O documento que a seguir se
apresenta é um relatório do estado da agricultura, no extinto concelho de São
Vicente da Beira. Não está datado, nem assinado, e não podemos consultá-lo no
Arquivo Distrital de Castelo Branco, pois infelizmente é propriedade privada,
como acontece ainda com inúmeros documentos, subtraídos à consulta livre da
população em geral.
Sabemos que a Vossa Real
Majestade do documento era uma senhora, logo a rainha D. Maria II, pois o
documento tem a marca clara do liberalismo. Esta rainha governou entre 1834 e
1853. A ata da sessão camarária de 20 de agosto de 1843, em resposta à circular
do Governo Civil n.º 7, requisita a este organismo doze alqueires de pinhos e
algumas acácias, para no próximo outono dar princípio a tão interessante ramo
de riqueza para este município. Referiu-se ainda a decisão já tomada de criar,
certamente em Castelo Branco, um viveiro das árvores que se deviam plantar,
dando preferência às amoreiras, acácias, oliveiras e sementeira de pinhais. Ora,
como veremos a seguir, estas medidas vêm na sequência das opiniões que a câmara
de São Vicente, e certamente muitas outras do reino, transmitiu ao poder
central, nestas memórias. Assim, o documento em causa será de cerca de 1840. A
assinatura do autor parece indicar o apelido Nogueira e de facto por esses anos
viva em São Vicente da Beira uma pessoa chamada João Silvestre Nogueira, que
andava na governança.
Segundo
o documento, a câmara já enviara os Mapas 6 e 7, mas o poder central pediu a
descrição do que recebera em números e as opiniões dos concelhos sobre a forma
de melhorar a economia rural.
Relativamente
ao mapa 6, referente aos animais, o concelho de São Vicente criava muitas
cabras e ovelhas, pois tinha bons pastos naturais. Já o gado vacum
alimentava-se da palha do milho e de prados artificiais, tendo ainda a
liberdade de pastar nos pastos comuns. As galinhas existiam em abundância e a
sua venda, mais aos ovos, garantiam um bom suplemento à economia doméstica. As
abelhas existiam em bom número, mas o bicho da seda não abundava, porque havia
poucas amoreiras e muitos arrancavam-nas. A câmara solicitava uma lei que
tornasse obrigatório o plantio de amoreiras e que proibisse o seu arranque.
Quanto
ao Mapa 7, os terrenos secos davam centeio e os de regadia produziam milho,
feijão e linho em boas quantidades, sobretudo o milho. Isto graças ao Alvará de 27 de novembro de
1804 (acessível na internet) que regulamentara o despejo dos rendeiros, o
aumento das rendas e a obrigação dos proprietários lavrarem uma folha das suas
terras cada ano; facilitou o fazer tapadas, encanamento de levadas e a divisão
dos baldios pelos vizinhos. A câmara queixou-se do excesso de terrenos
maninhos, pedindo uma lei que obrigasse os proprietários a semearem uma certa
porção de pinhais. Por outro lado, queixou-se dos senhores que se apoderavam
dos maninhos baldios, dizendo serem seus, não os lavrando, nem os aforando aos
pobres. Solicitava-se que as câmaras os pudessem dar aos camponeses sem terra,
para que os arroteassem, como já faziam os ingleses e irlandeses. Existiam no
concelho duas manchas florestais, uma no Azinhal, junto ao Sobral do Campo e
propriedade deste povo, outra no Carvalhal, perto da Póvoa de Rio de Moinhos,
mas propriedade da câmara de São Vicente da Beira. No entanto, tanto as
azinheiras como os carvalhos eram cortados para lenha, não produzindo bolota
para os porcos, nem madeira para os utensílios agrícolas, para os carros e para
os engenhos de moer pão.
Foram estas, em síntese, as
Memórias da Indústria Agrícola do concelho de São Vicente da Beira, cujo
documento a seguir se transcreve.
