segunda-feira, 13 de junho de 2022

Dia de trabalho

             Rosto sereno, emoldurado por veneráveis cabelos brancos, a tia Maria ficara ainda a dormir. Bernardo Garrancho, o seu homem, levantou-se, como de costume, de madrugada, ainda escuro. Não acendeu a candeia de azeite para não a acordar.

O apelido 'Garrancho', nunca é demais recordar, era, na verdade, uma alcunha. Vinha-lhe de ter o indicador direito, torto, resultado da cura deficiente de um golpe com a tesoura de podar.

Mal pôs o pé no chão de madeira, Garrancho sentira o ar frio a cortar. Tinha vestida uma camisola interior, branca, grossa, e umas ceroulas felpudas de algodão da mesma cor, com que costumava dormir. Calçou as meias grossas e as  alpercatas. Para se agasalhar, vestiu por cima dos bragais um casacão de lã, com gola de peliça, que se encontrava pendurado atrás da porta do quarto. Pôs uma boina com protetores de orelhas, a apertar por baixo do queixo.

Saíu, a tatear na escuridão, porque conhecia bem o espaço, passou, com pés de gato, na sala da Casa Velha, onde havia, encostados à parede, três grandes arcazes com o rico grão do trigo, milho e centeio. Abriu a porta da varanda. Apanhou com uma baforada de ar gelado! Puxou melhor o casaco para o pescoço e foi encostar-se à grade robusta de madeira, a ver o tempo! Nesta altura do ano começava a pensar nas sementeiras e, conforme as aparências da meteorologia, assim tinha que decidir os afazers do dia de trabalho.

A varanda deitava para o Casarão, a céu aberto, que uma parede grossa de pedra e um portão, separavam da rua. O chão encontrava-se  atapetado de uma camada de giestas, carqueja e urze, traçadas, que, por ação dos microrganismos, se transformava lentamente em estrume para fertilizar a terra.

Ao fundo, coberta pela plataforma da varanda e pelo sobrado da Casa Velha, mas com suficiente luz, havia a grande loja e o curral, sempre lastrados a mato novo, cortado a podão, com uma boa mão cheia de palha velha nas camas dos animais. Onde habitavam, de um lado, a burra, a Preta, grande, forçuda, mansa, garbosa, de inteligência e porte quase equinos! E do outro, o bácoro, o corricho, nome este por que eram, afinal, chamados todos os porcos da vila. Mas ao qual não pagava a pena pôr nome próprio, porque nunca passava do mês de fevereiro. Ao contrário do 'Carrafuço', o porco da tia Pulquéria do Casal da Fraga, que ela tinha dó de matar e cujos caninos, por causa da velhice, lhe saíam já da boca para fora!

Em casa de Garrancho, não! Todos os anos, porco  morto, todos os anos posto! Às vezes até criava dois, um na vila, outro na serra! Mas o destino de ambos era o mesmo: a salgadeira!

Do vigoroso tabuado, a toda a largura da varanda, Garrancho olhou o firmamento, despido de névoas. Límpido e de um negro intenso!

"Que escuridão! E que silêncio vai nesta casa!", disse para si.

Era pelos meados do mês, nas entranças da primavera! O que supunha e requeria alvoradas mais claras. Mas, porque era lua nova, aquela manhã era breu. E com o céu sem nuvens, naquela época do ano, havia sempre mais frio. O intrépido e velho aldeão era bem conhecedor das travessuras que o tempo, ou o diabo por ele, com as suas bizarrias, pregava aos homens! Uma sabedoria à custa de levar em cima com muitos sóis, muitas luas, pedrisco, barrufos, gravanadas, nevões e ventanias; e de roer muita branquinha com códão de dente de cavalo, que alto lá com ele! Com os pés a apanhar frieiras e a doerem-lhe dentro das botas por mor daquele rigor invernal! O que lhe valia era o surrobeco e as bouchas que acendia!

Pôs-se a olhar mais fixamente. Mirou, tornou a mirar!

