caçadores percorriam montes e vales juntamente com os cães, tentando caçar coelhos, lebres ou perdizes, naquela época a caça era abundante, até havia licença de pau.
Todas as courelas se aproveitavam, não serviam para horta, plantavam-se parreiras, oliveiras… Nada se desperdiçava, o que as galinhas, porcos, ou outros animais domésticos não comiam, ia para a estrumeira, quando caía na terra era adubo natural do bom; as plantas cresciam e os frutos colhiam-se sem qualquer intrometimento originado pelos pesticidas.
Frutos e legumes saborosos; as sementes que as originavam eram naturais, nada manipuladas, transformadas, viam-se bandos de taralhões, pardais, melros… comiam alguma fruta, verdade; mas limpavam os parasitas e os animaizinhos nocivos, a parte leonina pertencia sempre ao dono.
A alegria que era ouvir o chilrear das aves nomeadamente na época da postura, alegravam os campos e o camponês assobiava, imitando-os.
Os cumes serranos da Guardunha e Engarnal ficavam pintados de branco.
A natureza parecia adormecida. Os passarinhos, tirando os pardais que saltitavam nas poças originadas pelas chuvadas à procura de alguma minhoca ou coisa parecida, há muito tinham demandado outras paragens: andorinhas, cegonhas, cucos, poupas… os que por cá ficavam recolhiam-se com certeza na taloca de uma velha árvore, refugiando-se dos frios rigorosos do inverno.
De vez em quando bandos de estorninhos, pombos ou patos bravos revoavam os céus à procura de alimento.
Naquele tempo os automóveis eram “brinquedos” que só os ricos podiam ter, para o camponês uma junta de vacas, um cavalo ou um burro eram mais valiosos, automóvel não dava de comer à família, as estradas eram péssimas, próprias para carroças e carros de bois, os ricos podiam dar-se ao luxo de poderem ter em seu poder um automóvel.
As bicicletas e as motorizadas pertenciam ao povo, mesmo assim nem toda a gente as podia comprar; um velocípede novo custava os olhos da cara.
(…) Estava na Fonte Velha, sentado no cais, entram no largo, vindos da rua do Beco, esbaforidos, o Zeca e o Elias montados cada um em sua bicicleta. Ao aproximarem-se do cais onde eu estava pararam e desmontaram.
- Vamos à marouva; queres vir? Atrás, nos suportes, cada um levava uma saca de serapilheira.
- Onde? Perguntei.
- Ao Valoro; está lá um pomar carregadinho de laranjas…
Convenceram-me, levantei o cú da pedra, dirigi-me à nossa casa, peguei na bicicleta, fui com eles também
Lusco-fusco, vão os três da vida airada estrada fora em direção ao pomar; a certa altura entrámos num caminho que nos levou ao laranjal.
Encostámos as bicicletas ao muro, escalámo-lo; eles, com as sacas na mão começaram a meter laranjas, eu só queria comer uma ou duas: “roubar é pecado”…
Poucos minutos passados, alguém deu um forte grito, um trom de espingarda, chumbos caíram-nos em cima, cães começaram a ladrar na nossa direcção, saltámos o muro, pegámos nas bicicletas e fugimos.
Ainda hoje não sei onde fica o famigerado pomar, nunca tive curiosidade em o localizar.
Foi a primeira e última vez que participei numa aventura desta natureza.
Apanhei um cagaço…
Fiquem bem.

J.M.S

8 comentários:

Anônimo disse...

Onde isso já vai ó Zé Manel e o salto que isto deu...
A propósito da passarada, uma das minhas memórias mais antigas,, ainda antes da Serra, tinha-mos de renda a Barroca da Maria do Ninho. E numa descamisa ou desfolhada, lá para fins de setembro, lembro-me do meu irmão Bernardo, se ausentar de vez em quando para espreitar os custis.
Apanhou uma tormenta de taralhões e dois ou três melros.
fizeram um arroz tão bom que ainda guardo o gosto na memória.
FB

M. L. Ferreira disse...

Antigamente, para se comer alguma fruta, tinha que se andar à marouva. Agora é ver o chão por baixo das laranjeiras e macieiras coberto de fruta. Deve ser também por isso que, no inverno, as urgências dos hospitais não têm mãos a medir...
Pois, "roubar é pecado"... Então e o ditado que diz que "tão ladrão é o que vai á horta como o que fica ao portão"?

José Teodoro Prata disse...

