quinta-feira, 18 de julho de 2019

Vocações


A minha terra é quase só uma rua, enfiada no fundo duma barroca. Hoje em dia já mal se lá vê gente. Não tarda, há de ser só silvas, telhados no chão e cães estendidos ao sol. Mas nem sempre foi assim. Antigamente todas as casas tinham gente; algumas até pareciam cortiços. Com tantas bocas a pedir pão, não ficava uma leira por tratar. Não eram tempos de grandes farturas, mesmo a trabalhar de sol a sol, mas também não se passava fome. E sempre havia alguma coisa para alguém mais necessitado que batesse à porta. Naquele tempo andava por lá muita gente a pedir esmola; chegavam de cesta vazia, que diziam que nos outros lados lhes davam pouco, mas ali, antes de acabarem o Pai Nosso pelas alminhas, já tinham alguma coisa na mão, nem que fosse só uma fatia de broa ou uma malga de azeitonas.
A sala da escola estava sempre à cunha; uma fiada de cachopos e outra de cachopas. No ano em que eu entrei, a professora era uma rapariga de fora. Quando a víamos chegar, nas segundas-feiras de manhã, montada num burro, até parecia a Nossa Senhora; só lhe faltava o Menino ao colo, como naqueles quadros da igreja. E ensinava bem: aluno que levasse a exame não fazia má figura ao pé doutro qualquer. Mas um ano, tinha eu feito a terceira classe, quando chegou o primeiro dia de escola, não apareceu; nem ela nem ninguém para o lugar dela. Mais tarde ouviu-se dizer que tinha havido para lá umas políticas, mas nunca se chegou a saber ao certo o que é que tinha sido.
Pela minha mãe, que não sabia uma letra, ficava-me por ali, mas o meu pai queria que eu fizesse pelo menos o exame da quarta. Sempre era uma enxada mais leve que me deixava, como ele dizia, e não de acomodou. Um dia, já perto do Natal, levantou-se cedo e disse que não contássemos com ele senão para a ceia, que ia tratar dumas vidas. E eu que fosse com as cabras para o mato, se o tempo levantasse. Quando chegou, quase noite, vinha feito num pito, mas até os olhos se lhe riam:
- Para o ano que vem vais para o Casal da Serra. Fui lá a falar com a minha irmã e ela diz não se importa que fiques em casa dela até ao exame.
Quando chegou a altura, lá abalo com a bolsa dos cadernos ao ombro, para casa da minha tia. Naquele ano estava lá um professor muito exigente: aquele que não tivesse a tabuada ou os rios e as serras na ponta da língua, eram logo duas ou três reguadas em cada mão. A mim não me deu muitas, que eu também era esperto e aprendia bem; às vezes até me punha a ensinar as contas aos que iam mais atrasados.
Quando chegou ao fim do ano mandou recado ao meu pai, que fosse lá a falar com ele. Nunca foi homem de grandes falas, o meu pai, mas, depois dessa conversa, mal abria a boca. Até cheguei a ter medo que o professor lhe tivesse feito queixas de mim. Mas um dia à noite ouvi-o a falar baixo com a minha mãe:
- O professor diz que o rapaz é esperto, e é uma pena se não continuar; mas o dinheiro mal dá para as décimas, como é que o mandamos Castelo Branco?  
- Manda-o para o seminário, que é capaz de ser mais em conta.
- Olha que não é mal pensado. Se calhar ao domingo já vou à Vila a ver o que é que se arranja.
Naquela altura nem sabia o que era um seminário e até julguei que fosse algum daqueles ricos que davam trabalho a toda a gente. Fiquei logo a pensar que era bom era que me metesse como pastor, que era o que eu mais gostava de ser. E até já me via, na serra, atrás de um grande rebanho de cabras. A semana passou-se e quando foi ao sábado à noite, depois da ceia, disse-me ele assim:
- Amanhã salta da cama cedo, que tens que ir despejar a presa; vai num pé e vem no outro, que ainda hemos de ir à missa do meio-dia.
À missa? Ele, que era tão mal amigo de lá ir, para arrelia da minha mãe! Algum santo estava para cair do altar…
- Vossemecê nunca vai à missa, o que é que lá vai a fazer amanhã?
- Isso agora não são contas do teu rosário; logo vês.
Quando chegámos à Vila já era quase meio-dia. A igreja estava à cunha, mas vi um sítio com umas grades, que até parecia um bardo, e perguntei ao meu pai se não podíamos ir para lá. Ele disse logo que não, que aqueles lugares eram só para a gente fina. Bem me pareceu, só pelas caras…
No fim da missa entrámos numa taberna já cheia de homens encostados ao balcão. Deviam-se conhecer todos, que quando viram o meu pai ofereceram-lhe logo de beber:
- Bota aqui mais um copo para este homem, que não há olhos que o vejam há que tempos!  
-É assim a vida... O pão não vai a ter sozinho a casa.
Depois de dois ou três copos, saímos da taberna e metemos por uma rua acima. Mais ou menos a meio, o meu pai bateu a uma porta e disse que era para falar com o Senhor Vigário.
- Ah, mas ele ainda está a almoçar. Têm que esperar um pouco.   
Passado um bom bocado mandaram-nos entrar. O meu pai foi à frente e eu fiquei à espera, à entrada. A seguir chamaram-me a mim. Era uma sala grande, com uma mesa no meio. O Senhor Vigário estava sentado à cabeceira, numa cadeira que parecia a dum rei; cheirava tão bem que até fazia crescer água na boca.
- Chega-te aqui para o pé de mim, meu filho.
Aproximei-me e ele deu-me a mão para lha beijar. Depois pôs-me a mão na cabeça:
- Com que então queres ir para o seminário… Muito bem! Muito bem! Do que a Igreja precisa é de muitas vocações como a tua. E vais dar um belo padre! Ai isso é que vais… Mal possa, vou tratar do assunto; fica descansado que hás de entrar já este ano.
Assim que lhe ouvi estas palavras, compreendi logo quais eram as intenções do meu pai, mas não abri a boca. Quando me apanhei na rua, pernas para que vos quero; nem via o caminho. Só parei já para lá do cemitério.
Vocações como a minha? Não queria ele mais nada! Eu, que com os doze acabadinhos de fazer, já me punha a olhar para as cachopas, rua acima, com o cântaro à cabeça… 
Vocações?

