quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A Senhora da Lapa

Depois de parte do dia perdidos por Viseu (cidade antiga, mas sempre nova em cada visita), encontrámo-nos com o Aquilino. Sentado à secretária, meditativo, quem sabe se a engendrar mais alguma daquelas histórias que nos transportam pelo imaginário dum mundo rural cada vez mais esquecido, mas ainda parte das memórias mais acarinhadas de muitos de nós.

Foi quanto bastou para nos metermos a caminho da Lapa, numa visita adiada há anos. Os dias grandes de verão, onde cabem dois de inverno, permitem-nos estas coisas.

Chegamos já sobre o cair da tarde. As casas de granito velho a assomar ao longe, confundidas com as fragas; não fossem os telhados berrantes, mal se dava por elas. Destaca-se, pelo tamanho, o casarão austero, em forma de paralelepípedo, colado à igreja por um arco. Já foi casa de jesuítas, mais tarde colégio de meninos ricos, filhos do que restava da nobreza rural ou de proprietários abastados; excecionalmente, mas não raro, escola de um filho de mãe solteira, recomendado por um pároco que se dizia padrinho, e que, por descargo de consciência, lhe dará o nome à hora da morte. Agora é abrigo dos muitos peregrinos que, movidos pela fé, por memórias antigas ou a beleza austera do lugar, por ali se aventuram ainda.

Àquela hora, no largo à frente da igreja, só um cão deitado ao sol, que mal deu pela chegada de estranhos. Tão longe daqueles dias de romaria que esvaziavam de gente as terras todas à roda, e conhecemos tão bem de viagens imaginárias como se alguma vez ali tivéssemos peregrinado: a devoção das mulheres, de joelhos por terra e rosário entre os dedos, às voltas ao santuário; os homens, comerciantes ou lavradores, a regatearem gado e artigos de lavoura, mais tarde a selar acordos nas tabernas improvisadas ao correr da rua; a gente mais moça a arregalar os olhos para as novidades das tendas; as bulhas a deslindar teimas antigas, não raro na ponta da navalha; os pobres, aleijadinhos e lazarentos, que não despegam, a pedir esmola pelas alminhas do purgatório; os namoros acertados no abraço da dança ao toque das bandas, e os amores consumados no silêncio das fragas, com promessas de casamento; os foguetes a trovejar montes afora, ou desfeitos em lágrimas, a pintarem a noite de todas as cores.

Ao fundo da rua que corre para poente, um velho encostado a um choupo também antigo; o tronco caído para a frente e as mãos apoiadas em concha, uma por cima da outra, na ponta do cajado. Parecia dormir em pé. Mal deu por nós levantou um pouco a cabeça e olhou-nos sem surpresa, como se estivesse ali à nossa espera. Não era um velho bonito, mas tinha um ar simpático e a conversa na ponta da língua. Os olhos azuis, já a cair para o cinza, mas ainda brilhantes e desafiadores, a espreitarem por cima dos óculos empinados na ponta dum nariz reboludo, deformado pelas bexigas. Quando falava, os lábios grossos deixavam espreitar os dentes ralos que pareciam querer fugir-lhe da boca atrás das palavras:

­ - Também vieram ver as lapas? Não me digam que na vossa terra não têm lá disto?!

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 - Ah, mas de sorte serão assim tão taludas como estas… Donde é que vêm?

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 - É longe como o diabo! Não é que eu conheça, que mal passei de Viseu pra baixo nem pra riba de Lamego. 

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 - Já viram a capela? Está ali uma coisa como é dado. Nem há outra igual nestes arredores todos. Uns artistas, aqueles antigos!

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 - E a história, também já a sabem?

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 - Então vão ouvi-la como ma contou o meu pai, que também já a ouvira dos mais velhos:

«Já lá vão muitos anos, tantos que diz que nem têm conto, costumava andar por aí uma pastora a guardar cabras; trazia a filha com ela, uma menina chamada Joana, muda. Nunca ninguém lhe tinha ouvido uma palavra da boca para fora. Um dia, já sobre a tarde, o céu escureceu de repente, como de fosse noite, e armou-se um temporal tão grande que elas mal tiveram tempo de se acoitar numa lapa, coisa que por aqui não falta. A menina era curiosa, como são todas as crianças, enfiou-se por uma passagem estreita que entrava pela gruta adentro, e lá no fundo encontrou uma nena caída no chão, tão bonita como nunca tinha visto outra igual.