Do que vinha nos livros dos netos, sobre os astros é que não percebia nada! Nunca se sentara nos bancos duma escola com quadro, carteiras, meninos e professor!

Vai lá, vai! Esses bancos tinham sido as piçarras graníticas na serra da Gardunha. Desce criança que lhes subia para cima e sentava-se a ver a planície lá em baixo! Deitava-se, depois, de barriga para cima, no topo das colossais pedras a olhar o sol; ou a descortinar, de certo ângulo, nos monólitos ali à volta, aparentes figuras de pessoas ou animas, talhadas pela erosão dos séculos!         

De lá, vigiava as cabras que andavam em baixo, espalhadas pela encosta, a tosar as medranças do mato; assobiava-lhes e, se fosse preciso, ralhava-lhes:

"Raios parta as cabras, que não veem o marco! Olha que ele é bem grande! Ah! velhacas...! Vá lá ver!"

À voz corretiva dele, os animais sustinham o avanço à entrada da mancha de pinheiros, que elas bem conheciam, onde os terrenos confinavam. Conheciam, mas nem por isso deixavam de prevaricar.

"No fundo - dizia Garrancho para os seus botões - as cabras pouco diferem dos homens, por mais que estes tenham a prosápia da superioridade racional; ambos são tontos e abusam, se alguém lhes dá confiança! Mas antes me quero com cabras que com certos homens!"

Se Bernardo Garrancho não sabia uma letra do tamanho da torre da praça, vá lá, que, de pequeno, sempre lhe tinham ensinado o sete-estrelo, minúsculo, longínquo, com os seus asteriscos esbatidos; a estrela da manhã e a estrela da tarde que, pelo seu brilho, ao amanhecer e ao entardecer, saltavam logo à vista no céu! Se estas estrelas não eram, afinal, estrelas, mas os planetas Vénus ou Mercúrio, isso seriam avé-marias de outro rosário!

Era o que lhe zurziam os netos, que já frequentavam a escola e liam o Almanaque de S. Miguel.

Os tempos eram outros! Os cachopos, praticamente acabados de desmamar, em vez de se iniciarem nas tarefas de guardar o gado, regar a horta ou ir à lenha para o lume, começavam mas era a compreender as coisas do mundo naqueles papéis com letras e números!  E davam cabo da paciência ao avô com  as suas cabecinhas ariscas de flosa. 

"Ora o raio da cachopada, hã! Dizerem aquelas coisas dos livros! Ainda há dias nasceram...! E põem-se a falar como gente grande!", congeminava.

Mas naquela madrugada não havia trapaças do tempo! Estava tudo lavado! Nada de cirros ou cúmulos. Pela lua nova a face do satélite, voltada para a Terra, não recebia nenhuma luz solar, acentuando-se o negrume da noite!

Deixá-lo! Sabia lá ele nada das fases da lua! Do que tinha a certeza, era que, naquelas alturas, as noites apareciam de um negro retinto e não se vislumbrava o mínimo da luminosidade leitosa da lua. Dizia-o Garrancho, sem saber a causa do fenómeno e confirmava-o a ciência pela boca dos netos. Os livros e a experiência da vida, afinal, complementavam-se.

Era, porém, nessa cerração intensa que melhor se lia e perscrutava a imensidão do cosmos; que se estendia a seus olhos como uma infinita cápsula negra, fina, lantejoilada, a relampejar brilhos furtivos de luz; que parecia não se coadunarem com a quietude do mundo, que só começava àquela hora a ser quebrada pelo ladrar de um cão ou pelo cantar de um galo! Perlas a fulgir, espalhadas num manto de veludo escuro, estendido no espaço, que o clarão da aurora nascente não pudera ainda esbater aos olhos do observador! Embora não os compreendesse e muito menos soubesse os seus nomes, assombrava-se com o trapézio de Orion e as suas três-marias, como velas a alumiar o altar da Virgem; impressionava-se com a Cassiopeia numa admirável linha quebrada de ângulos obtusos; deslumbrava-se com a Ursa Maior e com a Ursa Menor e punha-se à cata da Estrela Polar no céu! 

