Um vaso, com o nome do artista e uma data
O objecto que aqui me traz é um
vaso.
O meu pai, João Teodoro, em certa
altura, começou a fazer vasos em cimento, revestindo os
lados com tiras de azulejos. Ficavam bonitos, com flores, partilhando o espaço com
canteiros de flores na parte fronteira da casa de família.
Alguns conservam-se ainda, mormente um, em minha casa, em Almada, de outro
feitio, um paralelepípedo há mais de 30 anos
habitado pela mesma sardinheira.
Este mesmo objecto me liga à
Senhora da Orada, de que o meu pai era devoto, acreditando nas virtudes
benfazejas da água daquela fonte. O vaso e a Senhora da
Orada dão
corpo a esta memória, que também mete o Seminário
do Tortosendo, minha escola durante quase 5 anos, dos meus 11 a 16 anos de
idade, onde se apurou a qualidade da vocação, sob o número
217.
Esta memória tem data,
registada no fundo de um vaso feito pelo meu pai.
Na qualidade de seminarista, e bom cantor,
uma competência que se esfumou com o tempo, eu participara,
com outros potenciais futuros padres, na missa da festa da Senhora da Orada, no
Maio do ano anterior - um acontecimento com nota pessoal negativa, uma vez que
o coral do Seminário do Tortosendo, finda a missa da Senhora
da Orada dali arrancou, sem participar no "festival merendário"
que por aqueles leirões se celebrava depois da missa e da procissão -
outro compromisso canoro havia a cumprir pelos infantes cantores, se não
me engano em Peraboa, Covilhã, creio na "missa nova" de um recém-ordenado-padre
da terra, que (por sinal) terá deixado de o ser poucos anos depois.
Um ano passado, nem tanto, eu já não
integrava aquele "exército seminarial". Não
por vontade própria, para que se saiba.
Aconteceu que, pelo Carnaval (Fevereiro ou
Março),
eu tinha sido expulso do Seminário.
Razões? Ao Prefeito (uma
espécie
de ministro do Interior, ou da Administração Interna do Seminário
do Tortosendo), de seu nome José G., terão ouvido dizer que,
ao praticar-se tal acto (a expulsão, entenda-se) se
tinham visto livres de um "cabecilha". Nunca consegui entender o
porquê do
cognome, nem como adquirira eu a tal dignidade, mas, enfim, que remédio!, arquivei.
Pretexto: uma carta por mim escrita, dirigida
a uma hoje senhora que todos conhecemos (com quem, por sinal, pouco ou nada
tinha falado, porque Deus me fez sobremaneira encolhido, esclareça-se,
aflitivamente tímido e envergonhado!) acho que, a tal carta, contendo umas
parvoíces
carnavalescas, achada pelo padre-Prefeito entre outros papéis, na minha mesa da
sala de estudo, na casa, numa operação de vistoria do
reverendo, como agora se diz à procura de indícios - de quê, não
sei, nem se visou apenas um ou mais residentes.
Num dos dias seguintes, lá
veio a ordem de expulsão, sem conversas e sem apelo possível,
irrevogável
portanto. Na mesma "encomenda", sem culpas próprias atribuídas, o
mano Artur, também estudante no mesmo Seminário, do 2º ou 3º ano, igualmente
expulso. Portadores, ambos, de declaração de frequência, com aproveitamento, do
último ano de estudos na instituição.
E é aí que começa a história do tal vaso, que
tem uma data escrita por baixo.
À surpresa do acontecido, pai e mãe
procuraram ser práticos. Fundamental era assegurar que não fossem para o lixo
os quase três anos de estudos do filho-cantor, o tal "cabecilha", que
assim seria se não fizesse, três meses volvidos, os exames de conclusão do
Secundário (o então 5º ano, o 9º de agora). Uns quinze dias passados, se tanto,
o ex infante-cantor subia na carreira da Auto Transportes, no Casal da Fraga,
rumo ao caminho-de-ferro, em Castelo Branco, tendo Lisboa como destino. Uma
viagem que tinha associada uma promessa do pai a Nossa Senhora da Orada.
Esqueçam-se os pormenores do ínterim; no
derradeiro do mês de Julho do mesmo ano, realizado na véspera, dia do funeral
do dr. Oliveira Salazar, o último exame do Secundário no Liceu Camões, em
Lisboa, voltei para S. Vicente; dali a poucos dias, pai e mãe sabiam que havia
uma promessa a ser paga a Nossa Senhora da Orada.
Só então eu soube que, por cima do cano da água da fonte, ia ser colocado um vaso, feito em cimento pelo meu pai, decorado lateralmente com pedaços de azulejos, fabricado, por devoção, para aquele fim. Por baixo, o homem que não sabia ler e somente sabia "fazer" o nome, escreveu as iniciais do seu nome, J. T., e por baixo, uma data, 1970.
José Miguel Teodoro
(Escrito em 19 de Maio de 2024, enquanto
decorria, na Senhora da Orada, a 3ª sessão de "Conta-me histórias", onde eu iria contar esta história. Concluído às 17:35H).