sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Gente Nossa: João Engenheiro

 

«Muitos nunca ouviram falar deles e quase todos desconhecem a importância que tiveram para S. Vicente, nos meados do século XX. Eu ainda conheci o Zé Companhia, como era conhecido, por andar sempre acompanhado de um grupo de aprendizes de pedreiro. Um deles foi o meu pai.
Mas nunca ouvira falar do João Engenheiro que, já reformado e doente, morava no n.º 20 da Rua da Costa, cerca de 1950. Com ele e a sua esposa partilharam os meus pais esta habitação: eles viviam na casa das traseiras e os meus pais, recém-casados, na que dá para a rua
.» (do artigo “Dois Artistas”, de José Teodoro Prata, publicado em dezembro de 2009).

 

É verdade que do Zé Companhia (José Diogo) já só os da nossa idade é que ainda nos lembramos, mas sobre o João Engenheiro, mesmo os nossos mais velhos, já pouco souberam dizer. Encontrei-o no livro de enterramentos da Junta de Freguesia, no dia 24 de outubro de 1955, o que facilitou encontrar mais alguma informação sobre este nosso conterrâneo.

O registo de nascimento diz que nasceu a 1 de setembro de 1922, numa casa da rua da Costa; os pais, Manuel Niculau, sapateiro, e Francisca dos Santos Moreira, doméstica, quiseram que se chamasse João (João Nicolau dos Santos Moreira, de seu nome completo), o nome do avô materno. O casal, na altura, já tinha três filhas:

 - Maria Libânia Nicolau Moreira (1909/1960), que casou com João Calmão* (1906/?) em 1932, e não deixou descendência;

 - Laura Nicolau Moreira, (1911/1974), que casou em 1966 com João Calmão, já viúvo de Maria Libânia, e também não deixou descendência;

 - Maria de Deus (1914/1980), que casou com João Jerónimo (1906/1983) em 1938 e criaram 4 filhos.

É natural que a chegada do pequeno João, por ser o único rapaz, e vir já quase “fora de tempo”, o tenha tornado no Menino Jesus da família naquele Natal de 1922; o enlevo por este menino ter-se-á prolongado ao longo da vida.

Sabe-se que Manuel Nicolau e Francisca Moreira terão vivido algum tempo em Lisboa, já depois do nascimento dos filhos. Foi bom para o mais novo, que pôde prosseguir os estudos para além da escola primária, e frequentar a Escola Machado de Castro onde tirou o curso de desenhador e pôde desenvolver as suas capacidades artísticas.

Em agosto de 1945, com 22 anos, João casou com Maria do Carmo, natural de Proença-a-Nova, na Igreja de São Mamede, em Lisboa. Em maio do ano seguinte nasceu Suzete,** a única filha que tiveram.  

O casal viveu os primeiros anos em Lisboa, durante os quais João “Engenheiro” exerceu a profissão, julga-se que na Câmara Municipal de Lisboa. Neste período terá também trabalhado em alguns projetos em São Vicente: desenhou casas, muros, o lagar do Casal da Serra, a Fonte da Praça...

Tudo isto apesar da pouca saúde do nosso artista; diagnosticado desde cedo com problemas respiratórios graves, foi aconselhado pelos médicos a vir morar para São Vicente, onde os ares puros da Gardunha seriam mais favoráveis ao alívio da doença. O casal mudou-se para a terra, para a casa da rua da Costa, onde João nascera. A filha, deixaram-na em Lisboa, ao cuidado dos tios Maria Libânia e João Calmão, que a criaram como se fosse deles.

Continuou a trabalhar, enquanto pôde, e ainda projetou algumas obras em vários lugares da freguesia. Dizem os sobrinhos que se lembram de o acompanhar algumas vezes, e era uma festa para eles, montados num burro por esses caminhos fora, até à Partida, ao Casal da Serra ou onde quer que o chamassem para mais um trabalho.

Mas, apesar da mudança de ares, a doença agravou-se em poucos anos. Passou os últimos tempos da vida já na cama, cuidado pela mulher e pela irmã Maria de Deus, presente sempre que era preciso, e mimado com tudo quanto era bom, que as outras irmãs lhe mandavam de Lisboa.

Quando faleceu tinha acabado de fazer 33 anos, a idade de Jesus, como chegou a lembrar, o que, pela sua religiosidade, lhe terá dado algum conforto espiritual. A certidão de óbito diz que morreu de bronquite asmática.

Os filhos da irmã Maria de Deus contam que, mesmo sendo ainda muito novos, se lembram do tio sempre muito distinto, de chapéu preto na cabeça, vestido de fato e gravata e gabardina bege, no inverno. Era generoso com eles, sempre que vinha à terra e mesmo depois, quando veio morar para São Vicente. Dizem também que, apesar de ser ainda muito novo quando deixou de poder trabalhar, lhe deram uma reforma que lhe permitiu viver sem grandes dificuldades.

Alguns anos depois da sua morte, no início da década de 1970, foi motivo de grande indignação para muitos sanvicentinos, mas principalmente de grande desgosto para a família, terem tirado do lugar a Fonte da Praça, a obra mais bonita que deixou em São Vicente. A irmã Maria de Deus, ainda viva na altura, chorava tanto por terem feito aquela desfeita ao irmão, que o marido, já farto de a ver sempre debulhada em lágrimas, um dia foi direito à sacristia disposto a puxar os colarinhos ao Padre Branco, o principal culpado, dizia-se, por “aquele belo trabalho”. Alguém o terá segurado a tempo…

 

* Muitos ainda nos lembramos de João Calmão. Era militar e, segundo se constava, movia-se bem em alguns meios da capital. Amigo da terra e bom comunicador, era ele quem fazia sempre os discursos no dia da festa da Casa de São Vicente em Lisboa; alguns ficaram registados no Pelourinho e, creio, também ainda no Vicentino.

** Suzete faleceu há já alguns anos, ainda nova; deixou dois filhos: o João e o Gualter.

 

ML Ferreira

2 comentários:

José Teodoro Prata disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Teodoro Prata disse...

A informação que a minha mãe me deu, há anos, sobre o João Engenheiro, com quem partilharam a casa da Rua da Costa (parte a negrito da crónica da Libânia), levou-me a concluir que já seria idoso. Afinal faleceu muito jovem!