Depois de parte do dia perdidos por Viseu (cidade antiga, mas sempre nova em cada visita), encontrámo-nos com o Aquilino. Sentado à secretária, meditativo, quem sabe se a engendrar mais alguma daquelas histórias que nos transportam pelo imaginário dum mundo rural cada vez mais esquecido, mas ainda parte das memórias mais acarinhadas de muitos de nós.
Foi quanto bastou para nos metermos a
caminho da Lapa, numa visita adiada há anos. Os dias grandes de verão, onde
cabem dois de inverno, permitem-nos estas coisas.
Chegamos já sobre o cair da tarde. As
casas de granito velho a assomar ao longe, confundidas com as fragas; não
fossem os telhados berrantes, mal se dava por elas. Destaca-se, pelo tamanho, o
casarão austero, em forma de paralelepípedo, colado à igreja por um arco. Já
foi casa de jesuítas, mais tarde colégio de meninos ricos, filhos do que
restava da nobreza rural ou de proprietários abastados; excecionalmente, mas não
raro, escola de um filho de mãe solteira, recomendado por um pároco que se dizia
padrinho, e que, por descargo de consciência, lhe dará o nome à hora da morte.
Agora é abrigo dos muitos peregrinos que, movidos pela fé, por memórias antigas
ou a beleza austera do lugar, por ali se aventuram ainda.
Àquela hora, no largo à frente da
igreja, só um cão deitado ao sol, que mal deu pela chegada de estranhos. Tão
longe daqueles dias de romaria que esvaziavam de gente as terras todas à roda,
e conhecemos tão bem de viagens imaginárias como se alguma vez ali tivéssemos
peregrinado: a devoção das mulheres, de joelhos por terra e rosário entre os
dedos, às voltas ao santuário; os homens, comerciantes ou lavradores, a
regatearem gado e artigos de lavoura, mais tarde a selar acordos nas tabernas
improvisadas ao correr da rua; a gente mais moça a arregalar os olhos para as
novidades das tendas; as bulhas a deslindar teimas antigas, não raro na ponta
da navalha; os pobres, aleijadinhos e lazarentos, que não despegam, a pedir
esmola pelas alminhas do purgatório; os namoros acertados no abraço da dança ao
toque das bandas, e os amores consumados no silêncio das fragas, com promessas
de casamento; os foguetes a trovejar montes afora, ou desfeitos em lágrimas, a
pintarem a noite de todas as cores.
Ao fundo da rua que corre para poente,
um velho encostado a um choupo também antigo; o tronco caído para a frente e as
mãos apoiadas em concha, uma por cima da outra, na ponta do cajado. Parecia
dormir em pé. Mal deu por nós levantou um pouco a cabeça e olhou-nos sem surpresa,
como se estivesse ali à nossa espera. Não era um velho bonito, mas tinha um ar
simpático e a conversa na ponta da língua. Os olhos azuis, já a cair para o cinza,
mas ainda brilhantes e desafiadores, a espreitarem por cima dos óculos empinados
na ponta dum nariz reboludo, deformado pelas bexigas. Quando falava, os lábios
grossos deixavam espreitar os dentes ralos que pareciam querer fugir-lhe da
boca atrás das palavras:
- Também vieram ver as lapas? Não me
digam que na vossa terra não têm lá disto?!
-
-
Ah, mas de sorte serão assim tão taludas como estas… Donde é que vêm?
-
- É longe como o diabo! Não é que eu conheça,
que mal passei de Viseu pra baixo nem pra riba de Lamego.
-
-
Já viram a capela? Está ali uma coisa como é dado. Nem há outra igual nestes
arredores todos. Uns artistas, aqueles antigos!
-
-
E a história, também já a sabem?
-
-
Então vão ouvi-la como ma contou o meu pai, que também já a ouvira dos mais
velhos:
«Já lá vão muitos anos, tantos que diz
que nem têm conto, costumava andar por aí uma pastora a guardar cabras; trazia
a filha com ela, uma menina chamada Joana, muda. Nunca ninguém lhe tinha ouvido
uma palavra da boca para fora. Um dia, já sobre a tarde, o céu escureceu de
repente, como de fosse noite, e armou-se um temporal tão grande que elas mal
tiveram tempo de se acoitar numa lapa, coisa que por aqui não falta. A menina
era curiosa, como são todas as crianças, enfiou-se por uma passagem estreita
que entrava pela gruta adentro, e lá no fundo encontrou uma nena caída no chão,
tão bonita como nunca tinha visto outra igual.
