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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

A Tia

 

Foi a segunda de cinco filhos; a única rapariga. Quando a mãe morreu foi ela que, aos 16 anos, tomou conta da casa e cuidou do pai e dos irmãos; o mais novo tinha cinco anos. Num tempo em que as dificuldades eram muitas, cuidou de todos como se fosse a mãe, e foi adiando a vida até já não precisarem dela.

Quando finalmente pôde sonhar uma família sua, já ia muito para lá dos trinta. A notícia do casamento não foi bem recebida, por o noivo ser viúvo e bastante mais velho, mas não fez caso. Teve os seus próprios filhos e ganhou muitos enteados, alguns mais velhos que ela, mas a quem queria como a novos irmãos. Continuou também a cuidar do pai, até ser velho, e do marido, pouco mais novo. Construiu uma casa onde havia sempre lugar para mais um e todos se sentiam bem. 

Para nós, os sobrinhos, foi sempre a Tia, simplesmente; nem precisávamos dizer-lhe o nome quando nos referíamos a ela, talvez porque não tínhamos mais nenhuma do lado paterno, mas principalmente porque não se confundia com nenhuma outra; quase uma avó, que nos mimava com o pouco que tinha e não nos distinguia dos próprios filhos, mesmo na proteção que nos dava. Às vezes falava muito alto, mas era o jeito dos Lérias, que vinha de longe. Sabíamos que o coração dela era maior que as palavras que lhe saíam da boca, um pouco atrapalhadas.

Desde que me lembro que gostava de ir a casa dela e participar dos rituais, quase festivos, em que transformava qualquer tarefa caseira, mesmo a mais simples. Às vezes íamos ajudá-la na limpeza da casa, feita a preceito, com ela sempre atenta para que nenhuma teia de aranha ficasse no teto, ou algum grãozinho de pó escondido no meio das fisgas entre as tábuas. A água para esfregar o chão tinha que andar sempre limpa, não fosse o soalho ficar encardido; havia muita na fonte de Santo António e na da Praça, logo ali. 

Quando acabávamos o trabalho, já sabíamos que a cafeteira de esmalte azul estava ao lume para fazer o chá. Sentávamo-nos no banco grande, que era o desnível entre o soalho da cozinha e a lareira, e deliciávamo-nos com as fatias de pão amassado em casa e cozido no forno da Mari Estela, com uma boa talhada de queijo fresco comprado no Zé Gomes ou da marmelada feita com os marmelos da Barroca. Havia dias em que apanhávamos grandes barrigadas de beringela ou botelha, que o tio Francisco, amorosamente, ia fritando ao lume. Às vezes também fazia arroz doce ou papas de carolo.  Ficávamos ceados.

Por alturas das Festas de Verão, a casa era revirada do avesso: os ferros e tábuas das camas desarmados e lavados com água a ferver, não andasse por lá algum percevejo escondido; a palha das enxergas mudada, e mantas e cobertores tudo lavado na ribeira; as telhas da cozinha passadas uma a uma com o esfrunhador; todas as paredes caiadas; só para arear tachos e panelas era preciso um dia inteiro, mas ao fim ficava tudo como novo, a brilhar na cantareira enfeitada com recortes de jornal.

Também era uma doceira afamada. Chamavam-na muitas vezes para fazer os bolos mais finos de casamentos, batizados e festas de gente rica. Em casa dela nunca se acabavam porque quando cozia o pão amassava sempre uma lata de bolos de leite, esquecidos ou borrachos. Pelas Festas de Verão fazia-os de toda a qualidade.

Algumas semanas antes começava a juntar os ovos das galinhas poedeiras que tinha sempre com fartura. Arrecadava-os dentro de um cesto no fundo mais fresco da loja, por baixo da casa. Com o moleiro era um desassossego enquanto não chegava com as talegas, e ficava doente se a farinha não vinha com a moagem que ela entendia. Dizia que os ovos e a farinha eram o mais importante para os bolos calharem bem.

Na semana das Festas não saía da loja durante três ou quatro dias, sempre a dar ordens e vigilante para que tudo se fizesse como é dado: partir os ovos um a um, não fosse algum estar podre; separar bem as claras das gemas e batê-las em castelo firme, quando era preciso; medir bem o açúcar e a farinha; dar as voltas todas à massa; untar as latas bem untadas. Nada lhe escapava, nem as rezas e benzeduras, logo ao princípio. No dia das cavacas e biscoitos ficava ainda mais gaga, e só ela é que mexia na massa. Até chorava, se ficavam com pé…

Os pães leves ficavam para último. Levavam muitos ovos e muito açúcar, e eram muito trabalhosos. Consoante os ovos, eram precisas duas ou três mulheres, que se sentavam à roda do alguidar, e se iam revezando com o batedor, sem parar, até a massa fazer bolhas. Era cansativo e só para mãos calejadas. Para os mais novos era o dia preferido, porque, mal despejavam a massa nas formas, nos deliciávamos a rapar o alguidar. Ficava que nem que já tivesse sido lavado. 

