Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Gente Nossa: João Engenheiro
«Muitos
nunca ouviram falar deles e quase todos desconhecem a importância que tiveram
para S. Vicente, nos meados do século XX. Eu ainda conheci o Zé
Companhia, como era conhecido, por andar sempre acompanhado de um
grupo de aprendizes de pedreiro. Um deles foi o meu pai.
É verdade que do Zé Companhia (José Diogo) já só os da nossa idade é que
ainda nos lembramos, mas sobre o João Engenheiro, mesmo os nossos mais velhos,
já pouco souberam dizer. Encontrei-o no livro de enterramentos da Junta de
Freguesia, no dia 24 de outubro de 1955, o que facilitou encontrar mais alguma
informação sobre este nosso conterrâneo.
O registo de nascimento diz que nasceu a 1 de setembro de 1922, numa casa
da rua da Costa; os pais, Manuel Niculau,
sapateiro, e Francisca dos Santos Moreira, doméstica, quiseram que se chamasse
João (João Nicolau dos Santos Moreira, de seu nome completo), o nome do avô
materno. O casal, na altura, já tinha três filhas:
- Maria Libânia Nicolau Moreira (1909/1960),
que casou com João Calmão* (1906/?) em 1932, e não deixou descendência;
- Laura Nicolau Moreira, (1911/1974),
que casou em 1966 com João Calmão, já viúvo de Maria Libânia, e também não
deixou descendência;
- Maria de Deus (1914/1980), que
casou com João Jerónimo (1906/1983) em 1938 e criaram 4 filhos.
É natural que a chegada do pequeno João, por ser o único rapaz, e
vir já quase “fora de tempo”, o tenha tornado no Menino Jesus da família
naquele Natal de 1922; o enlevo por este menino ter-se-á prolongado ao longo da
vida.
Sabe-se que Manuel Nicolau e Francisca Moreira terão vivido algum tempo
em Lisboa, já depois do nascimento dos filhos. Foi bom para o mais novo, que
pôde prosseguir os estudos para além da escola primária, e frequentar a Escola
Machado de Castro onde tirou o curso de desenhador e pôde desenvolver as suas
capacidades artísticas.
Em agosto de 1945, com 22 anos, João casou com Maria do Carmo, natural de
Proença-a-Nova, na Igreja de São Mamede, em Lisboa. Em maio do ano seguinte nasceu
Suzete,** a única filha que tiveram.
O casal viveu os primeiros anos em Lisboa, durante os quais João “Engenheiro”
exerceu a profissão, julga-se que na Câmara Municipal de Lisboa. Neste período
terá também trabalhado em alguns projetos em São Vicente: desenhou casas, muros,
o lagar do Casal da Serra, a Fonte da Praça...
Tudo isto apesar da pouca saúde do nosso artista; diagnosticado desde
cedo com problemas respiratórios graves, foi aconselhado pelos médicos a vir
morar para São Vicente, onde os ares puros da Gardunha seriam mais favoráveis
ao alívio da doença. O casal mudou-se para a terra, para a casa da rua da
Costa, onde João nascera. A filha, deixaram-na em Lisboa, ao cuidado dos tios Maria
Libânia e João Calmão, que a criaram como se fosse deles.
Continuou
a trabalhar, enquanto pôde, e ainda projetou algumas obras em vários lugares da
freguesia. Dizem os sobrinhos que se lembram de o acompanhar algumas vezes, e era
uma festa para eles, montados num burro por esses caminhos fora, até à Partida,
ao Casal da Serra ou onde quer que o chamassem para mais um trabalho.
Mas, apesar da mudança de ares, a doença agravou-se em poucos anos. Passou
os últimos tempos da vida já na cama, cuidado pela mulher e pela irmã Maria de
Deus, presente sempre que era preciso, e mimado com tudo quanto era bom, que as
outras irmãs lhe mandavam de Lisboa.
Quando faleceu tinha acabado de fazer 33 anos, a idade de Jesus, como
chegou a lembrar, o que, pela sua religiosidade, lhe terá dado algum conforto
espiritual. A certidão de óbito diz que morreu de bronquite asmática.
Os filhos da irmã Maria de Deus contam que, mesmo sendo ainda muito novos,
se lembram do tio sempre muito distinto, de chapéu preto na cabeça, vestido de
fato e gravata e gabardina bege, no inverno. Era generoso com eles, sempre que
vinha à terra e mesmo depois, quando veio morar para São Vicente. Dizem também
que, apesar de ser ainda muito novo quando deixou de poder trabalhar, lhe deram
uma reforma que lhe permitiu viver sem grandes dificuldades.
Alguns anos depois da sua morte, no início da década de 1970, foi motivo
de grande indignação para muitos sanvicentinos, mas principalmente de grande
desgosto para a família, terem tirado do lugar a Fonte da Praça, a obra mais
bonita que deixou em São Vicente. A irmã Maria de Deus, ainda viva na altura,
chorava tanto por terem feito aquela desfeita ao irmão, que o marido, já farto
de a ver sempre debulhada em lágrimas, um dia foi direito à sacristia disposto
a puxar os colarinhos ao Padre Branco, o principal culpado, dizia-se, por “aquele
belo trabalho”. Alguém o terá segurado a tempo…
* Muitos ainda nos lembramos de João Calmão. Era militar e, segundo se
constava, movia-se bem em alguns meios da capital. Amigo da terra e bom
comunicador, era ele quem fazia sempre os discursos no dia da festa da Casa de
São Vicente em Lisboa; alguns ficaram registados no Pelourinho e, creio, também
ainda no Vicentino.
** Suzete faleceu há já alguns anos, ainda nova; deixou dois filhos: o
João e o Gualter.
ML Ferreira
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2 comentários:
A informação que a minha mãe me deu, há anos, sobre o João Engenheiro, com quem partilharam a casa da Rua da Costa (parte a negrito da crónica da Libânia), levou-me a concluir que já seria idoso. Afinal faleceu muito jovem!
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