As
comunidades não podem dissociar-se do passado, mas também não podem e não devem
parar no tempo. Quero dizer com isto que a vida é como uma moeda, tem duas
faces.
O
homem maduro, depois de obter a sua reforma. deve aproveitar o tempo que ainda
tem de vida para transmitir aos mais novos valores e conhecimentos que foi
adquirindo ao longo do tempo. A memória de alguém considerado idoso nunca pode
ser igual à memória de uma pessoa jovem. Os neurónios vão-se perdendo, a
memorização é diferente, enquanto alguém jovem apreende algo com uma facilidade
tremenda, a pessoa idosa muitas vezes vê-se e deseja-se para captar
determinadas matérias, nomeadamente disciplinas que requeiram concentração,
aprendizagem.
Sendo
assim, suponho que cada geração terá muito para oferecer à outra. As gerações
mais antigas podem e devem transmitir ensinamentos vividos e experienciados à
medida que os anos foram passando. Ensinar aos mais novos saberes que de outra
maneira se perderão para sempre, a partir do momento em que se corte o fio
ténue que nos une à vida.
Entre
a vida e a morte, o espaço que medeia estes dois momentos é tão pequenino, tão
curto, basta um esticãozito, o fio parte-se e tudo termina para este
mundo.
Sou
daqueles que acredita que não morreremos. O corpo, sim; o espírito jamais, pertence
ao Criador.
Já
estou a entrar por um caminho que não é aquele que quero apanhar hoje;
portanto… Adiante.
Idoso
ou não; todos temos muito que aprender uns com os outros, mas cada geração tem
o seu tempo.
Este
pequeno intróito tem a ver com o tema que vou explanar.
Estava
eu sentado num dos cais da nossa praça a ouvir o som da aparelhagem cujos
altifalantes iam debitando decibéis incomodativos, (música de arreda cão, para
mim), quando ao meu lado se sentou
uma simpática idosa. Depressa veio à baila o passado.
Tínhamos
que falar um tom acima do normal, o barulho ensurdecedor dos altifalantes…
-
Olha Zé, uma parte da minha casa ainda está tal e qual como era no tempo do
Hipólito Raposo, os sobrados e os tectos em castanho, são daquele tempo…
-
Qualquer dia, vou lá, se me deixar, claro.
-
Quando quiseres.
José
Hipólito Vaz Raposo nasceu no dia 12 de Fevereiro 1885, numa casa situada na rua
Velha, nº 47, na vila de São Vicente da Beira; não teve uma vida muito longa
pois, no dia 26 Agosto do ano 1953, faleceu em Lisboa; tinha 68 anos.
Era
filho de João Hipólito Vaz Raposo e Maria Adelaide Gama. Aos 17 anos entrou
para o seminário da Guarda, “influência
do seu irmão padre Domingos Vaz Raposo com certeza”.
Na
Guarda permaneceu dois anos, 1902/1904; depois entrou no liceu de Castelo
Branco e mais tarde partiu para Coimbra, onde se formou em Direito, 1911.
Não
me vou alongar mais com a sua biografia, o José Teodoro e outros já a
esmiuçaram amiudadamente.
No
passado mês de Setembro, desci a rua da Cruz, bati à porta da senhora Maria de
Jesus, que amavelmente me convidou a entrar. Ao fundo das escadas encontra-se
uma porta que dá acesso a três lojas onde guarda utensílios de lavoura, pipos,
tanque para o vinho… Subi, ao cimo das escadas, à esquerda, entro numa sala
repleta de recordações da sua família: quadros, fotografias dos antepassados… O
que imediatamente me chamou a atenção foi um Menino Jesus de Malines!
A
senhora Maria de Jesus falava, explicava e apontava.
-
Olha aqui ó Zé, para esta moldura: São
José, Menino Jesus e o São Roque; aquele quadro além é a Senhora dos Milagres, tem os milagres em toda a volta”.
-
E este Menino Jesus, perguntei.
-
Foi-me dado pela minha madrinha e tia Maria de Jesus; era irmã da minha mãe,
viveu 40 anos em Lisboa. Olha, tem dá réis
e tudo.
A
sala está igual ao que era no tempo do senhor João Raposo, o pai de Hipólito
Raposo.
-
É a sala de jantar, nunca cá comi nenhum jantar ou almoço.
-
Quer dizer, que aqui comeu muitas vezes Hipólito Raposo.
-
Com certeza.
-
Estas portas que dão acesso aos quartos, são as portas originais?
-
Isto não tinha portas; as cortinas fui eu que as pus. O sobrado e o tecto são
todos de castanho.
Entrei
nos quartos.
-
Terá sido neste quarto que nasceu Hipólito Raposo, é o maior. - diz a senhora
Maria de Jesus.
Fotografei
e seguimos.
Antes
de sairmos da sala, apontou para as portas de uma janela que dá para a rua.
-
Ó Zé, repara nestas portas, ainda entram num buraco que as segura, as da outra
janela já são modernas.
Ao
entrarmos no corredor disse-me: - Dava acesso à cozinha, a minha tia tapou a
porta, antes via-se logo a porta da rua.
-
Esta é a cama onde morreu a minha tia Resgate (catequista, zeladora da igreja).
Na
parede de outro aposento, um relógio de sala me chamou a atenção: - É muito antigo!
-
Se é, se é… já disse ao meu neto para mo por
aqui mais baixo para lhe dar corda; tem um defeito, quando começa a dar horas,
quando dá uma, temos que contar logo duas, parece que está a tocar ao fogo;
bam…bam…
-
Daqui para lá era à telha vã, e não era tão larga, tinha uma porta para o
quintal que já era velha, foi o meu homem que aumentou isto, não tinha aquele
quarto que é o meu. Aqui havia uma porta, repara nos buracos e no rasgo, era
para porem a tranca. O meu homem é que a tirou, porque era muito velha, aqui
era tudo à telha vã, era aonde a
minha avó tinha o tear; era tecedeira, esta sala não era tão larga, era mais
estreita. A minha avó chamava-se Josefa.
Entrámos
na cozinha, imediatamente a senhora Maria de Jesus apontando para o chão
dizendo.
-
O lar era aqui no meio, o Zé companhia
é que fez além a chaminé, o meu homem alargou para aqui a cozinha. As pedras do
lar eram iguais àquelas (ardosias que se encontram na soleira da antiga porta)
Olha, aqui está a dita porta que dava acesso ao corredor…
Entrei
no seu quarto, um cruxificado e várias imagens em cima da cómoda.
-
Uma vez cai agarrei-me à comoda, caíram os santos todos que estão em cima do
móvel; este Senhor que está além é muito antigo, ficou-me em cima do colo
atravessado, intacto; foi um milagre do Senhor Santo Cristo.
A
tarde já ia adiantada, tinha que ir regar as couves. Agradeci à Senhora Maria
de Jesus toda a atenção que me dispensou.
Com
os seus noventa anos, continua a ter uma memória invejável. Saí mais rico,
porque estive no lugar onde nasceu e viveu durante a sua meninice o escritor vicentino
doutor José Hipólito Vaz Raposo.
Corredor; ao fundo existiu uma porta que dava acesso à
cozinha.
A porta da janela é do tempo
do doutor
Hipólito Raposo, diz a senhora Maria de Jesus.
Um batente
entra num buraco na parte superior; estas portas não
tinham ferragens.
Tecto da sala todo em castanho
Cabides
Quarto onde terá nascido Hipólito Raposo.
O sobrado é todo de castanho, diz a senhora Maria de Jesus.
J.M.S