No dia seguinte os cestos dos bolos ficavam quase pela metade: a Tia arranjava uns pratos com dois ou três de cada qualidade e mandava-nos ir dá-los de presente a alguma vizinha ou parente que não tinha podido fazê-los, principalmente se andava de luto, estava doente ou trazia algum filho na guerra. Nós íamos todos contentes, na esperança de que nos dessem alguma moeda para gastarmos nas tendas armadas na Praça, cheias de novidades, onde perdíamos os olhos augados, durante os três dias das Festas de Verão…

ML Ferreira

sábado, 23 de abril de 2011

Jejuns e gulodices

No passado sábado, véspera de Domingo de Ramos, passei por três tratores a carregar ramos secos de pinheiro, no curto espaço entre o Carvalhal Redondo e o Caldeira. A lenha é, certamente, para os bolos e os doces da Páscoa, com que tradicionalmente se quebra o longo jejum da Quaresma.
O Domingo Gordo, domingo anterior ao Carnaval, foi a penúltima etapa antes dos sacrifícios. Costumava-se comer o rabo do porco, na salgadeira desde a matação. No tempo em que os porcos ainda comiam comida de gente (hortaliças, botelhas, beterrabas, farelos, lavadura da loiça dos donos…), o rabo do porco era uma das partes mais saborosas do dito. Claro que não era só o rabo, mas toda a zona envolvente ao cu, incluindo a ponta final da espinha. A água em que era cozido fazia uma sopa de estalo e depois acompanhava com feijão grande. E nem pensar em deitar fora o toucinho, porque gordura e febra era tudo uma delícia! (Quando eu era criança, nos anos 60, contava-se, na Vila, que o Doutor Alves aconselhara alguém a dar couves ao porco, para a carne ter mais sabor, sem ser muito gorda.)
Dois dias depois era o Carnaval, a despedida dos prazeres. Há dois anos, quando escrevi sobre as nossas tradições carnavalescas, não liguei ao arroz-doce referido no trabalho da minha irmã Isabel, em que me tenho apoiado nestas tradições. Não liguei, porque aquilo não me dizia nada: nem gosto especialmente de arroz-doce, nem era muito habitual fazê-lo na casa dos meus pais.
Ora, no ano passado, oito dias antes da Feria de Gastronomia, o Presidente da Junta, eu e a minha tia Eulália (Teodoro e Jerónimo) fomos entrevistados para a Rádio Cova da Beira. Ao ouvir a entrevista da Tia Eulália é que percebi toda a importância do arroz-doce nos rituais iniciais do ciclo quaresmal. Na casa dos meus avós paternos, onde tanta coisa faltava nesses anos 40 e 50 do século XX, nunca a minha avó Rosário deixava de fazer o arroz-doce, para toda a família comer e consolada entrar no jejum da Quaresma.
As semanas iam-se sucedendo e, chegados à Quinta-Feira Santa, nem couves se podiam comer, pois nelas estivera escondida a Sagrada Família, fugida dos soldados de Herodes. No dia seguinte, não se trabalhava. Era dia de luto total. Recordo-me de que, na Semana Santa, toda a gente se confessava e comungava, praticamente sem exceções. E nesses tempos comungava-se em jejum, mesmo que a missa fosse ao meio dia, como era costume. Um dia, o meu avô Francisco tocou com o pão na boca, ao levantar-se de madrugada e, antes de comungar, contou o sucedido ao senhor Vigário, para ele lhe autorizar a comunhão.
Cristo ficava morto durante todo o dia de sábado e nós aproveitávamos para fazer bolos e doces. À meia-noite, era a missa da Aleluia, Cristo ressuscitava e o povo desforrava-se de semanas de tristeza e jejuns: as Boas-Festas, os bolos, os tremoços, o convívio com os amigos e familiares e depois as romarias. Entrava-se numa nova etapa, o ciclo Pascal, em que se festejava a vida.
Se me virem por aí, já sabem: a minha preferência vai para uma fatia de bolo da Páscoa coberta com uma talhada do mesmo tamanho de queijo fresco caseiro (o do circuito comercial tem um aditivo que o torna amargo, sem o sabor adocicado do leite).

Alguns artigos relacionados:
“Os Martírios”, de 1 de abril de 2010
“Procissão do Enterro”, de 3 de abril de 2010
“Tradições de Carnaval”, de 13 de Fevereiro de 2010
“A Ladainha”, de 12 de abril de 2009
“Doçaria pascal”, de 5 de abril de 2009
“Tradições da Páscoa”, de 28 de março de 2009