Causava-lhe surpresa o sentido com que se compunham as constelações e se organizavam as figuras. Não sabia o porquê de tudo aquilo! Punha-se, por vezes, a pensar se ao menos lhe era lícito imaginar que podia, simplesmente, não existir coisa nenhuma! Porém, encarava logo ali com aquilo tudo à sua frente. Imanência ou transcendência?!

O certo é que se sentia pequeno! Parecia que alguém tinha assim arrumado os dados do universo. Uma certa ordem, sussurrava-lhe que estava alguém atrás daquela obra. Impunha-lho, categoricamente, à consciência, o esmagamento de tal grandiosidade! Um homem sem letras, pensava ele, pese embora de grande coração, não tinha capacidade para compreender tais mistérios. Não obstante, os sábios, com todos os seus conhecimentos, andavam tão inquietados como ele, por causa destas coisas que, por serem tão incompreensíveis, a maioria das pessoas preferia nem pensar nelas.

"Homessa! Que estou eu para aqui a cogitar? É melhor tornar as coisas mais simples! Quero lá saber do universo! O que me interessa é o que vou comer ao almoço! E, para hoje há, para amanhã Deus dará! É quanto basta! Quando morrer vou deitado e para onde os outros forem, devo ir eu também!"

Tentava assim desenvencilhar-se e sair por cima do emaranhado dos seus pensamentos. Ao cabo, não sabia bem o que sentir, se desassossego, se esperança. Porém, tinha uma certeza: quando pensava na morte, acalentava uma enorme ânsia de continuar a viver, de se projetar no futuro. E isso voltou a fazê-lo deter-se.

"Quando a terra me comer, há de ser o fim de tudo?"

Não podia obter uma explicação, pelo menos, evidente! Só podia fazer a abservação muda do mundo. E podia entrever, com clareza, que aquela ânsia de viver que sentia, era a sua fé!     

 

 

O avanço da manhã, fê-lo, de repente, regressar à realidade da vida quotidiana e desprender-se daquele encantamento. Não podia continuar mais tempo a contemplar o céu estrelado! A alvorada vinha aí, mostrava-se, fazia bater o dente àquela hora, mas estava limpo, adivinhando-se bom tempo com o avançar do dia! Lá dizia o ditado: "Março, marçagão, manhã de inverno, tarde de verão!" 

Compôs novamente a gola de peliça e subiu à cozinha. A mulher, entrementes, levantara-se entanguida. Já se encontrava à volta da lareira a aquecer-se e começara os afazeres domésticos. Por causa da obscuridade, ainda acendera a candeia de azeite. Na cozinha, de telhado singelo, a telha de vidro, queria principiar a luzir a modos que a medo! Com o sol, durante o dia, formavam-se óculos de luz através das irregularidades das telhas, a bater no sobrado, onde se via claramente o fumo da lareira que, em certas ocasiões, os netos, a brincar, tentavam, em vão, agarrar! A cozinha era pouco térmica. Tinha-se esfumado, de todo, o calor do brasido da noite anterior. A tia Maria acendia o lume na grande pedra do lar, sem chaminé. Acima do lume, a telha mourisca, sem forro, por onde saía o fumo, que enegrecera as paredes de pedra nua. E depois o céu infinito!

         Colocou, como de costume, a pichorra grande da água para fazer o café, encostada às brasas. A panela grande de ferro, essa, estava sempre ao lume, a aquecer água. Tirava-se a que fosse precisa e compensava-se com fria para amornar. E assim, havia sempre água para as necessidades diárias imediatas. 

O fumo e o calor pilavam as castanhas num caniço, por cima, mas chegado ao lado da lareira, próximo do teto, preso aos caibros por quatro fortes ganchos de ferro. O caldudo de castanhas fora a base da alimentação em épocas de míngua. Agora, eram já poucas. A maioria dos castanheiros fora substituída por oliveiras, que davam o apreciado fio dourado do azeite! As chouriças e morcelas, dispostas ao longo das varas, ao lado das castanhas, iam sendo lentamente curadas.     