A mãe tinha ateado uma braçada de
chamiços para se aquecerem e, enquanto assava uma mão de castanhas que levava
no bolso, pediu-lhe, lá naquela maneira que tinham de se entender, que fosse
espreitar as cabras, não fugissem pra longe. A menina nem tuge nem muge, não
buliu um pé. A mulher ateimou, mas ela cada vez mais salamurda, só tinha olhos
para a boneca; mirava, remirava, parecia que estava a adorar o Menino Jesus na
manjedoura. Até que a mãe perdeu a paciência, que as mães são umas santas, mas
às vezes também perdem a paciência, arrancou-lhe a nena das mãos e aventou com
ela para o lume.
-
Mãe, o que é que fizeste à Senhora da Lapa?
A mulher, que nunca lhe tinha ouvido uma
palavra, também ficou sem fala quando ouviu a filha a falar, e não teve dúvida
de que o que ela dizia era a mais pura das verdades. Enfiou a mão no lume e
salvou a Senhora do fogo. Por milagre nem ela nem a imagem ficaram com uma
chamuscadela e a menina também começou a falar. Só podia ser graça da Nossa
Senhora.
Quando se espalhou a notícia daquele milagre tão grande, o povo mandou fazer uma capela e levaram para lá a imagem, mas, mal se descuidavam, ela desaparecia do altar onde a punham e vinham dar com ela no sítio onde a menina a tinha achado. Fizeram-lhe então outra capelinha à roda da lapa, e nunca mais a Senhora de lá saiu. E puseram-lhe a Senhora da Lapa, até hoje.
Desde essa atura todos os anos lhe fazem
uma romaria como não há outra igual entre Douro e Mondego. O ouro que lhe
trazem para pagar promessas é mais que o das malas dos ourives que andam por
essas feiras fora. E notas, só das graúdas. Mas ela também merece, que os
favores que faz dão brado pra lá da raia.»
A conversa continuou à mesa do café, mesmo em frente da igreja, alimentada por fatias de bola de carne e uns copos de Terras do Demo. Soube a pouco, o petisco e a conversa...
M. L. Ferreira
5 comentários:
Nesse casarão austero terá Aquilino feito aquilo a que chamaríamos hoje o ensino básico (Colégio de Nossa Senhora da Lapa).
Este texto fez-me lembrar um livro do escritor que li não há muito tempo: "Uma Luz ao Longe". A casa que inspirou Aquilino parece ter sido mesmo esse casarão onde estudou, pois o seminário de Lamego, para onde depois Aquilino Ribeiro foi estudar, não teria a ruralidade nem a proximidade à casa materna que a história do livro retrata.
Nessa história, que parece autobiográfica, o adolescente vivia com a mãe no campo e o pai andava fugido duma qualquer acusação. Na realidade, Aquilino era filho de uma camponesa e de um padre.
E que bem escreve a Libânia!
Também li esse livro há pouco tempo (a Livraria da Fraga proporciona-nos ainda estas preciosidades, já difíceis de encontrar), e foi ele um dos “culpado” desta viagem.
A referência aos filhos dos padres, às suas vantagens e influências de toda a ordem acontece com mais ou menos frequência na obra de vários autores, mas com Aquilino Ribeiro é quase uma obsessão. Não conheço todos os livros dele, mas, dos que já li, é raro que não exista um eclesiástico com a sua prole a viverem vidas bem mais fáceis que o resto da população. Só quando li um pouco da sua biografia é que percebi.
E as coisas que havia para dizer, principalmente agora, que têm sido divulgadas notícias tão tristes sobre o assunto…
Nada mais há a dizer, que o que diz o ZT: E que bem escreve a Libânia!
reportagem fantástica.
abraço FB
Obrigado pela prosa, Libânia.
Viagens ao cheiro dos livros são boa coisa.
Tenho uma autora de eleição, se a confissão é possível por terras de Enxidros: Isabel Lucas, com duas viagens dessas em livro - uma nos Estados Unidos e outra (muito recente, saiu, creio, em Setembro passado, vou comprar amanhã) no Brasil.
Cumprimentos atrasados.
Sebastião Baldaque
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