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sábado, 16 de julho de 2016

No pinhal

No início de 1964, fui contratado para ir trabalhar para um pinhal, na zona de Casegas, de um senhor chamado Bernardo, que tinha doze filhos. Na hora da refeição, até parecia uma boda, tal era o tamanho da mesa. Um dia jantei lá e a comida era batata cozida com farinheira. Todos comiam a pele da farinheira, mas eu não fui capaz. Para não dar parte de fraco, meti a pele no bolso.
            No fim do jantar, o patrão falou comigo para ir à Barroca Grande carregar uma carrada de pranchas. Fiquei todo feliz e contente por ir andar de camioneta. Carregámos o material e depois o filho do patrão levou-me até uma localidade chamada Cebolas, que hoje é São Jorge da Beira. Aqui chegados, disse-me que regressasse a pé, porque ele tinha de ir para o Fundão e não ficava em caminho.
            Como não conhecia nada para aqueles lados, fiquei muito preocupado e com muito receio de fazer aquele percurso de noite. Ele disse-me para seguir em frente, passar o cruzamento da Panasqueira e depois o cruzamento da Pampilhosa em direção a Cambões. E depois sempre em frente, até era perto. Ao todo, mais ou menos catorze quilómetros.
          Meti-me ao caminho, sempre a rezar para que Deus me ajudasse a fazer aquele percurso. Com muita dificuldade, consegui chegar ao destino, por volta das duas horas da manhã. Como não havia luz, entrei de gatas no palheiro, para me deitar no meio da palha, porque mantas ou outra coisa para me cobrir era o que não havia. Reparei que estava lá outro homem a dormir, um carvoeiro que andava a fazer carvão de torga nas florestas do patrão. Como estava muito frio, o homem foi simpático e disse-me para eu me encostar a ele, para me aquecer. Mas como tive medo, logo que vi que ele estava a dormir, pus-me a caminho do pinhal, porque era lá que tinha a merenda e a fome já era muita.
           Alguns dias depois, vi uma rapariga que andava guardar as cabras e me disse que tinha uma telefonia em casa, o que para mim era um milagre. Pedi-lhe se podia ir lá ouvir um bocadinho a telefonia. Ela disse que sim. Mas havia um problema. No caminho para casa dela, havia um ribeiro que levava muita água e não o conseguia atravessar. Pensei então em fazer um pontão e lá consegui ir ouvir a telefonia a casa da rapariga e passar lá o serão. Já noite dentro, tive medo de regressar e cair no ribeiro.  A rapariga disse-me que podia ir dormir no palheiro dos bois e deu-me uma manta para me agasalhar. Só que o frio e a fome eram tantos que resolvi voltar, mas, quando cheguei ao ribeiro, o pontão tinha abalado numa enxurrada. Lá tive de voltar novamente para o meio da palha dos bois. Logo de manhã, tive de contornar o ribeiro, andando cerca de quatro ou cinco quilómetros. Voltas e voltas que dei, até chegar onde tinha as minhas coisas.
          Passados uns dias, recebi um telegrama a comunicar-me para ir trabalhar para Lisboa. Fiquei muito feliz e fui logo falar com o patrão, para me pagar a semana de trabalho que tinha feito, o que me permitiu receber 240$00, ou seja, 40$00 por dia.
          Quando o patrão me pagou, estava lá um cigano que andava a vender machos ou mulas. Viu-me receber aquele dinheiro todo e disse-me que tinha de lhe pagar uma ou duas cervejas e que à noite íamos dormir juntos. Fiquei muito preocupado, porque o cigano até me chegou a ameaçar que pagava a bem ou a mal. Percebi logo que ele queria era roubar-me o dinheiro e então acabei por me esconder numa garagem. Fiquei lá sentado, sem cama e sem sono. Como não tinha relógio, ouvia o sino da igreja todas as horas, desde as dez da noite às três da madrugada. Como estava bastante frio, resolvi por-me a caminho, com os meus pertences que eram uma manta, o machado, a panela de ferro, batatas, feijão, garfo, azeite, sal e outras coisas. Ao fim de duas horas de caminhada, cheguei à Barroca Grande, onde apanhei a camioneta até ao cruzamento do Castelejo e depois a que vinha do Fundão para Castelo Branco.  Cheguei a São Vicente da Beira às sete da manhã, são e salvo e com o meu dinheirinho.
            Segui então para Lisboa, no dia seguinte, que era véspera de Carnaval.