Senhora
Agora que vão subir á Real Presença de V. Majestade
por via do Governo Civil deste Districto de Castelo Branco os Mappas da
Industria Agricula deste concelho de S. Vicente da Beira, naõ podemos deixar de
dirigir a V. M. as Memórias que por V. M. nos saõ exigidas sobre os Mappas N.os
6 e 7: o que fazemos com o mais profundo, e sincero respeito da maneira
seguinte.
Quanto aõ Mappa N.º 6, o que podemos
mencionar a V.ª M. he que nenhumas cauzas dificultaõ neste concelho a criaçaõ
dos gados. Porque o miudo, como cabras, e ovelhas tem neste concelho pastos em
proporçaõ com os rebanhos que aqui ha; e o grosso como vacum da mesma maneira;
pois que todos os Lavradores alem da palha de milho, que aqui se cultiva em
abundancia, costumaõ semear prados artificiais, alem de alguma cevada, e ferrã
que semeiaõ so para esse fim; e no tempo em que os bois naõ trabalham tem tambem
as coutadas, que a V.ª M. taõ benignamente concede aos Lavradores nas folhas
dos Pastos comuns: concessaõ que V.ª M. deve conservar, por ser de muito
proveito aos Lavradores neste Paiz de Castelo Branco. Pois que com elas naõ so
se ajudaõ amanter os bois de trabalho no tempo da Primavera, e Verão, mas athe
concorrem para haver nova creaçaõ, o que cessaria se fossem extintas as
coutadas; o que muito pedimos não consinta o Benigno Governo de V.ª M.
Agora quanto á cultura do Bicho da
seda o que temos a mencionar á V. M. he que neste concelho se cria alguma e que
a maior parte desta se manufactura em retroz cazeiro para consumo dos seus
cultores; e muita mais se poderia colher se houvesse maior abundancia de Amoreiras,
como pode haver, por ser o terreno fresco, e apto para elas. E sobre este Ramo
da Industria o que julgamos dever pedir he que se faça uma Lei, que obrigue a
todos os Proprietários aplantar nos seus predios certo numero de Amoreiras, e
que mantenha a sua conservaçaõ, prohibindo o cortallas, e o arrancallas, como
muitos fazem nas que ha antigas. Desta maneira se crearia neste concelho muita
seda para as Fabricas, e veriaõ os povos com este ramo de Industria Agricula
ater muitos Lucros, que agora naõ tem por incúria, e pouca inteligencia sobre
seus interesses. He bem sabido o quanto os Portuguezes por negligencia não
gozaõ, e aliaz podem ter, se uma Maõ poderoza os guiar a sahir da somnolencia,
em que jazem; e isto he o que esperamos de V. R. M.
Pelo que pertence á Estimativa aproximada das Aves
domesticas, que se criam neste concelho, o que podemos dizer he que neste
concelho haverá para cima de 6000 galinhas, alem das que sevaõ vendendo; cujo
ramo naõ deixa de ser lucrativo porque como os Povos são pobres com os ovos, e
galinhas, que vendem suprem muitas precizoens. E eis o que temos a expor sobre
o Mappa N.º 6.
Quanto ao Mapa N.º 7 o que podemos
dizer he que como neste concelho não são todos os terenos secos, a cultura em
geral sefaz em relaçaõ aos terrenos; semeando se senteio nos secos, e milho, e
feijão nos frescos, e de regadia, assim como algum linho para o uzo das
familias, sem que seja necessario vir de fora antes algum sevende em rama nos anos,
em que a producçaõ he melhor. Eporisso como a cultura em geral he assim feita,
nenhuma alteraçaõ deve haver; visto que os Povos aproveitam os terrenos cultivados
segundo a sua aptidão, semeando de milho todo o terreno fresco, e que é regado,
por ser aqui cultura mais vantajoza, muito principalmente depois do sabio, e
justo Alvara, ou Lei de 27 de Novembro de 1804, que tanto beneficio fez á Agricultura
de Portugal. E so para que aqui neste concelho se conserve a cultura do milho
em bom estado, o que se deve providenciar he que os Maninhos se naõ queimem,
para com elles se poderem aranjar os estrumes necessários, e mesmo para haver
pastos para os gados, e para as Abelhas, que tambem ha muitas neste concelho,
de que lhe redunda grande interesse.
