Marcou a infância de muitos de nós. Na transição entre a casa e a escola, foi quase mãe, quase professora, algumas vezes enfermeira e psicóloga. Para mim, uma amiga até hoje.
Não acontece muitas vezes, que a vida tem as suas voltas,
mas quando nos encontramos ficamos que tempos esquecidas numa conversa dobada à
volta de tudo, e acaba, quase sempre, a lembrar os anos felizes de antigamente:
«Tive muitos desgostos na vida, mas considero-me uma mulher
de sorte pela profissão que tive, que me deu tantas alegrias.
Comecei a trabalhar aos vinte anos, ainda a escola era na
Praça, e era só o Professor Couto e a mulher, a Dona Emília. Ele era muito boa
pessoa, calmo, respeitador, mas quem o quisesse ver contente era a tocar
violino. Nos dias em que resolvia pôr-se a tocar, aquela sala era uma alegria.
Até eu ficava a escutar atrás da porta. Os alunos pelavam-se por o ouvir; até
os mais desassossegados. O pior é que alguns aprendiam mal as outras coisas e
quando iam ao quadro não acertavam nas contas nem nas tabuadas, e os ditados
era uma miséria: quase tantos erros como as letras. Mas ele não lhes batia, que
não tinha feitio para isso: chamava-me e mandava-me levá-los à sala da mulher.
Ela já sabia ao que iam e pegava logo na régua. Não tinha dó nem piedade e até
me fazia doer o coração ver aquelas mãos todas encarnadas e, quantas vezes, as
lágrimas a escorrer-lhes pela cara abaixo.
Depois veio aquela lei de obrigar os pais a pagar uma multa
se não mandassem os filhos para a escola, e tiveram que mandar mais professores
(naquele tempo eram quase só mulheres) e abriram-se mais salas. Eram quatro,
todas cheias; só da Vila e dos casalitos aqui à volta eram à roda de cem alunos,
da primeira à quarta classe.
Alguns faltavam muito, ou porque não gostavam da escola e
antes queriam ir aos ninhos e a nadar, ou porque os pais precisavam deles (as
raparigas era quase sempre para tomarem conta dos irmãos mais novos e os
rapazes para ajudarem nos trabalhos do campo). Ás vezes também era por
desleixo, mas quando faltavam dois ou três dias seguidos as professoras
mandavam-me logo ir a ver deles. Subi muitas vezes as ruas do Cimo de Vila e
cheguei a ir ao Casal da Fraga a buscar alguns. Esses, assim que me viam, nem
era preciso dizer nada: pegavam na bolsa e punham-se à carreira à minha frente,
muitas vezes descalços. Só me lembro de um que uma vez estava com uma perrice
tão grande que me deitou as mãos à bata e deixou-ma sem um botão. Às vezes eram
as próprias mães que me iam chamar, porque os filhos não queriam sair da cama
para ir para a escola. Era quase sempre porque não tinham feito os deveres e
estavam com medo da professora. Naquele tempo as condições não eram como agora;
muitas crianças não tinham ninguém que puxasse por elas nem luz para estudar.
Algumas, nem roupa lavada para vestir…
Nos intervalos deixava o café ou o chazinho já feito para
as professoras e ia para o recreio a guardá-los. Às vezes deixava-me ficar só
no balcão, a olhar, e deixava-os brincar à vontade. Elas faziam rodas, saltavam
à corda, jogavam ao lenço e à linda falua; dava gosto ver. Os rapazes era mais
jogar à bola ou ao berlinde, ao botão e ao pião. Corria quase sempre tudo bem,
mas se algum fazia batota ou tinha mau perder, zangavam-se e armavam cada bulha
que era o fim do mundo. Quando o recreio acabava, se as professoras perguntassem
alguma coisa, Deus me livrasse de fazer queixa fosse de quem fosse; só se não pudesse
esconder. Elas bem sabiam que eu às vezes não contava a verdade toda, mas
tinham confiança em mim.
Durante os primeiros anos de trabalho ainda era solteira, e
mesmo depois de casada estive mais de dez anos sem ter filhos; quando veio o
meu Fernando já nem esperava. Se calhar por isso considerava aquelas crianças
da escola quase como se fossem também meus filhos e gostava de as ver bem
tratadas. Também não tenho nada a dizer de nenhum deles, e de algum mais
maroto, quando nos encontramos, ainda hoje nos rimos das malandrices que
faziam. Deve ser por isso que muitos me convidavam para madrinha quando faziam
o Crisma; alguns que até já nem andavam na escola. O ordenado era pequeno, e às
vezes mal chegava para comprar uma lembrança a cada um, mas eu gostava de lhes oferecer
sempre uma prendinha, normalmente uma blusa às raparigas e uma camisa aos
rapazes.
Naqueles anos todos que trabalhei na escola passaram por lá centenas e centenas de alunos. Alguns ficaram por cá, mas muitos foram viver para longe, em Lisboa ou no estrangeiro, e vejo-os pouco. Às vezes já nem os conheço, mas eles lembram-se bem de mim, e quando me veem falam-me sempre. Se calha a irem com alguém, algum filho, neto ou até já bisnetos, voltam-se para eles e dizem logo: “Esta é a Menina Zezita da minha escola!” É a melhor paga que podia ter...»