Maria Libânia Ferreira

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Já tínhamos saudades de uma boa história de vida.
As 12 anos, este já sabia o que não queria!

Margarida Gramunha disse...

Que saudades e que delícia.
Prestaram um grande serviço, os seminários, aos meninos que não tendo vocação tinham sede de estudar...

José Barroso disse...

Podia ser a história de muitos miúdos da época; com algumas pequenas alterações, até podia ser a minha! Era o tempo de um Portugal rural, sem grandes alternativas; os pobres aproveitavam o seminário para estudar, mas havia o problema de "olhar para as cachopas". E as regras do seminarista naquela altura era muito apertadas; vinham passar férias, mas tinham que andar de fato negro e assistiam à missa junto ao altar-mor. O Guerra Junqueiro na fase anticlerical, fez um poema sobre um padre acabado e sair do seminário. Era a sua perspectiva.
Os futuros padres tinham que ter já certos comportamentos próprios; por exemplo, na missa, não podiam olhar para trás. Ouvi um dia uma crítica de um seminarista para outro sobre um terceiro (do qual não digo o nome); este infringiria as regras olhando para trás, simulando, para isso, coçar a cabeça!
Conheço alguns ex-padres casados que gostariam de continuar a dizer missa, caso fossem autorizados. Acho isso muito digno. Infringir as regras, sendo padre, é que não é correto. Julgo que a Igreja terá que rever alguns regulamentos.
Abraços, hã!
JB.