quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A erva santa do tabaco...


Tive acesso a uns autos judiciais de 1849, do Julgado de São Vicente da Beira. Referem-se a casos que vos deixarão surpresos, como eu fiquei.
É que a noção do que é proibido ou não depende muito da sociedade em que se vive e dos interesses dos governantes ou da sociedade do momento. Isto é, os nossos mais velhos pensavam que as proibições eram ditadas por uma iluminação quase divina dos governantes, tornando o seu cumprimento um dever quase sagrado. Parece que não…
Por exemplo, atualmente estão legalizadas umas drogas e outras não. As bebidas alcoólicas, o tabaco e os medicamentos adquirem-se livremente, enquanto outras substâncias que também criam dependência e prejudicam a saúde são proibidas. Tudo depende do que a atual sociedade considera aceitável ou não.
Nos anos 80 do século passado, os Estados Unidos da América promoveram a formação de grupos armados na Nicarágua, para lutarem contra o governo deste país. Para se financiarem, organizaram a entrada nos EUA de quantidades enormes de droga, cuja venda financiou os Contra, como ficaram conhecidos. No entanto, os EUA eram oficialmente contra o tráfico de droga e mantiveram sempre a repressão sobre os traficantes.
Em meados do século XIX, a Inglaterra produzia muito ópio na sua colónia da Índia. Um dos mercados mais promissores era a China, cujo governo se fartou de ver definhar lentamente parte da sua população e proibiu a entrada do ópio inglês. A Inglaterra clamou contra esta medida que atentava contra a liberdade comercial e impôs à China uma guerra (a Guerra do Ópio) que humilhou  a China e a colocou, durante décadas, sob o domínio económico do Ocidente.
Os exemplos que se seguem são de 1849, ocorreram na área do antigo concelho de São Vicente da Beira e têm igualmente a marca do seu tempo. Nessa época, a produção e venda de sabão, tabaco e pólvora eram feitas em regime de monopólio, isto é, só os podiam produzir e comerciar quem tivesse autorização do Estado. Até era proibido o consumo de bens não produzidos por quem tinha o monopólio.

- A 13 de julho de 1849, Manuel Luís Mineiro, escrivão fiscal do posto de Castelo Branco, apresentou 64 pés de erva santa do tabaco que fizera arrancar numa fazenda  da Oles, pertencente a Maria Teresa, viúva de António Alves Vermelho, de São Vicente da Beira. A fazenda confrontava com o Excelentíssimo Francisco Caldeira Leitão Pinto Cardoso, da Borralha, e Josefa Carolina Ribeiro Robles, de S. Vicente da Beira. As testemunhas foram 2 soldados da Companhia de Granadeiros do Regimento de Infantaria 12. A erva do tabaco apreendida foi destruída em presença do Administrador do Concelho. Foram testemunhas António Rodrigues Castanheira e José Patrício Alves Leitão, de S. Vicente da Beira.

- No mesmo dia, os mesmos apreenderam 180 pés de erva santa de tabaco, na fazenda de Joaquim Dias, viúvo, de S. Vicente da Beira. A fazenda situava-se na Serra, confrontando com Miguel dos Santos e Ana dos Santos. As plantas de tabaco foram destruídas. Serviram de testemunhas Plácido Henriques e  Domingos de Oliveira, de S. Vicente da Beira.

- Ainda a 13 de julho de 1849, o Meirinho Filipe da Silva apresentou 170 pés de tabaco que arrancara na serra, em fazenda de Miguel dos Santos, que partia com Joaquim Dias e herdeiros de Maria Inês de Oliveira.

- A 14 de julho de 1849, Manuel Galvão Peixoto Lobato e Luciano Pereira de Paiva, empregados do Contrato de Tabaco, Sabão e Pólvora, encontraram na Ribeira do Ramalhoso, em posse de Helena Maria Duarte, mulher de João Caio, do Sobral do Campo, meia onça de sabão mole espanhol [cerca de 14 gramas]. Perante do Administrador do Concelho, a arguida disse que encontrara o sabão no lavadouro, ignorando de quem era. Os fiscais apresentaram como testemunhas Bernardo da Silva Marques e Cristina da Ressurreição, ambos também do Sobral do Campo.

- A 24 de setembro de 1849, Filipe da Silva, Meirinho do Contrato de Tabaco, Sabão e Pólvora, e os seus empregados Manuel Nunes Carrega e Vicente Gonçalves, encontraram, nas proximidades do Sobral do Campo, Pulquéria Casimira, viúva deste lugar, que levava numa cesta de verga, misturado com roupa, uma onça de sabão [cerca de 28 gramas], que não tinha as caraterísticas do que era comerciado pelo Contrato, mas parecia manipulado em estranha fábrica (fabrico clandestino). O sabão foi apreendido e levantado um auto.
O Administrador do Concelho era Bonifácio José de Brito Coelho de Faria e o escrivão João dos Santos Vaz Raposo. Manuel Ribeiro do Rosário era o subdelegado do procurador régio do Julgado de São Vicente da Beira e o seu escrivão chamava-se Francisco José Dias de Oliveira.

José Teodoro Prata

2 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Erva santa porque, desde que os portugueses chegaram ao Brasil até ao século XX, quando a ciência comprovou os seus malefícios, as pessoas pensavam que o tabaco tinha tantos benefícios para a saúde que lhe chamaram erva santa.

Por este documento ficamos a saber que a Serra já não era baldio no século XIX. Certas partes tinham já sido aproveitadas por particulares, como acontecera nos Carquejais, segundo a Memória da Indústria Agrícola, aqui publicada.

E Chico, está garantido: o documento refere que a plantação da erva santa do tabaco estava «...bem disposta e tratada...». Já em 1849 o tabaco se dava bem na Serra!

Anônimo disse...

Naquele tempo; ai de quem apanhasse um molho de mato, ai de quem apanhasse um molho de lenha
Um molho de Chamiços e já não era nada mau
Na Raia o ganhão tinha permissão para levar para casa a lenha que pudesse carregar "às costas". No carro de bois, mesmo vazio não era permitido
E hoje! os cartéis combinam entre si os preços.
Qual concorrência, qual carapuça.
J.M.S