Foi a segunda de cinco filhos; a única
rapariga. Quando a mãe morreu foi ela que, aos 16 anos, tomou conta da casa e
cuidou do pai e dos irmãos; o mais novo tinha cinco anos. Num tempo em que as
dificuldades eram muitas, cuidou de todos como se fosse a mãe, e foi adiando a
vida até já não precisarem dela.
Quando finalmente pôde sonhar uma
família sua, já ia muito para lá dos trinta. A notícia do casamento não foi bem
recebida, por o noivo ser viúvo e bastante mais velho, mas não fez caso. Teve
os seus próprios filhos e ganhou muitos enteados, alguns mais velhos que ela,
mas a quem queria como a novos irmãos. Continuou também a cuidar do pai, até
ser velho, e do marido, pouco mais novo. Construiu uma casa onde havia sempre
lugar para mais um e todos se sentiam bem.
Para nós, os sobrinhos, foi sempre a
Tia, simplesmente; nem precisávamos dizer-lhe o nome quando nos referíamos a
ela, talvez porque não tínhamos mais nenhuma do lado paterno, mas principalmente
porque não se confundia com nenhuma outra; quase uma avó, que nos mimava com o
pouco que tinha e não nos distinguia dos próprios filhos, mesmo na proteção que
nos dava. Às vezes falava muito alto, mas era o jeito dos Lérias, que vinha de
longe. Sabíamos que o coração dela era maior que as palavras que lhe saíam da boca,
um pouco atrapalhadas.
Desde que me lembro que gostava de ir
a casa dela e participar dos rituais, quase festivos, em que transformava
qualquer tarefa caseira, mesmo a mais simples. Às vezes íamos ajudá-la na
limpeza da casa, feita a preceito, com ela sempre atenta para que nenhuma teia
de aranha ficasse no teto, ou algum grãozinho de pó escondido no meio das
fisgas entre as tábuas. A água para esfregar o chão tinha que andar sempre
limpa, não fosse o soalho ficar encardido; havia muita na fonte de Santo
António e na da Praça, logo ali.
Quando acabávamos o trabalho, já
sabíamos que a cafeteira de esmalte azul estava ao lume para fazer o chá.
Sentávamo-nos no banco grande, que era o desnível entre o soalho da cozinha e a
lareira, e deliciávamo-nos com as fatias de pão amassado em casa e cozido no
forno da Mari Estela, com uma boa talhada de queijo fresco comprado no Zé Gomes
ou da marmelada feita com os marmelos da Barroca. Havia dias em que apanhávamos
grandes barrigadas de beringela ou botelha, que o tio Francisco, amorosamente,
ia fritando ao lume. Às vezes também fazia arroz doce ou papas de carolo. Ficávamos ceados.
Por alturas das Festas de Verão, a
casa era revirada do avesso: os ferros e tábuas das camas desarmados e lavados
com água a ferver, não andasse por lá algum percevejo escondido; a palha das
enxergas mudada, e mantas e cobertores tudo lavado na ribeira; as telhas da
cozinha passadas uma a uma com o esfrunhador; todas as paredes caiadas; só para
arear tachos e panelas era preciso um dia inteiro, mas ao fim ficava tudo como novo,
a brilhar na cantareira enfeitada com recortes de jornal.
Também era uma doceira afamada.
Chamavam-na muitas vezes para fazer os bolos mais finos de casamentos,
batizados e festas de gente rica. Em casa dela nunca se acabavam porque quando
cozia o pão amassava sempre uma lata de bolos de leite, esquecidos ou
borrachos. Pelas Festas de Verão fazia-os de toda a qualidade.
Algumas semanas antes começava a
juntar os ovos das galinhas poedeiras que tinha sempre com fartura. Arrecadava-os
dentro de um cesto no fundo mais fresco da loja, por baixo da casa. Com o
moleiro era um desassossego enquanto não chegava com as talegas, e ficava
doente se a farinha não vinha com a moagem que ela entendia. Dizia que os ovos
e a farinha eram o mais importante para os bolos calharem bem.
Na semana das Festas não saía da loja
durante três ou quatro dias, sempre a dar ordens e vigilante para que tudo se
fizesse como é dado: partir os ovos um a um, não fosse algum estar podre; separar
bem as claras das gemas e batê-las em castelo firme, quando era preciso; medir bem
o açúcar e a farinha; dar as voltas todas à massa; untar as latas bem untadas.
Nada lhe escapava, nem as rezas e benzeduras, logo ao princípio. No dia das cavacas
e biscoitos ficava ainda mais gaga, e só ela é que mexia na massa. Até chorava,
se ficavam com pé…
Os pães leves ficavam para último. Levavam
muitos ovos e muito açúcar, e eram muito trabalhosos. Consoante os ovos, eram
precisas duas ou três mulheres, que se sentavam à roda do alguidar, e se iam
revezando com o batedor, sem parar, até a massa fazer bolhas. Era cansativo e só
para mãos calejadas. Para os mais novos era o dia preferido, porque, mal
despejavam a massa nas formas, nos deliciávamos a rapar o alguidar. Ficava que
nem que já tivesse sido lavado.
No dia seguinte os cestos dos bolos ficavam quase pela metade: a Tia arranjava uns pratos com dois ou três de cada qualidade e mandava-nos ir dá-los de presente a alguma vizinha ou parente que não tinha podido fazê-los, principalmente se andava de luto, estava doente ou trazia algum filho na guerra. Nós íamos todos contentes, na esperança de que nos dessem alguma moeda para gastarmos nas tendas armadas na Praça, cheias de novidades, onde perdíamos os olhos augados, durante os três dias das Festas de Verão…
ML Ferreira
4 comentários:
Alguém sabe o nome do utensílio culinário da foto ao alto da publicação (sem ser batedor)?
Eu sei que tem nome próprio, aqui ninguém sabe. Nem eu. Responda quem sabe!
Jmt
Cardeal, diz a Libânia, mas ninguém a apoia.
Não fui eu que me lembrei do "Cardeal", já não sei quem foi.
A mim veio-me à cabeça "Napoleão", mas também me dizem que não. E o Google também não ajuda.
O que toda a gente diz ainda, é que não havia pães leves como os batidos à antiga.
ML Ferreira
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