A mãe tinha ateado uma braçada de chamiços para se aquecerem e, enquanto assava uma mão de castanhas que levava no bolso, pediu-lhe, lá naquela maneira que tinham de se entender, que fosse espreitar as cabras, não fugissem pra longe. A menina nem tuge nem muge, não buliu um pé. A mulher ateimou, mas ela cada vez mais salamurda, só tinha olhos para a boneca; mirava, remirava, parecia que estava a adorar o Menino Jesus na manjedoura. Até que a mãe perdeu a paciência, que as mães são umas santas, mas às vezes também perdem a paciência, arrancou-lhe a nena das mãos e aventou com ela para o lume.

 - Mãe, o que é que fizeste à Senhora da Lapa?

A mulher, que nunca lhe tinha ouvido uma palavra, também ficou sem fala quando ouviu a filha a falar, e não teve dúvida de que o que ela dizia era a mais pura das verdades. Enfiou a mão no lume e salvou a Senhora do fogo. Por milagre nem ela nem a imagem ficaram com uma chamuscadela e a menina também começou a falar. Só podia ser graça da Nossa Senhora.

Quando se espalhou a notícia daquele milagre tão grande, o povo mandou fazer uma capela e levaram para lá a imagem, mas, mal se descuidavam, ela desaparecia do altar onde a punham e vinham dar com ela no sítio onde a menina a tinha achado. Fizeram-lhe então outra capelinha à roda da lapa, e nunca mais a Senhora de lá saiu. E puseram-lhe a Senhora da Lapa, até hoje. 

Desde essa atura todos os anos lhe fazem uma romaria como não há outra igual entre Douro e Mondego. O ouro que lhe trazem para pagar promessas é mais que o das malas dos ourives que andam por essas feiras fora. E notas, só das graúdas. Mas ela também merece, que os favores que faz dão brado pra lá da raia.»

A conversa continuou à mesa do café, mesmo em frente da igreja, alimentada por fatias de bola de carne e uns copos de Terras do Demo. Soube a pouco, o petisco e a conversa...

M. L. Ferreira

5 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Nesse casarão austero terá Aquilino feito aquilo a que chamaríamos hoje o ensino básico (Colégio de Nossa Senhora da Lapa).
Este texto fez-me lembrar um livro do escritor que li não há muito tempo: "Uma Luz ao Longe". A casa que inspirou Aquilino parece ter sido mesmo esse casarão onde estudou, pois o seminário de Lamego, para onde depois Aquilino Ribeiro foi estudar, não teria a ruralidade nem a proximidade à casa materna que a história do livro retrata.
Nessa história, que parece autobiográfica, o adolescente vivia com a mãe no campo e o pai andava fugido duma qualquer acusação. Na realidade, Aquilino era filho de uma camponesa e de um padre.

José Teodoro Prata disse...

E que bem escreve a Libânia!

M. L. Ferreira disse...

Também li esse livro há pouco tempo (a Livraria da Fraga proporciona-nos ainda estas preciosidades, já difíceis de encontrar), e foi ele um dos “culpado” desta viagem.
A referência aos filhos dos padres, às suas vantagens e influências de toda a ordem acontece com mais ou menos frequência na obra de vários autores, mas com Aquilino Ribeiro é quase uma obsessão. Não conheço todos os livros dele, mas, dos que já li, é raro que não exista um eclesiástico com a sua prole a viverem vidas bem mais fáceis que o resto da população. Só quando li um pouco da sua biografia é que percebi.
E as coisas que havia para dizer, principalmente agora, que têm sido divulgadas notícias tão tristes sobre o assunto…

Anônimo disse...

Nada mais há a dizer, que o que diz o ZT: E que bem escreve a Libânia!
reportagem fantástica.
abraço FB

Anônimo disse...

Obrigado pela prosa, Libânia.
Viagens ao cheiro dos livros são boa coisa.
Tenho uma autora de eleição, se a confissão é possível por terras de Enxidros: Isabel Lucas, com duas viagens dessas em livro - uma nos Estados Unidos e outra (muito recente, saiu, creio, em Setembro passado, vou comprar amanhã) no Brasil.
Cumprimentos atrasados.
Sebastião Baldaque