quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O vinho

 

Depois da água, o vinho será a bebida mais antiga da história da humanidade, tendo adquirido, ao longo dos tempos, uma enorme importância sociocultural e económica que atravessou as civilizações mais remotas e chegou aos nossos dias. 

A sua origem é difícil de identificar, acreditando alguns que terá sido Noé quem plantou a primeira vinha, considerando outros que a bebida é uma dádiva dos deuses, supondo-se mais recentemente que o vinho apareceu por acaso, pela fermentação acidental de algumas uvas esquecidas dentro de um pote. 

Também não é possível conhecer exatamente o período em que terá sido plantada a primeira vinha, mas existem vestígios da sua existência desde há alguns milénios antes de Cristo, quando os povos se tornaram sedentários. Os Gregos terão sido os responsáveis pela sua expansão pelos territórios à volta do Mediterrâneo, mas seriam os Romanos a trazê-la e a impô-la nas terras que conquistavam, como marca da sua civilização e símbolo do seu poder. Foi o que aconteceu também na região que é hoje o território nacional. A vinha das Vinhas do Poço, nos arredores de São Vicente, remontará a esse tempo, mas existiram outras da mesma dimensão e importância onde se produzia vinho de boa qualidade (já lá vão uns anos largos, mas há quem se lembre ainda do da Dona Ludovina, feito pelo Ti António Russo, que pelos vistos era dos melhores de São Vicente).

 

Para além dos grandes produtores, era comum que quem tivesse um bocado de terra, própria ou arrendada, plantasse alguma vinha para fazer vinho para gastos da casa. Eram normalmente plantadas em terrenos mais pobres, onde não se podia cultivar milho ou batata, e era também frequente plantá-las nos quintais, dentro das povoações, a formar latadas. Não há muito tempo, por esta altura, era grande a azáfama em quase todas as famílias de São Vicente que se juntavam para a vindima. Depois de colhidas, as uvas eram acarretadas em dornas ou cestos por carros de bois, por burros, ou às costas e à cabeça de homens e mulheres. A seguir eram esmagadas no cerindão ou pisadas dentro dum tanque de cantaria onde ficavam a ferver durante alguns dias. O cheiro a mosto inundava as casas e as ruas, até à altura em que era transferido para os pipos. Depois era esperar até ao São Martinho, com alguma ansiedade, porque o prestígio dos homens também dependia da qualidade do vinho que fazia. Se era bom, convidavam-se então os parentes e amigos para o provarem, muitas vezes acompanhado por pão com azeitonas, queijo ou uma talhada de chouriça esquecida no fundo da talha. «O Ti Antonho este ano é que lá tem uma pinga boa!» ouvi algumas vezes ao meu pai.

 

O vinho teve um papel importante na prevenção e tratamento de várias doenças, sendo usado, desde os tempos mais antigos, como calmante, anticético, anti-inflamatório e analgésico. Não serão ainda de desprezar as alusões às suas propriedades energéticas e afrodisíacas. Devia ser por elas que me lembro de ver o meu avô a lamber-se todo com uma gemada feita com ovo, açúcar e vinho que a minha avó lhe dava todas as manhãs. Na altura pensava que era apenas por ser homem que ele tinha direito àqueles mimos; reconheço agora que bem precisava deles para criar o rebanho de filhos que Deus lhe deu e aguentar tanto trabalho em dias que começavam ainda o sol vinha longe e se estendiam para lá do anoitecer. 

 

Para além das propriedades medicinais, o vinho adquiriu também grande importância simbólica em várias religiões (os faraós ofereciam vinho aos deuses e os sacerdotes usavam-no em rituais religiosos). Na igreja católica a simbologia do vinho também está presente em vários momentos (o milagre das bodas de Caná, durante as quais Jesus transformou a água em vinho, e a utilização do vinho que se transforma no Sangue da Cristo durante a Consagração, são dois dos exemplos mais conhecidos). Tem tido também, ao longo dos tempos, um papel importante nas mais diversas manifestações da cultura popular, principalmente em momentos de festa e confraternização, como, por exemplo, os rituais de namoro e casamento.      