M. L. Ferreira
5 comentários:
A menina Zézita foi uma personagem marcante na minha infância na escola. Um dia lembro-me de ter caído no recreio e bati com o queixo no lancil do jardim e claro, de ela me ter tratado. Da presença constante nos recreios, nas filas quando havia a vacinação, na cantina...transmitia calma e carinho. Também a recordei na minha publicação em nov/2016...
"Então, as meninas fazem uma fila sob o olhar vigilante da menina Ilda e da Senhê Zézita. As vacinas que custam mais são aquelas em que rasgam a pele com um aparo até fazer uma estrelinha. Doem mais, mas tem que aguentar senão as outras riem-se.
À hora do almoço, vai à cantina, que é por detrás da igreja. Desce um degrau: de um lado e do outro há várias mesas compridas de madeira com bancos corridos..."
Tina Teodoro
Que bonito texto que descreve tão bem a pessoa que é e que faz parte das nossas memórias da infância: dedicada, meiga, atenciosa, paciente, simpática...
É tão bom encontrá-la e falar com ela e constatar a felicidade que demonstra em cada memória recordada, que reflete bem o quanto amou a profissão, ou missão que desempenhou na vida dela. Adorei.
Tina Teodoro
Sobra a ti' Zezita escrevi, neste blog, em 22/04/2020, em "Remoer Pecados Velhos", sob o nome de "Zita" (afinal, a segunda metade do nome dela), o seguinte:
"A professora mandava mesmo avisar, pela boca da Zita que, caso as ordens não fossem cumpridas, se preciso fosse, a Guarda Republicana se encarregaria de passar lá por casa e depois logo se veria...! O mais certo era o Manuel ter que pagar a multa de oitenta mil e quinhentos."
Isto, presume-se, era quando ela andava pelas ruas à procura dos alunos que faltavam à escola!
Também tenho (quem não tem?), como tantas gerações anteriores e posteriores de vicentinos, muito boas recordações do tempo da escola primária na Vila, com a Menina Zezita! Entrei em 1959, já ela lá estava e já era casada (com o Joaquim Mestre). Muitas professoras (menos professores) passaram. Algumas estiveram na vila uma vida inteira, outras apenas um ou dois anos letivos, mas a Menina Zezita permanecia.
Ela tentava tomar conta da malta, o que muitas vezes era difícil. Eram muitos alunos e os rapazes não eram fáceis de segurar, sobretudo os mais velhos! No entanto, penso que ela se saía muito bem, porque tinha a sua forma própria de atuar com uma voz, às vezes firme, mas nunca severa e muito feminina, à qual os meninos e meninas, em geral, obedeciam.
De vez em quando lá ia ela com a garrafa de tinta azul-escura encher os tinteiros de argila branca das carteiras!
Bons tempos! Os livros, as aulas, o dia de tirar as chapas aos pulmões, o dia das vacinas (com o Zé Abiche e outros a fugir das agulhas), as cantinas, etc. Uma aventura!
Sobre a falua, a dança e cantar das raparigas no recreio, de que fala a Libânia, sempre me pareceu ouvir o seguinte estribilho (e não era só eu):
"Ai linda baloa que lá vem, lá vem,
É uma baloa que vem de Belém."
Estava errado! Só há pouco tempo é que percebi que não era "baloa", mas sim "falua", nome de um pequeno barco típico usado pela população na zona de Belém (Lisboa).
Enfim, nessa altura era tudo bonito e a Menina Zezita faz parte indelével desse nosso passado!
Abraços, hã!
JB
Há pouco mais de um ano, passei junto à casa da Menina Zezinha, na Estrada Nova. Cumprimentou-me com tamanha alegria e afeto (que sempre lhe sobrou para todos nós), como se fora seu filho, no cantar de José Afonso.
A certa altura da conversa o meu cérebro entrou em curto circuito, coisa que por vezes acontece às gentes da minha idade. Ele concluiu que tamanho afeto só podia vir de uma pessoa familiar e perguntou-lhe, pela minha boca, se ela era da família dos Jerónimos (confundiu-a com a Menina Ilda, que também trabalhou na Escola Primária). O meu outro eu ouviu envergonhado o que estava farto de saber: que não, era filha do antigo sacristão, mulher do Joaquim Mestre e mãe de um jovem que também passou pelo seminário do Tortosendo e de quem eu fui bastante próximo, já depois de sair de lá.
Culpa de quem: da Menina Zezinha e da sua infinita bondade.
Há santos na Terra!
Houve uma função social que a Menina Zezinha teve e eu desconhecia: a de ter sido a intermediária entre os representantes do Estado (professores e guardas) e a população local. Ela pertencia a esses dois mundos, não tão parecidos como se possa pensar, e fez a ponte entre eles, sem necessidade de (evitando) conflitos.
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