         Bernardo Garrancho tirou dois latões de água a ferver para um jarro esmaltado. Desceu para uma pequena divisória com postigo, ao lado da porta da varanda, deitou a água na bacia metálica do lavatório, onde havia também um espelho e toalhas. Temperou-a com água fria do cântaro que estava sempre ao lado do lavatório. Tirou o casacão de peliça. Lavou a cara e limpou-se. Despiu a roupa de dormir, branca, que a mulher lavava amiudadamente na pedra do tanque de água da serra e punha a corar, na relva do rego da levada. Às vezes, também lavava algumas peças pequenas, cá em baixo, no caminho onde passava todos os dias, no Ribeiro do Marzelo. Um ribeiro que, à época, levava imensa água, graças ao regime pluvioso de chuvas abundantes! E onde ela também tinha o seu lavadouro de pedra!

         Era segunda-feira, início da semana de trabalho. Garrancho envergou uma camisola interior lavada e uma camisa forte para o trabalho, em flanela. Ensebou as botas de cabedal com sola de pneu, para amaciar e proteger o material.

          Botar as botas nos pés e calçar as calças era o que íamos escrever. Mas para obedecer às regras do idioma, temos que dizer que calçou as botas e vestiu as calças de ganga, lavadas, que trazia a cote. Por cima da camisa pôs um colete de surrobeco amarelo de lã semi-grosseira que a tia Maria lhe comprara no mercado, para os domingos comuns, mas que ele já deixara de levar à missa. Pelas costas, pôs um casaco compridote, um género de capote, mas mais curto, do mesmo tecido, um pouco coçado, mas ainda bom para trazer no dia a dia. 

O neto, Salvador, também se levantara. Estava a fazer as suas higienes da manhã no lavatório de ferro, amovível, a um canto do quarto, com a porta aberta e luz vinda da varanda. Penteou-se para trás e pensou que tinha cabelo à Ivanhoe. Por isso, fez uma pose fotográfica, a ensaiar para as festas de verão. Era quando um homem vinha a tirar retratos à praça. Mas setembro ainda lá vinha longe! Ao espelho, julgando-se bem parecido, encheu-se de nove horas! De repente, ouviu-se: 

"Salvador, ó Salvador!" Quando é que te despachas? Anda lá, filho!", gritou lá de cima a avó Maria a quem parecia demasiado longa a demora do neto! "Esta mocidade, quando é para trabalhar, nunca têm pressa! Se fosse para ir para a praça passear, ia logo a correr!", desabafou.

"Vou já, minha avó!", respondeu o neto.

"Deixa-o andar!", disse, ironicamente, o marido  para a mulher. "Algum dia há de aprender! Quando for para a tropa, se não se apresenta a tempo e horas na parada, começa a levar umas cachaçadas e depois diz que o diabo que o tenta!" 

Finalmente, o rapaz vestiu-se para o trabalho, um pouco atabalhoadamente. Como de costume, tinha que ir para a serra, para os necessários afazeres da jornada. O normal era ir guardar o rebanho das cabras. Já tinha saído da escola e ajudava em muitas tarefas. Mais ligeiro, trepou à cozinha e sentou-se num banco demasiado baixo, que já lhe causava desconforto para as pernas um pouco longas. Estava espigadote. E principiou o almoço que a avó já tinha posto na mesa da cozinha.

Garrancho sentou-se, como habitualmente, ao lume, no velho tronco de sobreiro que lhe servia de assento, onde a tia Maria lhe faria chegar a malga cheia e o pão com o conduto.

O almoço era café, no qual misturavam leite de cabra, ordenhado no dia anterior à noite, na serra, e já fervido. Não tinha tempo de se cortar. Era o cortas! Onde se ia cortar, com toda a certeza, era no estômago com os sucos gástricos! O pão era de centeio ou broa e, por vezes, de trigo, com margarina comprada na loja e queijo, chouriço ou azeitonas da casa. Mas a dejejua podia ser só leite com sopas de broa migadas e, para quem gostasse, um pouco de mel ou açúcar amarelo.

