No início de
1964, fui contratado para ir trabalhar para um pinhal, na zona de Casegas, de
um senhor chamado Bernardo, que tinha doze filhos. Na hora da refeição, até
parecia uma boda, tal era o tamanho da mesa. Um dia jantei lá e a comida era
batata cozida com farinheira. Todos comiam a pele da farinheira, mas eu não fui
capaz. Para não dar parte de fraco, meti a pele no bolso.
No fim do jantar, o patrão falou
comigo para ir à Barroca Grande carregar uma carrada de pranchas. Fiquei todo
feliz e contente por ir andar de camioneta. Carregámos o material e depois o
filho do patrão levou-me até uma localidade chamada Cebolas, que hoje é São
Jorge da Beira. Aqui chegados, disse-me que regressasse a pé, porque ele tinha
de ir para o Fundão e não ficava em caminho.
Como não conhecia nada para aqueles
lados, fiquei muito preocupado e com muito receio de fazer aquele percurso de
noite. Ele disse-me para seguir em frente, passar o cruzamento da Panasqueira e
depois o cruzamento da Pampilhosa em direção a Cambões. E depois sempre em
frente, até era perto. Ao todo, mais ou menos catorze quilómetros.
Meti-me ao caminho, sempre a rezar
para que Deus me ajudasse a fazer aquele percurso. Com muita dificuldade,
consegui chegar ao destino, por volta das duas horas da manhã. Como não havia
luz, entrei de gatas no palheiro, para me deitar no meio da palha, porque
mantas ou outra coisa para me cobrir era o que não havia. Reparei que estava lá
outro homem a dormir, um carvoeiro que andava a fazer carvão de torga nas
florestas do patrão. Como estava muito frio, o homem foi simpático e disse-me
para eu me encostar a ele, para me aquecer. Mas como tive medo, logo que vi que
ele estava a dormir, pus-me a caminho do pinhal, porque era lá que tinha a
merenda e a fome já era muita.
Alguns dias depois, vi uma rapariga
que andava guardar as cabras e me disse que tinha uma telefonia em casa, o que
para mim era um milagre. Pedi-lhe se podia ir lá ouvir um bocadinho a telefonia.
Ela disse que sim. Mas havia um problema. No caminho para casa dela, havia um
ribeiro que levava muita água e não o conseguia atravessar. Pensei então em
fazer um pontão e lá consegui ir ouvir a telefonia a casa da rapariga e passar
lá o serão. Já noite dentro, tive medo de regressar e cair no ribeiro. A rapariga disse-me que podia ir dormir no
palheiro dos bois e deu-me uma manta para me agasalhar. Só que o frio e a fome
eram tantos que resolvi voltar, mas, quando cheguei ao ribeiro, o pontão tinha
abalado numa enxurrada. Lá tive de voltar novamente para o meio da palha dos
bois. Logo de manhã, tive de contornar o ribeiro, andando cerca de quatro ou
cinco quilómetros. Voltas e voltas que dei, até chegar onde tinha as minhas
coisas.
Passados uns dias, recebi um
telegrama a comunicar-me para ir trabalhar para Lisboa. Fiquei muito feliz e
fui logo falar com o patrão, para me pagar a semana de trabalho que tinha
feito, o que me permitiu receber 240$00, ou seja, 40$00 por dia.
Quando o patrão me pagou, estava lá
um cigano que andava a vender machos ou mulas. Viu-me receber aquele dinheiro
todo e disse-me que tinha de lhe pagar uma ou duas cervejas e que à noite íamos
dormir juntos. Fiquei muito preocupado, porque o cigano até me chegou a ameaçar
que pagava a bem ou a mal. Percebi logo que ele queria era roubar-me o dinheiro
e então acabei por me esconder numa garagem. Fiquei lá sentado, sem cama e sem
sono. Como não tinha relógio, ouvia o sino da igreja todas as horas, desde as
dez da noite às três da madrugada. Como estava bastante frio, resolvi por-me a
caminho, com os meus pertences que eram uma manta, o machado, a panela de
ferro, batatas, feijão, garfo, azeite, sal e outras coisas. Ao fim de duas
horas de caminhada, cheguei à Barroca Grande, onde apanhei a camioneta até ao
cruzamento do Castelejo e depois a que vinha do Fundão para Castelo
Branco. Cheguei a São Vicente da Beira
às sete da manhã, são e salvo e com o meu dinheirinho.
Segui então para Lisboa, no dia
seguinte, que era véspera de Carnaval.
Relato de Joaquim Teodoro dos Santos, em pequena autobiografia, edição de autor, publicada pelo GEGA, em Janeiro de 2015.
José Teodoro Prata