Agora que fallamos em Maninhos, não
podemos deixar de Lastimar agrande negligencia, que aqui ha em semear Pinhaes.
Pois que havendo aqui muito terreno proprio para elles, poucos ou nenhuns ha,
podendo haver muitos, para madeiras, e mesmo para lenhas. Eporisso muito
proveitozo seria que se promulgasse uma Lei, que obrigasse atodos os
Proprietarios que tiverem terrenos Maninhos a semear certa porçaõ: porque sendo
esta sementeira geral, desta maneira se veria a cobrir de pinhaes uma boa parte
destes Maninhos, que agora nada produzem, e passados tempos todos teriaõ muitas
madeiras, e lenhas, que agora não tem. Alem disto, amaior parte dos Maninhos
que ha neste concelho poderia produzir senteio, muitas oliveiras e videiras, se
fossem roteados mas desgraçadamente nada produzem. Junto á esta vila ha uma
colina chamada os Carqueijaes, que sendo toda de Maninhos, ja agora tem alguns
pedaços roteados com oliveiras, videiras, e outras arvores, por haverem sido
aforados ha poucos anos á alguns pobres. Da mesma forma, do Lado de Lá da
ribeira, que corre junto desta vila na extensaõ de huma legoa ha tambem muitos
Maninhos, que poderiaõ produzir, se não se achassem incultos; mas nada produzem
por falta de cultura; E isto porque dizendo-se (ainda que sem fundamento) os
senhores deles Proprietarios, que naõ tem necessidade de os cultivar, os naõ
querem aforar aos pobres pelo menos. Neste cazo muito estimariamos huma Lei que
autorizasse as cameras para dividir taes terrenos pelos pobres, que se
dispozessem aquerer roteallos. E na verdade se os Romanos dividiaõ pelo Povo os
terrenos conquistados, porque naõ se dividiraõ pelos pobres os terrenos
incultos que os Ricos não aproveitaõ? He verdade que temos a Lei das Sesmarias,
e que amesma no artigo 9.º determina, e faculta aos sesmeiros o dar taes
terrenos: mas naõ havendo ja taes sesmeiros, muito justo seria que esta Authoridade
passasse para as cameras para dar naõ so os terrenos publicos incultos, mas
mesmo os dos Proprietarios que os não quizerem aforar. Porque desta maneira
sendo as cameras os Arbitros dos terrenos incultos, se viriaõ a reduzir a
cultura muitos destes terrenos, em beneficio geral da Naçaõ por todos os
motivos tanto publicos como particulares. He bem notorio o quanto os Inglezes,
e os Irlandezes tem augmentado a sua agricultura com as suas sorribas dos
terrenos incultos, e precizando Portugal quasi sempre de comprar pão aos estrangeiros,
porque se naõ faraõ todos os exforços para cessar este mal? abraõ-se os olhos,
e deponha-se o Egoismo mal entendido com que os ricos intitulaõ seus os
Maninhos, que na verdade naõ saõ, logo os Pobres aproveitaraõ muitos terrenos,
que agora nada produzem, e passados anos teraõ alguns recursos para se
manterem.