Muitas vezes, porém, optavam por uma refeição mais substancial: batatas fritas com ovos estrelados, feijão pequeno com morcela assada e cebola crua; ou mesmo, sopa forte de feijão grande encarnado e pão. Desta forma resistiriam melhor às canseiras desgastantes das fainas agrícolas!  

Comido o almoço, ala que se faz tarde. Fazia frio, mas Garrancho não era homem de receios quanto ao tempo. Já se disse que o conhecia bem. Atravessara invernias geladas e estios abrasadores! Estava calejado! Já não era como na época de rapaz casadoiro!

"Setenta, sempre são setenta!", confessava ele aos amigos, quando o desafiavam diante de mais meio quartilho, nas sociedades da taberna.  

 "Atreves-te, Bernardo"?, mangavam na roda!

Fazia-se forte.

"Se me atrevo? Ó rapazes, não me dasifieis, que vós não me conheceis bem!"

Bebia sem descansar.

Mas a idade tudo trazia e não era coisa boa! Um homem não tinha preço ou medida na sua dignidade. Mas nas questões da idade principiava a ter o seu limite. E naquela manhã sem nuvens, o ar golpeava como vidro! Em março, a maioria dos anos, ainda se davam as tais geadas brancas e, pior que as brancas, as negras, a estalar por baixo das botas; e ainda nevava abundantemente, não só na vizinha Estrela, quiçá, também na Gardunha!

Por isso, as constipações fortes de congestionar, pôr os olhos a prantear e o nariz a correr, eram comuns! A ponto de molhar quase todos os lenços do açafate. Mais sabão azul e mais trabalho para a tia Maria! O que era certo é que nunca tinham tomado um comprimido, apesar das mazelas  próprias do tempo.

"Humm... Temos sempre muito que fazer. Adoecer é um luxo para a gente das cidades que não faz nada!", concordava o casal de velhos.

Os vizinhos admiravam-se mesmo como é que eles concordavam sempre em tudo! Eram muitos anos a virar frango, que é como quem diz, a lavrar, a semear, a guardar o gado, a bater o fado na serra, ao pé um do outro!    

Cepa como a deles é que já não havia! O estetoscópio ou lá como aquilo se chamava, só era conhecido no hospital da Misericórdia da vila! A farmácia ficava cara! Afinal, tudo batia certo e era conveniente! 

Ele curava o pingo com copos de uma aguardamente muito boa, feita das borras do seu vinho, que destilava no alambique da praça. Uma bagaceira que fazia subir, e muito, a escala do alcoolímetro!

"Para manhã fria, aguardente quente!", dizia o amigo Tonho Racha que gostava muito dela; e Garrancho concordava.

Assim o diziam, assim o faziam. Garrancho aquecia-a, singela ou com açúcar ou mel. Ao lado do terreiro da entrada da Casa da Serra, estava um muro de pedra e por cima dele, uma fileira de cortiços de abelhas rodeados de alecrim. E rosmano e flores era por todo o lado! Davam mel para os gastos e sobrava.

Havia as constipações mais agarradas, sempre com a garanta a pigarrear. Às vezes, era só uma. Começava em novembro e ia até fevereiro.  A terapia, para além da aguardente, compunha-se de chás, lume e, à noite, cama e cobertores, tudo bem agasalhado. Para a tia Maria a receita era a mesma! Mas, em vez de copos cheios, tomava pequeninas chiscas:

"Ó Bernardo, faz favor, chega-me aí um bocadinho de aguardente quente com mel! Mas muito poucochinho, se não posso ficar tonta!", ria-se.

Qual hospital da Misericórdia?! Nem as portas lhe conheciam! E quanto ao dr. Alves, médico muito competente, só o costumavam ver ao domingo no camarim da igreja, na missa do dia.

