terça-feira, 30 de março de 2021

Castelo Branco, Cidade: 250 Anos

 

Os 250 anos de elevação de Castelo Branco a cidade (em 1771) foram assinalados com várias iniciativas, entre as quais a publicação deste livro de muitos autores: vários da cidade, dois de Alcains e um de cada freguesia do concelho. 

Fui convidado pela nossa Junta de Freguesia para escrever sobre nós. Tentei retribuir esta honra com um texto que nos dignificasse e penso que o consegui: na apresentação fui um dos autores destacados pelo apresentador (Dr.º João Ruivo) e a Paula Reis, do Louriçal, antiga presidente da Junta e cronista do Reconquista, escreveu no último número do jornal uma crónica a partir de ideias lançadas no meu texto, reforçando-as (a crónica intitula-se Gardunha 2021).

Só muito recentemente me apercebi da responsabilidade que carreguei aos ombros e por isso o que atrás deixei foram meros rebuçados que me deram alguma tranquilidade. Escrevi primeiro um texto histórico, mas após um dia de trabalho concluí que não era isso que nos interessava. O passado tinha de constar  para explicar o presente e projetar o futuro. O espaço era limitado e houve aspetos que ficaram necessariamente de fora. Mas penso que ficámos bem representados e que o texto reflete o que somos e mostra as nossas potencialidades.

O livro é uma coletânea de textos, a maioria muito bons. Estará certamente à venda na Biblioteca Municipal de Castelo Branco. Aqui vos deixo o texto que nos representa:


Viver com qualidade em São Vicente da Beira

A freguesia de São Vicente da Beira é terra de transição entre a Gardunha, o campo albicastrense e a charneca encravada no arco que a serra faz para sudoeste. Abundam os vestígios arqueológicos que comprovam a presença humana nos últimos três milénios antes de Cristo e nos séculos seguintes, até à fundação da nacionalidade. De realçar, o topónimo Paradanta (Pedra de anta), uma aldeia de montanha; o Castelo Velho, num penhasco alcantilado por cima do Louriçal, com quem o partilhamos; inúmeros vestígios arqueológicos romanos no sopé da serra, entre a Ocreza e a Ribeirinha, sobretudo na zona das Vinhas.

Conta a lenda que, em meados do século XII, os moçárabes desta zona ajudaram D. Afonso Henriques contra os muçulmanos, na batalha da Oles, limite entre São Vicente e o Louriçal. Em agradecimento, o rei autorizou-os a fundar uma povoação, a que deu o nome de São Vicente, ofertando-lhes algumas relíquias do santo, cujos restos mortais acabavam de chegar a Lisboa, resgatados do Promontório Sacro, ainda sob domínio dos infiéis.

Este território vicentino foi depois delimitado pelo foral concedido por D. Sancho I, em 1195. Na doação que seu pai fizera da Herdade da Cardosa à Ordem do Templo ficara de fora o território da margem direita da Ocreza e nele o rei traçou os limites do novo concelho: os cumes da Gardunha, a norte, a ribeira de Almaceda, a oeste, e a ribeira da Ocreza, a sul e a este.

Destes anos primordiais serão as ermidas de Santiago, junto à Partida, e da Senhora da Orada, já dentro da serra, junto à via romana.

Os anos finais da Idade Média e o alvorecer da Modernidade foram fecundos por aqui. Datam deste período a maioria dos templos da freguesia e um rico património artístico, quase na totalidade de caráter religioso.

Outro período marcante foi o século XVIII, que constituiu o culminar deste mundo antigo a que se convencionou chamar Antigo Regime. São Vicente da Beira tinha juiz de fora licenciado; era terra de chegada de um importante fluxo migratório com origem na zona interior do reino entre o Zêzere e o Douro; as filhas da elite local de médios lavradores e rendeiros casavam com os filhos de elites de outras zonas; a Vila tornou-se um dos principais polos industriais do atual concelho de Castelo Branco, beneficiando da ligação com a Real Fábrica de Panos da Covilhã.

