sexta-feira, 24 de maio de 2024

Conta-me histórias, 3

 Um vaso, com o nome do artista e uma data

O objecto que aqui me traz é um vaso.

O meu pai, João Teodoro, em certa altura, começou a fazer vasos em cimento, revestindo os lados com tiras de azulejos. Ficavam bonitos, com flores, partilhando o espaço com canteiros de flores na parte fronteira da casa de família. Alguns conservam-se ainda, mormente um, em minha casa, em Almada, de outro feitio, um paralelepípedo há mais de 30 anos habitado pela mesma sardinheira.

Este mesmo objecto me liga à Senhora da Orada, de que o meu pai era devoto, acreditando nas virtudes benfazejas da água daquela fonte. O vaso e a Senhora da Orada dão corpo a esta memória, que também mete o Seminário do Tortosendo, minha escola durante quase 5 anos, dos meus 11 a 16 anos de idade, onde se apurou a qualidade da vocação, sob o número 217.

Esta memória tem data, registada no fundo de um vaso feito pelo meu pai.

Na qualidade de seminarista, e bom cantor, uma competência que se esfumou com o tempo, eu participara, com outros potenciais futuros padres, na missa da festa da Senhora da Orada, no Maio do ano anterior - um acontecimento com nota pessoal negativa, uma vez que o coral do Seminário do Tortosendo, finda a missa da Senhora da Orada dali arrancou, sem participar no "festival merendário" que por aqueles leirões se celebrava depois da missa e da procissão - outro compromisso canoro havia a cumprir pelos infantes cantores, se não me engano em Peraboa,  Covilhã, creio na "missa nova" de um recém-ordenado-padre da terra, que (por sinal) terá deixado de o ser poucos anos depois.  

Um ano passado, nem tanto, eu já não integrava aquele "exército seminarial". Não por vontade própria, para que se saiba.

Aconteceu que, pelo Carnaval (Fevereiro ou Março), eu tinha sido expulso do Seminário.

Razões? Ao Prefeito (uma espécie de ministro do Interior, ou da Administração Interna do Seminário do Tortosendo), de seu nome José G., terão ouvido dizer que, ao praticar-se tal acto (a expulsão, entenda-se) se tinham visto livres de um "cabecilha". Nunca consegui entender o porquê do cognome, nem como adquirira eu a tal dignidade, mas, enfim, que remédio!, arquivei.

Pretexto: uma carta por mim escrita, dirigida a uma hoje senhora que todos conhecemos (com quem, por sinal, pouco ou nada tinha falado, porque Deus me fez sobremaneira encolhido, esclareça-se, aflitivamente tímido e envergonhado!) acho que, a tal carta, contendo umas parvoíces carnavalescas, achada pelo padre-Prefeito entre outros papéis, na minha mesa da sala de estudo, na casa, numa operação de vistoria do reverendo, como agora se diz à procura de indícios - de quê, não sei, nem se visou apenas um ou mais residentes.

Num dos dias seguintes, lá veio a ordem de expulsão, sem conversas e sem apelo possível, irrevogável portanto. Na mesma "encomenda", sem culpas próprias atribuídas, o mano Artur, também estudante no mesmo Seminário, do 2º ou 3º ano, igualmente expulso. Portadores, ambos, de declaração de frequência, com aproveitamento, do último ano de estudos na instituição.

E é aí que começa a história do tal vaso, que tem uma data escrita por baixo.

À surpresa do acontecido, pai e mãe procuraram ser práticos. Fundamental era assegurar que não fossem para o lixo os quase três anos de estudos do filho-cantor, o tal "cabecilha", que assim seria se não fizesse, três meses volvidos, os exames de conclusão do Secundário (o então 5º ano, o 9º de agora). Uns quinze dias passados, se tanto, o ex infante-cantor subia na carreira da Auto Transportes, no Casal da Fraga, rumo ao caminho-de-ferro, em Castelo Branco, tendo Lisboa como destino. Uma viagem que tinha associada uma promessa do pai a Nossa Senhora da Orada.

Esqueçam-se os pormenores do ínterim; no derradeiro do mês de Julho do mesmo ano, realizado na véspera, dia do funeral do dr. Oliveira Salazar, o último exame do Secundário no Liceu Camões, em Lisboa, voltei para S. Vicente; dali a poucos dias, pai e mãe sabiam que havia uma promessa a ser paga a Nossa Senhora da Orada.

Só então eu soube que, por cima do cano da água da fonte, ia ser colocado um vaso, feito em cimento pelo meu pai, decorado lateralmente com pedaços de azulejos, fabricado, por devoção, para aquele fim. Por baixo, o homem que não sabia ler e somente sabia "fazer" o nome, escreveu as iniciais do seu nome,  J. T., e por baixo, uma data, 1970. 

José Miguel Teodoro

 (Escrito em 19 de Maio de 2024, enquanto decorria, na Senhora da Orada, a 3ª sessão de "Conta-me histórias", onde eu iria contar esta história. Concluído às 17:35H).

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

A foto é da tertúlia onde esta história seria contada, não fora um imprevisto.
Não sei de quem é, pois várias pessoas me enviaram fotos.
Em todo o caso, o vaso não tem nela o realce que o objeto de cada história merece, pelo que procuraremos ter outra imagem em futura publicação.

José Teodoro Prata disse...

Boa romaria!

M. L. Ferreira disse...

José Miguel, foi pena não teres podido contar-nos esta história, ao vivo, junto à fonte da Senhora da Orada; mas, quem sabe, poderás partilhar outras no dia 30 de junho, no Casal da Fraga...
Quem é que, mesmo divindade, ficaria indiferente a um presente tão bonito? Deve ter sido por ele que se deu o milagre da tua passagem no exame…
Um artista, o teu pai!