Entre nós, e noutras localidades da Beira Baixa, foi uso, até há relativamente pouco tempo, “pagar o vinho”: quando um rapaz de fora queria namorar uma rapariga da terra tinha que oferecer vinho em abundância a todos os rapazes para poder ser aceite como membro da comunidade. A exigência do “pagamento” acontecia normalmente a partir do dia em que o rapaz entrava dentro de casa dos pais da rapariga, o que significava que o namoro já era “sério”. Se o rapaz era pobre, as exigências não eram tão grandes, mas se era pessoa de posses, oferecia também pão com queijo e chouriço e contratava um tocador para se armar um bailarico.  

Entre nós ficaram famosos os versos atribuídos ao senhor José Lourenço para os rapazes da Vila quando quiseram ir pedir o vinho ao namorado de uma das filhas do senhor Manuel da Silva (há outras publicações no blogue sobre este acontecimento):

 

Meu capitão, dai-nos licença,

para que a rapaziada exponha

em carta, por ter vergonha,

de vir à sua presença?

 

São costumes pertinazes,

quando um estranho aqui vem

a pedir a filha à mãe,

ter de dar vinho aos rapazes.

 

Por isso, meu capitão,

vede lá como há de ser.

se esse uso tem de morrer,

que não seja em vossas mãos!

 

E os versos continuavam…

 

Em Penha Garcia era hábito os noivos oferecerem tremoços às raparigas e vinho aos rapazes nos proclames do meio (os proclames repetiam-se na missa por três domingos consecutivos). Na véspera do dia do casamento ofereciam doces e vinho a todas as pessoas que fossem dar-lhes os parabéns na casa que iam habitar.

No Ladoeiro era costume, na noite de núpcias, os rapazes amigos do noivo irem para a porta do novo casal dar-lhes os parabéns com quadras alusivas ao momento:

 

Como deves ser feliz

Neste momento, meu amiguinho,

Vem também animar-nos

Com um copo de vinho.

 

Um copo de vinho

A ninguém, pois, se nega,

Que nos sirva de proveito

E também p’ra sossega.

 

E a cantiga continuava com outras quadras até o noivo se levantar e vir à porta oferecer vinho e aguardente a todos. Esta tradição de saudar os noivos com cantigas na noite de núpcias era comum a muitas aldeias da Beira Baixa. Acontecia também em Monte Fidalgo, Perais, onde um amigo ou familiar do noivo ficava à porta do casal com um cântaro de vinho para dar de beber a toda a gente que por lá passava.

Na Partida, depois do jantar da boda no qual participavam todos os convidados do almoço, o baile continuava, mas os noivos saíam discretamente para casa. Passado algum tempo, os rapazes iam bater-lhes à porta e obrigavam o noivo a levantar-se e a dar-lhes de beber. Como já se sabia que isto ia acontecer, o vinho e alguns doces já estavam preparados de forma a despachar os intrusos o mais depressa possível.

 

Na festa do São João, no Rosmaninhal, o vinho e os tremoços, oferecidos pelo alferes (mordomo) eram distribuídos em abundância a todos os participantes, da terra ou de fora, ao longo dos dias que a festa durava. Um dos mais curiosos acontecia durante as cavalhadas (cortejo de cavaleiros que percorria as ruas principais): durante o percurso distribuíam-se tremoços, broas de mel e vinho que era transportado numa grande caldeira onde se mergulhava um copo com asa, e por onde bebia toda a gente.

 

A maior parte destas tradições, e tantas outras que ao longo do tempo animaram a cultura popular, têm vindo a perder-se com os anos. Felizmente que tem havido quem se dê ao trabalho de recolher e registar algumas dessas práticas para que não se percam também da memória. Foi o caso de Jaime Lopes Dias com o livro Tradições e Costumes da Beira Baixa, e também Luís Leitão com a monografia Partida onde fui buscar alguma da informação que aqui deixei.

Sobre o vinho resta-nos a consolação de, graças à introdução de novas castas, melhores processos de cultivo e produção e ao trabalho dos enólogos termos disponíveis uma variedade grande de vinhos, e cada vez de maior qualidade. Assim haja oportunidades de irmos confraternizando! 

 

Maria Libânia Ferreira

Um comentário:

José Teodoro Prata disse...

Bom apanhado sobre o vinho.
Curei algumas gripes(?) com vinho quente adoçado com a mesma quantidade de açúcar. Não era fácil de beber e provocava um suadouro enorme (depois de o beber ia-se logo para a cama). Depois de suar, tínhamos de mudar a roupa.