Neste século XVIII, que também foi marcante para a vila de Castelo Branco, cuja elevação a cidade, em 1771, evocamos na passagem dos 250 anos, assistiu-se a um reforço da ação governativa. São Vicente da Beira tinha Castelo Branco como centro regional. A supervisão do concelho vicentino era feita pelo corregedor da Comarca, pelo provedor da Provedoria e pelo bispo da nova diocese, sediados em Castelo Branco. Pela nova cidade passava tudo o que ultrapassasse a esfera concelhia.

Em 1807-12, as Invasões Francesas foram o princípio do fim deste Antigo Regime, pela desorganização política, económica e social que trouxeram ao reino de Portugal. Em 1820, chegou o liberalismo, a que se opôs quase toda a elite política, económica e religiosa da região e consequentemente também a de São Vicente da Beira. No nosso caso de forma mais gravosa, pois a família dos Condes de São Vicente, grandes proprietários absentistas, integraram o exército miguelista, na guerra civil

Uma vez consolidado o liberalismo, os médios proprietários e rendeiros apossaram-se das terras comunais e compraram as da Igreja e dos proprietários absentistas, fortalecendo as emergentes casas agrícolas (visconde de Tinalhas, da Casa Cunha e da Casa Conde).

Mas o antigo mundo da autossuficiência agrícola e artesanal estava a mudar: a indústria recentrou-se na Covilhã e as grandes rotas comerciais passavam no campo, tal como mais tarde a linha do caminho de ferro. Por isso o concelho de São Vicente da Beira foi extinto em 1895, no contexto de uma reforma administrativa do reino.

Hipólito Raposo escreveu que a extinção foi a contento dos comerciantes de Castelo Branco e de facto parece que ficámos zangados por umas boas décadas, embora a cidade tivesse continuado a ser o nosso centro administrativo.

O dinamismo industrial dos anos 70 do século passado, no eixo Alcains-Castelo Branco, recentrou-nos a sul, num tempo de desaparecimento do mundo rural, que na Vila significou o fim das grandes casas agrícolas e o reencontro com nós próprios.

Estas últimas décadas têm sido de afirmação de uma nova identidade vicentina que ainda não sabemos muito bem como é (porque em constante construção). Deixo algumas ideias-força que nos definiram no passado e podem ajudar-nos a contruir o futuro.

A serra da Gardunha como unidade orgânica de plantas, bichos e homens, o habitat a que pertencemos, desde sempre, inscrito já no nosso código genético. Falta-nos um projeto integrador para as três freguesias serranas (Louriçal, São Vicente e Almaceda), em articulação com o que se faz na vertente norte, concelho do Fundão.

As albufeiras do Penedo Redondo, Pisco, Santa Águeda e no futuro talvez Barbaído, todas alimentadas na totalidade ou em parte pelas águas que escorrem da Gardunha, na nossa freguesia. Enriquecem-nos a fauna e a flora e constituirão um entrave à desertificação futura.

O Castelo Velho, a escassos metros da rota da Gardunha do Geoparque NaturTejo, é um património histórico e natural incontornável. Nunca estudado, continua a esconder os segredos da civilização castreja que ali floresceu e o papel que desempenhou durante a Reconquista, juntamente com os seus filhos, o Castelo Novo e a Torre do Louriçal.

O caminho de Santiago, percurso de ares e águas frescas e saudáveis. Seguia de Castelo Branco, por Cafede (ponte e ermida de Santiago), Freixial, em linha reta para o Mourelo, Partida (capela de Santiago), subindo para a Paradanta até à portela que corta a serra ao meio e é a sua travessia mais baixa, continuando depois pelo vale da ribeira das Ximassas até ao Castelejo, rumo a Compostela.