Os bons genes de Garrancho e Maria, aliados àqueles tratamentos caseiros, permitiam-lhes resistir às sezões. O corpo exsudava, desembaraçava-se de uns vírus e adaptava-se a outros. Costumava ser assim, especialmente na mudança do verão para o inverno! Uma semana ou, no máximo, duas, depois do tempo arrefecer, tudo voltava ao normal! Quem os queria ver rijos e saudáveis, era ir espreitar à fazenda, onde ele assobiava que nem um melro, atrás da burra, a lavrar. Quando chovia, a terra estava tão macia que a charrua a rasgava com facilidade. Podiam então ouvi-lo dizer

"Ó Maria, ela está que parece galinha!" 

A esta habitual observação, a mulher já sabia o que responder: 

"Pois está! Mas não queiras tu fazer dela canja!"

Riam-se.

Enquanto a sementeira avançava, ela seguia-o fielmente, acompanhando a lavoura com o sacho junto ao tronco das árvores, onde a charrua não podia passar. E punha-se a cantarolar, como vinha fazendo desde o primeiro rego da lavrada, tão jovialmente como uma grafonola nova!

 

 

Naquela manhã, avós e neto, desceram da cozinha à Casa Velha a falar daquele dia de trabalho. O que era preciso fazer e o que não era. A burra, assim que ouviu a voz do dono, cantou, a lembrar que, antes de sair para o trabalho, queria, entrementes, mais uma gavela de caneirões. Tão certo, como exato era o Cortébert, o relógio de bolso de corda de Garrancho, assim era pontual o zurrar da Preta!

O porco, ao ouvir bater os caldeiros da vianda, logo pela manhã, entrava numa chiadeira infernal, à espera que a dona lhe trouxesse o almoço. Não era necessário deslocar-se à furda. Deitava-lho diretamente para uma grande pia de pedra, lá em baixo, através do alçapão de tampa removível, aberto no sobrado da grande varanda.

Os dois homens desceram ao Casarão por uma escada de madeira móvel, enquanto a tia Maria deu a volta pela Casa Nova.

Trouxeram a burra, a Preta, para a rua e aparelharam-na.  

"Tome lá! Aceite aí a cillha desse lado", disse Salvador para o avô.  "Vai…!"

"Isto está fixe! Podes ir andando para a serra", disse para o neto. "Põe-te a andar! Vai à frente a deitar as cabras."

"Não quer que o ajude a carregar a burra?"

"Não! Agora é cá comigo. Vou pôr as cangalhas, encher dois cestos de estrume e levo no meio uma taleiga de milho para as galinhas. Deito a sobrecarga e aperto o arrocho, se for preciso. Anda, vai lá! Depois, eu e a tua avó seguimos atrás de ti."

E o neto foi.

Os primeiros raios da aurora, já com boa claridade, foram apanhá-lo no Alto do Caldeira. Olhou para trás e viu os avós lá em baixo, no vale, a caminhar com o seu vagar atrás da burra. O dia começava a nascer para mais um dia de trabalho!

 

JOSÉ BARROSO

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom! Que nostalgia desses belos e maravilhosos tempso!

M. L. Ferreira disse...

Grande exercício de memória e fantasia, que será também mais uma homenagem nostálgica dos José Barroso aos seus avós! E neles quase todos os nossos, que mal sabiam uma letra, e dos caminhos do mundo pouco mais conheciam que os que levavam ao trabalho, mas, mesmo assim, com enorme amor à vida.
Em vários momentos fez-me lembrar esta crónica do José Saramago, publicado n’ A Capital em março de 1968:

Carta para Josefa, minha avó

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o Sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.
Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião: herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti a palavra Vietnam é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada da torre da igreja, (contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.
Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste nunca de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua cara enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Porque foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que não me acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: « O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»
É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.



José Teodoro Prata disse...

Bonito texto que nos fala do mundo em que ainda vivemos, em crianças. Nem tudo era bom, aliás eram-no poucas coisas, mas ficou-nos a nostalgia de desses tempos difíceis em que em todo ocaso fomos felizes. Curioso que sejam as sensações relacionadas com o contacto com os elementos da Natureza as que nos deixaram marcas mais fortes (o frio, a escuridão, o sabor das frutas...).