A nossa necessidade de vitamina C era tanta que eu ia roubar laranjas à Oriana do meu avô Prata, após o almoço na cantina Senhora da Orada.
Até ao dia em que ele estava à nossa espera...
Foi um problema encará-lo no domingo seguinte (íamos lá sempre, mas a laranja domingueira não era suficiente).
Ele colocava-as na loja, no chão, sobre palha. No verão ainda havia laranjas.

joaquim bispo disse...

Foi um gosto encontrar aqui palavras desusadas e que evocaram queridas lembranças minhas: marouva, alqueives, taralhões, custis. O meu obrigado por isso.

José Barroso disse...

Memórias das boas! Sempre me interroguei também sobre a razão de os pobres não plantarem muitas laranjeiras, ainda menos tangerineiras e nenhuns diospireiros! E, com efeito, ramãzeiras e nogueiras também era em casa dos ricos. Há de haver uma explicação. Plantavam figueiras porque os figos entravam na vianda dos porcos e secavam-se, para as pessoas, para o inverno; plantavam macieiras porque as maçãs, na altura duravam até março como dieta de fruta de inverno; as piores também iam para os porcos. Poderá ser essa a explicaçãp? O que é certo é que cerejeiras e ginjeiras já se viam nos terrenos dos pobres. Se se pensar que não eram assim tão importantes para o gado, não percebe muito bem. Mas eram um regalo!
Quem não ia à marouva naqueles tempos, apesar de ser pecado...? Todos os pecados fossem esses...
Abraços.
JB


Aperaltado disse...

O "Xquim Bispo e a marouva"
Ele e mais entre outros, o Zé Caldeira, cada um na sua bicicleta, na barreira do Garret a caminho da cidade do Castelo Branco.
Duas frondosas nespereiras, faziam guarda de honra a nobre portão, que deixava entrar apenas aos que dele tinham chave.
Subiram e comiam e colhiam sarroadas de saborosas "nespras",de nespereira plantada em alqueve lavrado e seco por maio seco e àspero.
Surpreendido pela desfaçatez, o criado, berrava a plenos pulmões, ao ser surpreendido pelos da marouva, que roubada, pertencia aos patrões. Com a calma própria de alguém que viria a ser na vida controlador "de imagem", claro, remata o pequeno larápio de então, para o surpreso criado do patrão.
-Para a próxima, veja se arranja tempo para "acimentar" o chão, pois vou sempre de cá, com os sapatos cheios de pó. Ouviu???
Perplexo, a caminhar para assincopado, quase a dizer que Deus me valha,o menos que lhe chamou, foi canalha.
O "Xquim Bispo", tem muitas destas e outras.
"aperaltadomaneldaterradoscãesdosquelápassim".

Anônimo disse...

Eu penso que o facto de os pobres não plantarem laranjeiras e outra arvores de fruto era porque os terrenos eram poucos e todo o espaço era pouco para a agricultura de subsistência Reparem que as árvores, na maioria, eram plantadas nas paredes, de modo a ocuparem pouco espaço e não fazerem sombra às culturas.

De maneira que algumas frutas eram só propriedades dos ricos que terrenos não lhes faltavam e ganância também não, enquanto os pobres se limitavam a olhar e a pensar "são verdes não prestam...."

Tina Teodoro

M. L. Ferreira disse...

Esta explicação da Tina é, talvez, a mais plausível; mas não devemos também esquecer que a introdução de vários produtos da nossa alimentação se foi fazendo aos poucos, trazidos de outros lugares, mais ou menos longínquos. Quem é que há 20 ou 30 anos imaginava que tínhamos nos nossos quintais e hortas frutos como os Kiwis, mirtilos, abacates, framboesas, etc. etc... No meio desta discussão, esquecemo-nos das castanhas, tão abundantes desde há vários séculos, e tão importantes na alimentação dos nossos pais e avós.
Sobre a fruta dos ricos, lembro-me que uma vez fui com a minha mãe à casa da D. Zara e vi no quintal um canteiro com morangos. Na altura não sabia o que era, mas achei-os muito bonitos e perguntei à minha mãe o que era aquilo. A resposta dela foi que era uma coisa venenosa e nem sequer lhes tocasse, se não morria.
Poucos anos mais tarde, no Casal que agora é dos Matias, mas os meus avós trouxeram à renda, já havia pessegueiros, vários tipos de cerejeiras e um diospireiro. Não sei se foi por me lembrar dos morangos, sempre que comia algum daquele frutos tão estranhos e tão bons, ficava uns instantes à espera de morrer.