A ermida da Senhora da Orada, num recanto acolhedor da Gardunha, junto à estrada romano-medieval que seguia do campo para a Beira, local ideal para o viajante descansar e se refrescar, antes de subir para a Portela de São Vicente, hoje Alto da Portela. No século XVI, ainda o povo se juntava e ali vinha fazer novenas, proibidas pela Igreja. Alberga hoje o retábulo policromado da igreja do extinto convento das religiosas franciscanas, em adiantado estado de degradação. Nas imediações, são exploradas as águas Fonte da Fraga.

O património artístico gótico-manuelino e renascentista é outra das nossas potencialidades. Pinturas e esculturas integrarão o futuro museu de arte sacra, sendo algumas obras de proveniência estrangeira. A família Costa, daqui originária, que desempenhou o cargo de Armeiro-Mor do reino, nos séculos XVI a XVIII, detinha a comenda de S. Vicente da Beira da Ordem de Avis, cabendo-lhe administrar a Igreja. Foi a esse título que terá adquirido algumas destas obras de arte, assim como outras incrustadas nas paredes das capelas e de casas particulares.

A religiosidade popular, que tem como momentos altos as romarias de Santiago e da Senhora da Orada, a Semana Santa, a Procissão dos Terceiros e a festa do Santo Cristo.

A singularidade das nossas terras. Nas aldeias, habitações, templos, fontanários, fornos, e moinhos de um tempo que persiste na memória. As nossas aldeias de montanha, Vale de Figueira, Paradanta e Casal da Serra, tão em harmonia com a paisagem como as da Charneca (Tripeiro, Mourelo, Violeiro, Pereiros e Casal da Fraga). A seguinte frase do ti Meguel Jerolme diz tudo sobre as suas gentes: «Nunca te preocupes, filho. Aqui, na Charneca, há sempre uma mesa com qualquer coisa para comer e uma cama, se for preciso, nem que seja uma faixa de palha». E a Vila, a lembrar o urbanismo romano: a grande praça com o seu pelourinho manuelino, ladeada pela Igreja, Misericórdia e Casa da Câmara, e depois as ruas em quadrícula.

E a terminar, as nossas gentes, desde os mais ilustres, que se foram da lei da morte libertando, aos mais humildes, todos nos deixaram por herança este chão onde só queremos ser felizes.

José Teodoro Prata

3 comentários:

M. L. Ferreira disse...

Nem sempre Castelo Branco é notícia por motivos que nos deixem tranquilos; muito menos orgulhosos. Mas por vezes temos dias felizes. Hoje acordei com a notícia da publicação de um livro sobre o Jardim do Paço. Fotografias (ou desenhos?) de José Mauel Castanheira e poemas de António Salvado, dois grandes albicastenses. Uma preciosidade que há de fazer-nos reviver muitos momentos bons passados naquele jardim, um dos mais bonitos do país.
Um pouco mais tarde temos aqui a notícia deste "Castelo Branco, uns olhos ficam tristes por partir, uns olhos partem triste por ficar" (que lindo, este nome!), com textos sobre todas as freguesias do concelho. São Vicente está bem representado, como seria de esperar. Oxalá se cumpram as ideias-força do passado e inspiradoras do futuro.
Mas, se calhar, tem que se mudar a perspetiva como se encaram os assuntos, como diz a Paula Custódio no texto do Reconquista, porque o território mudou. No último domingo, já farta de estar confinada, meti-me no carro e, passando pelos Pereiros e Mourelo, fui ter ao Tripeiro. Percorrendo as ruas quase todas das povoações, cruzei-me com meia dúzia de pessoas, a maior parte mulheres velhas, vestidas de luto carregado, sentadas à porta de casa, ainda com a lágrima no olho pela morte dos maridos e a suadade dos filhos, a viver longe. Mas a generosidade é a mesma: uma das pessoas insistiu comigo "entre, só para comer um miguelhinho de páo". Não entrei, mas tive que trazer uma alface e uma migadura de couves, se não era uma desfeita...

José Barroso disse...

