Já sabíamos que, de nós todos, os velhos são quase sempre a parte mais fraca da sociedade. Por problemas de saúde de vária ordem (incluindo, cada vez mais, as doenças neurológicas), perda de autonomia e autoestima, pobreza e solidão. A situação torna-se ainda mais grave quando se trata de velhos institucionalizados, como estes tempos de pandemia que vivemos têm mostrado.
Quando há já alguns vinte ou trinta anos viajávamos pelo interior de Portugal, começou a ser frequente encontrar, logo à entrada ou nalgum cruzamento dentro da localidade, uma placa a sinalizar a existência de um lar ali perto. Para quem tivesse vivido sempre em cidades grandes até poderia pensar que se tratava de um sinal de progresso, mas para os que nascemos na aldeia, crescemos entre a casa dos nossos pais e a dos nossos avós, e nos habituámos a vê-los envelhecer e morrer junto da família, a existência de tantas destas instituições parecia-nos uma realidade pouco natural. Hoje todos reconhecemos que são um mal necessário resultante das transformações sociodemográficas e das alterações na estrutura e dinâmica familiar, e não há forma de regressar ao passado, mas deveríamos entendê-los como último recurso e não, como acontece demasiadas vezes, como a primeira alternativa para responder às necessidades de assistência dos mais velhos ou às dificuldades da família em cuidar deles.
Tenho andado à volta de um livro lançado há tempos em Castelo Branco. Trata-se da tese de mestrado de uma enfermeira cujo trabalho de campo decorreu nos dois lares da Santa Casa de Misericórdia da cidade. Diz ela que um número muito significativo de utentes refere estar satisfeito com o tratamento que recebe (a caracterização inicial das instituições dá a entender que existem efetivamente boas condições, em termos de espaço e de equipamentos, mas sobretudo nos cuidados dispensados); adianta também que há muitas pessoas que dizem ter sido elas mesmas a tomar a decisão de ir para o lar. Contudo, refere alguns estudos que dizem que esta declaração nem sempre corresponde à realidade: muitas pessoas dizem isso apenas para desculpabilizarem os familiares (quase sempre os filhos); outras é por vergonha, porque no seu meio de origem, ir para o lar ainda é um estigma; outras querem dar a entender que, mesmo nesta fase da vida, ainda tiveram poder para decidir, embora isso não corresponda à verdade, na maior parte das situações. Mas há também quem se lamente e diga que tratou dos pais ou dos sogros até à hora da morte, e a eles obrigaram-nos a abandonar a casa e o que tinham conseguido numa vida inteira de trabalho, e meteram-nos ali, longe de tudo. E lembrei-me deste poema da Hélia Correia:
Velhos
Diz-se que há-de vir
uma era justa e boa
em que o valor da pessoa
se mantém quando envelhece.
Está no trabalho que fez.
Para conseguir uma coisa como esta
dava o sangue que me resta.
E era como se tivesse
nascido mais uma vez.
Deram-nos este banco de avenida
onde a sombra nos dói e a tarde gela
e daqui vemos nós passar a vida
Sem que a vida nos sinta perto dela.
Assim nos atiraram para fora
das coisas que ajudámos a fazer.
Ai, como o sol aquece pouco agora.
Ai, muito custa à noite adormecer.
Fomos pedreiros, varredores, ardinas
fizemos casas, cultivámos terras,
criámos gado, entrámos pelas minas,
demos os filhos para as vossas guerras.
Demos as filhas para vos servir,
cortámos lenha para a vossa fogueira.
E o tempo a ir-se, e a gente a pressentir
que vos demos sem querer a vida inteira.
E ainda é sangue o que nas veias corre.
Ainda é raiva o que nos dobra a mão.
Ainda ecoa um sonho que não morre
no nosso velho e atento coração.
Neste dia 1 de outubro, Dia Internacional do Idoso, este poema é como que um murro no estômago. Oxalá tocasse também a consciência de quem tem poder para tornar mais digna e humanizada esta fase da vida a que todos esperamos chegar.
M. L. Ferreira
Nota: A imagem foi retirada do Google
3 comentários:
Há tantas coisas que dizer (escrever) sobre os nossos mais velhos, que nem apetece pegar no assunto.
A maneira como são tratados reflete a sociedade que somos: afetuosa, materialista, gananciosa, centrada em instituições e não pessoas (em lares e não cuidadores), sem responsabilização...
A forma como os tratamos, às vezes mal, outras muito bem e a maioria assim assim, não é muito diferente do que acontece no resto da sociedade, sobretudo com os mais desprotegidos, seja porque são pobres, seja porque vivem um pouco à margem, por muitas razões.
Pouco podemos dizer acerca da situação dos velhos. O nosso desejo é uma coisa, a realidade é outra. Com alteração social do trabalho, as famílias deixaram de ter condições de poder cuidar dos mais velhos. Apesar dos direitos que têm vindo a ser conferidos (cuidadores informais,etc.), s situação não é satisfatória. Nem nunca será, porque o ideal era que as pessoas pudessem estar no seu meio o com os seus. Nós, porém, não pudemos ter tudo. Porque lá tínha que um dos membros do casal deixar de trabalhar. Voltavamos ao mesmo, porque o mais certo era ser a mulher. E lá se ia a sua emancipação... Os lares têm, pelo menos alguns, melhores condições do que tinham as casas antigas; têm profissionais, etc. Sinceramente, não vejo outra solução... Estou a lembrar-me do título de um livro do André Malraux; isto é verdadeiramente, "A Condição Humana" (embora o conteúdo do livro não tenha nada a ver com este assunto); por isso, me estou a lembrar de outro livro do Valter Hugo Mãe "A Máquina de Fazes Espanhóis" que,inversamente,o título não tem, mas o conteúdo tudo a ver com o nosso tema. No meio de tudo isto, ainda me apetece gritar para os Lares, como a MEO grita para os seus clientes:"HUMANIZEM-SE"! E mais não posso dizer. Abraços, hã! JB
Penso que é mesmo o mais importante: HUMANIZAÇÂO!
Para além disso, uma maneira de ajudar a resolver o problema de alguns pessoas que só vão para o Lar por não terem quem os ajude em casa, era a implementação de um serviço de apoio domiciliário que prestasse cuidados de acordo com as necessidades de cada um (alimentação, higiene, acompanhamento a consultas, etc). A desculpa, quase sempre, é a falta de pessoal. Atualmente na nossa terra temos três famílias de refugiados que, com a devida formação, poderiam ser envolvidas num projeto deste tipo de apoio. Era bom para eles, que ganhavam o próprio sustento e se sentiam mais integrados na comunidade, e para nós, que resolvíamos um dos grandes problemas destes tempos.
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