Finalmente rematamos esta nossa Memoria
com dizer que neste concelho naõ ha Mattos, ou Bosques alguns da Fazenda
Nacional. Somente haveraõ na folha do Azinhal pertencente ao Povo do Sobral humas
200 varas quadradas de moutas de Azinho truncadas, isto he em diversos sitios,
ena folha do Carvalhal pertencente á esta vila humas 300 varas quadradas de
moutas de Carvalho, também desunidas; e nestas decerto se crearaõ bons
carvalhos, taõ necessarios para haver madeiras para os trastes da lavoura, e
naquellas boas Azinheiras, que dariaõ muita bolota para os Marranos, e madeira
para carros, e para os Engenhos de moer paõ. Porem naõ se criaõ porque saõ
cortadas para lenha. E por isso se como diz Lineo no seu Systema Natural =
Nihil super va cane um agit Natura = bom seria que tal corte se atalhasse com
efficazes providencias, visto que as moutas saõ cortadas naõ por seus domnos,
mas por quem vai afazer lenha, para que seus domnos possaõ depois de creadas
arvores utilizar-se das madeiras, e fructo, de que saõ privados por tal motivo.
Estas saõ, Augusta Senhora, as
Reflexoens que o nosso zelo nos offerece fazer sobre o estado da Industria
Agricula deste concelho; e muito nos compraziremos, se ellas, merecendo a
Benigna Attençaõ de V. R. M., obtiverem as Providencias, que V. R. M. se
propoem á dar pelo seu Amor aos Povos, como Mai Benigna, que he dos
Portuguezes, naõ deixando de solicitar-lhe todas as venturas, que huma
Agricultura bem regulada lhe pode dar, junta com a Industria Popular, que muito
dezejamos ver extabelecida em toda a Naçaõ.
Legenda: Último parágrafo do documento,
com assinatura do autor.
Nota: Publicado na revista Materiaes, III Série, N.º 2, 2018, pela Sociedade dos Amigos do Museu Francisco Tavares Proença Júnior
José Teodoro Prata
2 comentários:
Como é que um documento desta importância pode estar na mão de particulares? Mas parece que não é caso único…
Sobre o conteúdo já quase tudo foi dito na introdução, mas gostava de salientar o trecho que, a propósito da cultura da seda, diz o seguinte: «Desta maneira se crearia neste concelho muita seda para as Fabricas, e veriaõ os povos com este ramo de Industria Agricula ater muitos Lucros, que agora naõ tem por incúria, e pouca inteligencia sobre seus interesses. He bem sabido o quanto os Portuguezes por negligencia não gozaõ, e aliaz podem ter, se uma Maõ poderoza os guiar a sahir da somnolencia, em que jazem; e isto he o que esperamos de V. R. M.». E isto apesar de, se bem percebi, os campos estarem devidamente cultivados e haver gado com fartura. Provavelmente o problema era que nem o gado, nem o pão, nem a seda eram de quem os produzia… Ainda por cima, como se lê noutro trecho, os ricos apoderavam-se dos terrenos baldios para aumentarem as vastas propriedades que já tinham, enquanto os pobres passavam fome por não terem uma leira para semear.
Hoje passei na Fonte Velha e, olhando para a ruína da casa que pertenceu à família Cunha, lembrei-me deste artigo.
O autor deste texto era um homem extraordinário!
Estando imbuído da ideologia liberal, vai muito para além dela, pois denuncia o roubo que os ricos faziam dos maninhos (terrenos incultos, com matos, propriedade comum), defendendo a sua distribuição pelos pobres.
Devemos orgulharmo-nos de a nossa câmara ter, em meados do século XIX, defendido tais ideias!
Como isso não aconteceu, os ricos ficaram muito mais ricos (formaram-se as grandes casas agrícolas em parte à custo deste maninhos) e o pobres ficaram ainda mais pobres, pois já nem maninhos tinham para ir ao mato, à lenha, a cortar madeiras...
Há vários livros que abordam estão questão da perda dos maninhos pelos pobres, já no século XX:
- "Noite e Madrugada", de Fernando Namora (em Monsanto)
- "Quando os lobos uivam", Aquilo Ribeiro (Beira Alta)
Há o grito d´"O CARVALHAL É NOSSO!", no Souto da Casa
E o grito d´"O CHAPARRAL É NOSSO!", em Monforte da Beira (existe livro)
Ambos denunciam as lutas destes povos para manterem os seus maminhos.
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