Vocês disseram muita coisa importante. O Zé Teodoro (ZT) traça um estudo sobre o que foi o dealbar da Vila, algumas das suas vicissitudes e, por fim, o declínio. Eu só queria respigar um aspeto que penso ser o cerne da questão deste último.
É o ZT que o diz: S. Vicente da Beira, começou, verdadeiramente, a definhar, com a decisão da mudança das principais vias de comunicação pelo campo. A EN nº. 18 (chamada estrada real), primeiro. E depois o caminho de ferro. Aquela, sobe a Serra da Gardunha por Alpedrinha; o segundo, contorna a própria Serra! Além de outros aspetos, terá sido esta a machadada final em S. Vicente!
Já há muito que me interrogo sobre esta questão: por que razão não se abriu a estrada real e o caminho de ferro, de Castelo Branco para o Fundão e Covilhã pelo Sudoeste da Serra (em vez de Nascente), mais ou menos por onde está traçada a EN 352? O caminho romano de Castelo Branco não vinha dar às Vinhas, Corredoura, Sra. da Orada, Calçada do Alto da Portela (e depois descer para Alcongosta)? Acho, aliás, que era ainda utilizado há uns anos para ir a pé de S. Vicente para Castelo Branco.
Subir a Gardunha por Alpedrinha (a EN 18) e contorná-la por Vale de Prazeres (o caminho de ferro) foi mais barato e trouxe vantagens ao Estado? Quase de certeza que não! Para cúmulo, quando, há poucos anos, quiseram construir a A23 tiveram que (imagine-se bem!) furar a Serra! Quando pelo Sudoeste nada disso era preciso! Pela dificuldade de furar a Serra, sempre acalentei a esperança de a A23 vir passar por S. Vicente! Era sorte a mais! Além da hipótese do traçado da EN 352, havia ainda (como também refere o ZT), a linha seguida pelo Caminho de Santiago, também na nossa zona! Começo a acreditar que, pelo menos de início, o Hipólito Raposo teve razão quando falava no "Oferenda" sobre a maquinação dos lojistas de Castelo Branco! Embora não compreenda porquê!
E assim se fez a história! Nunca tivemos influência em nada e quando quisemos tê-la, estavam os condes de S. Vicente a apoiar o rei Miguel! O resto foi o que já conhecemos. Sabem o que eu acho? Somos uns azarentos! Mas será só isso?!
Abraços, hã!
JB.

José Teodoro Prata disse...

Neste momento não tenho total certeza, nem me lembro onde guardei essa informação, mas o projeto inicial do traçado do caminho de ferro era de Vila Velha de Ródão diretamente para Madrid, sem sequer passar por Castelo Branco, seguindo a linha do Tejo, para unir as duas capitais ibéricas.
Foi o Vaz Preto da Lousa que a puxou para cima, embora talvez a questão não seja assim tão simples, pois o antigo traçado implicava a continuação da linha do lado espanhol, que ainda hoje não existe. Se calhar, o atual traçado de entroncar na linha da Beira Alta foi a nossa solução caseira. Mas perdeu-se uma ligação direta Lisboa-Madrid.
Com todo ou parte do mérito, lá se fez um busto ao Vaz Preto, atualmente no largo da Sé.
Sobre o facto de a linha não ter seguido o traçado do nosso caminho de Santiago, nesse tempo São Vicente já não riscava nada e até a gestão financeira da câmara era deplorável (existe um documento sobre isso, em que se propõe a formação de um novo concelho integrando o de São Vicente, com sede em Alpedrinha ou Alcains, não me recordo bem). E do outro lado da serra ficava/fica a zona pobre/humilde do concelho do Fundão!
Há anos, fiquei de boca aberta ao constatar que em meados dos anos 60 a Soalheira já tinha eletricidade, quando nós, se não fosse a barragem, nem no final da década. Mas, lá está, vivia na Soalheira um ramo familiar dos Vaz Preto.