Relato de Joaquim Teodoro dos Santos, em pequena autobiografia, edição de autor, publicada pelo GEGA, em Janeiro de 2015.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Os trabalhos e os ganhos

Sendo uma terra [São Vicente da Beira] em que só havia agricultura, as pessoas não tinham emprego certo e tinham que ganhar a vida das mais variadas formas. Os grandes proprietários, na maior parte das vezes, não pagavam em dinheiro [anos 50 e 60]. Punham as terras e os meios para tratar da lavoura e os trabalhadores apenas davam a mão-de-obra. E a forma de pagar não era igual para todas as culturas. Por exemplo, por um dia de trabalho normal, os homens recebiam meio litro de azeite ou meio alqueire de trigo ou milho. Esta era a forma mais comum de serem tratados os terrenos e os respetivo pagamento. Quando se tratava de uma cultura específica, a forma de receberem já era diferente. Na cultura da batata, do milho e do feijão, o proprietário dos terrenos, além de dar a terra, também punha à disposição de quem trabalhava as ferramentas e a semente. O trabalhador tratava de toda a faina agrícola, que passava pelo arranjo da terra, sementeira, monda e rega, e quando se fazia a colheita era uma parte para o trabalhados e três para o dono da terra.
No olival, a percentagem era diferente. Aqui, o proprietário dava os terrenos e os olivais e o trabalhador tinha que tratar das oliveiras, colher a azeitona, limpá-la e transportá-la para o lagar que mais interessasse ao proprietário. Depois de recolhido o azeite, o trabalhador ficava com uma parte e o dono do olival ficava com sete partes. Naquele tempo, não ficava uma azeitona no chão. Tudo era aproveitado e até havia quem, depois da colheita, ia ao rabusco, ver se apanhava alguns quilos de azeitona, para poder fazer alguns litros de azeite. Foram uns tempos muito difíceis, em que havia muita gente que nem azeite tinha para pôr no caldo. O meu falecido pai ia do Valcaria para o Miguel Vicente, a cerca de sete quilómetros, trabalhar na colheita da azeitona. Por cada dia de trabalho, tinha de fazer catorze quilómetros a pé.
Na ceifa dos cereais, muitos dos habitantes de São Vicente da Beira iam para os mais variados locais a fazer a ceifa manual das grandes searas. O mais longe para onde foram trabalhar foi para o Alto Alentejo e na zona da Beira Baixa iam para todo o lado: Tortosendo, Lardosa, Alcafozes, Ladoeiro… Além do trigo, ceifavam centeio e aveia. Chegavam a andar lá por mais de cinquenta dias, sem virem a casa. A percentagem que recebiam era o chamado quinto, por isso diziam que iam ao quinto. Uma vida muito dura! Quanto mais se ceifava, mais cereal trazíamos para casa. Por isso, começava-se a trabalhar logo ao romper do sol, parávamos por volta das dez horas para o almoço e à uma da tarde jantávamos. A seguir, dormíamos uma sesta de uma hora e depois começávamos logo a ceifar. Isso durava até às seis da tarde, quando comíamos a merenda e depois voltávamos ao trabalho até ao descorecer, altura em que era comida a ceia. Dormíamos ao relento ou num cabanão de palha. Chegavam-se a juntar entre trinta e cinquenta homens, todos a ceifar.
Depois da ceifa, tínhamos de malhar os cereais. Numa eira grande, de terra batida ou de pedra, era espalhada a palha e com os mongais ou em propriedades maiores com as malhadeiras, que eram acionadas por tratores através de uma polie. Acabada a malha ou a debulha pela malhadeira, ainda se ficava lá mais dois ou três dias, para se atar a palha ou fazerem-se uns castelos com a palha empinada. Finalmente, regressávamos a casa com os cereais que foram ganhos com o trabalho e que eram transportados em carros de vacas.
Andei nestas ceifas em 1963, na Lardosa, quando o meu pai foi para a França. No ano de 1968, estive no Tortosendo, para o mesmo trabalho. Eram sempre à volta de trinta homens, quase todos já falecidos. Dos que me lembro, apenas cá andam três.

Relato de Joaquim Teodoro dos Santos, em pequena autobiografia, edição de autor, publicada pelo GEGA, em Janeiro de 2015.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Animais de trabalho

A vida na agricultura era muito diferente [nos anos 50 e 60] do que é agora.
Não havia tratores, nem ouras máquinas agrícolas. Os fazendeiros tinham uma ou duas juntas de vacas, que lavravam os terenos e transportavam as colheitas. Colocava-se uma canga em cima do pescoço de cada vaca, composta por um tamoeiro e uma correia de cabedal, com um bocado de corda que se atava ao cangalho e passava por baixo do pescoço da vaca. O cambão era engatado na canga. Estes adereços serviam para atrelar o carro de vacas e a charrua de ferro, que havia do número um ao nove, conforme o trabalho que era para ser feito. Antes de haver charruas, o trabalho da lavra era feito com arados feitos de pau, por um habilidoso ou por um carpinteiro.
Os carros mediam cerca de 3 metros de comprido por 1,20 de largura, com um tiro ao meio onde era engatada a canga. Toda a construção dos carros era em madeira, incluindo as rodas e o eixo. Faziam muito barulho quando o eixo começava a rodar e por isso untava-se com gordura de porco ou sebo de cabra. O carro tinha em média quatro buracos de cada lado, onde se enfiavam os afogueiros. Havia também uma peça de madeira, com aspeto de uma forcalha, que se chamava zorra e servia para as vacas transportarem pedras grandes.
Quando andava na lavoura, as vacas traziam uma rede no focinho, chamada focinheira, para não comerem o renovo. Estes animais também eram atrelados às noras, para tirar água dos poços.
As vacas, quando andavam muito em terra batida ou mais agreste, eram calçadas com canelos. Estes eram indispensáveis nas deslocações muito grandes. Lembro-me de haver juntas de vacas que, com os seus carros, iam a Abrantes levar neve e no regresso traziam sal e outras coisas.
As vacas eram cobertas e em geral tinham crias uma vez por ano. Nos primeiros três meses, amamentavam os bezerros e depois disso era aproveitado o leite para ser vendido para alimentação.
Uma junta de vacas, a trabalhar, ganhava em média o ordenado de cinco homens. Um dia inteiro de trabalho era chamado uma geira e se fosse meio dia era meia-geira.
Os lavradores sem uma junta de vacas tinham outros animais que ajudavam na lavoura. O mais comum era o burro, mas também a mula e o macho, que faziam de tudo. Lavravam, transportavam cargas, faziam estrume e até aqueciam a casa no inverno. Normalmente, eram guardados nas lojas por baixo das casas e, como o isolamento era muito deficiente, o calor dos animais passava para a parte de cima das casas. Dos muitos apetrechos que estes animais esavam, destaco o cabresto, o bornal, a albarda, a canga, a carroça, as cangalhas, a tucinheira, etc. 
As fêmeas faziam sempre criação e muitas das vezes até cruzavam raças  para terem animais mais resistentes. Era o caso do macho e da mula que nasciam do cruzamento de uma égua com um burro. Para evitar o desgaste dos cascos, todos eles eram ferrados com ferraduras, os sapatos, como lhes chamávamos.

Relato de Joaquim Teodoro dos Santos, em pequena autobiografia, edição de autor, publicada pelo GEGA, em Janeiro de 2015.

José Teodoro Prata

domingo, 19 de junho de 2016

Tempos de aprender

Entre os sete e oito anos, idade com que se entrava na escola primária naqueles tempos [anos 50 e 60], fui para a escola que funcionava por baixo do edifício dos antigos Paços do Concelho, local onde agora está a Junta de Freguesia. O meu professor era Artur Eugénio Couto, a quem chamávamos apenas Professor Couto.
Morávamos no Valcaria, a cerca de três quilómetros, e, quer chovesse, nevasse ou fizesse sol, todos os dias calcorreava este caminho, descalço, porque não havia dinheiro para sapatos. Na bolsa de ganga, apenas um livro e uma pedra com o seu lápis também de pedra. Nesta pedra em forma de quadro, de ardósia e madeira, aprendi a escrever as primeiras letras e a construir as primeiras frases. Numa bolsita feita com aproveitamento de tecido que outras pessoas já teriam vestido, levava a minha merenda para o dia todo: um bocadito de pão centeio ou de broa de milho, com um bocadito de queijo ou uma mão cheia de azeitonas.
Nas idas e vindas de e para a escola, muitas vezes transportava alguns bens que os meus pais produziam e que vendiam às pessoas mais ricas da Vila. Trazia cinco bilas de leite, três numa mão e duas na outra, umas de meio litro e outras de um litro. Os fregueses habituais eram o Dr. Alves, a Tia Patrocínia, o Sr. Mesquita, o Sr. Padre Nicolau e o Sr. Major Fabião. Estas entregas eram sempre feitas antes de entrar na escola, às nove horas da manhã. Durante muitos anos, fiz estas entregas que eram para mim uma afirmação de responsabilidade. Era com muito entusiasmo que assumia estes compromissos, sendo uma forma de ajudar os meus pais que, de sol a sol, trabalhavam a terra para o nosso sustento.
Nesse tempo, havia nas Quintas uma população estimada em cerca de vinte casais, todos eles com um rebanho de filhos. Toda a gente trabalhava nas terras e muitas das vezes colaboravam uns com os outros. Quando o trabalho era muito, ajudavam-se mutuamente. Se num dia íamos todos trabalhar para o terreno do vizinho, no outro vinham os vizinhos para o nosso, a compensar. Era uma espécie de troca de mão-de-obra.
Num dia sachava-se o milho e o feijão, no outro mondava-se o trigo e regava-se tudo. A rega era feita sempre ao pé. As ferramentas eram muito limitadas. Por exemplo, o foução era usado para cortar tudo o que havia na horta. Gadanhas ou outros utensílios mais modernos, não havia nada. Do nascer ao por do sol, era esta a rotina diária, acompanhada com um pedaço de pão, por volta das 10 horas. Ao meio dia, ao ouvir o toque das Avé Marias na torre da Vila, toda a gente parava, rezava e jantava. Depois do jantar, todos dormiam uma pequena sesta. A meio da tarde, comia-se alguma coisa e ao por do sol toda a gente largava o trabalho e ia para casa.
Como não havia relógios, o tempo de trabalho era regulado por cálculo e como orientação o nascer do sol, o toque dos sinos e muitas vezes o chilrear dos pássaros que nos acordavam de manhã muito cedo.

Relato de Joaquim Teodoro dos Santos, em pequena autobiografia, edição de autor, publicada pelo GEGA, em Janeiro de 2015.


José Teodoro Prata