segunda-feira, 27 de maio de 2024

Conta-me histórias, 3

O “Vermelho” 

A Rua Nicolau Veloso terá sido, desde sempre, uma das mais importantes vias de entrada e saída de São Vicente. No tempo em que os meus pais lá moraram continuava a ser ainda das ruas mais movimentadas da Vila. Desde madrugada ao sol-posto, rua abaixo, rua acima, não se esvaziava de gente: homens e mulheres a caminho das hortas, da ribeira ou dos pinhais; crianças para a escola, logo ali na Praça; quem chegava ou partia na camioneta da carreira, sempre motivo de curiosidade. Nas noites de verão enchia-se de vizinhos que fugiam da calma dentro de casa e vinham respirar o ar fresco soprado da serra. Para nós, os mais novos, era o mundo inteiro naquela rua.

Mas havia dias (diziam os mais velhos que era nas voltas de lua) em que esse mundo era perturbado por um homem que morava numa casa, mesmo ao fundo da rua. Chamávamos-lhe o “Vermelho”. Assim que o víamos debruçado à janela, a “pregar”, de braços levantados, tal e qual um padre nos sermões dos dias de festa, já não saíamos de casa; se andávamos na rua, corríamos a esconde-nos na primeira porta que encontrássemos aberta. De vez em quando espreitávamos, porque enfrentar o medo nos dava também algum prazer e transformava em quase heróis.

Mais ou menos por essa altura os meus avós moravam numa casa do Casal da fraga. Foram tempos bons, os que lá passei, principalmente durante as férias grandes, quando vinham também os meus primos da Covilhã. Trabalhávamos muito, em tudo o que havia para fazer em casa ou na horta, mas tínhamos tempo de sobra para brincar. “Brinquedos” também não faltavam porque tudo nos servia. Alguns dias, já mais pela fresca, a minha prima Nela e eu íamos à Senhora da Orada com a nossa avó, que trazia sempre alguma novena em atraso e aproveitava os dias grandes e alguma companhia para as cumprir.

Num desses dias, íamos já quase ao cimo da barreira, reparámos que andava um homem a roçar mato do lado de baixo da estrada. Reconheci logo o “Vermelho” e assustei-me, mas a minha avó tranquilizou-me: «não tenhas medo, filha, que ele não faz mal a ninguém», e continuámos o caminho. Daí a pouco sentimos que vinham a seguir-nos. Olhámos e era ele, de passo acelerado, a clamar, com o podão no ar, ameaçador. A minha avó, que deve ter sentido medo por nós, mandou-nos correr, mas nós, uma de cada lado, demos-lhe a mão e ajudámo-la a subir. Ela só dizia: «Nossa Senhora da Orada nos ajude! Nossa Senhora da Orada nos ajude!...» entremeando com Ave-Marias.

Passado algum tempo sentimos que já não havia ninguém atrás de nós. Olhámos, ainda com medo, e vimos o “Vermelho” a andar calmamente, estrada abaixo, o podão às costas, como se não fosse nada com ele. Nós continuámos o caminho até à capela, mas, pelo sim pelo não, à vinda metemos pelo caminho velho. Cruzámo-nos com ele, escondido debaixo de um molho de mato, já a caminho da Vila.

A minha avó contava esta história como mais um dos muitos milagres que a Senhora da Orada lhe fez. De vez em quando ainda me lembro dela como um dos maiores sustos que apanhei na vida.

 Nota: o “Vermelho”, que na verdade se chamava João, era o terror das crianças do meu tempo. Pelos vistos sem razão, porque o único perigo que constituía era ele achar que era médico e autor das cirurgias mais esquisitas que se possam imaginar. Dizem que ficou assim depois de, um dia em que teve que abrir uma sepultura para enterrar outro defunto (era coveiro), se ter deparado com um cadáver quase intacto. É possível que esse incidente também fosse fantasia, ou, a ser verdade, tenha potenciado o despoletar de um quadro de doença mental que, visto à distância de tantos anos, poderia ser algum tipo de esquizofrenia.   

M. L. Ferreira

2 comentários:

José Teodoro Prata disse...

É, o "Vermelho" era uma personagem e tanto! Curioso que estas personagens marcantes das aldeias dos tempos antigos eram todas pessoas pobres e com algum tipo de problema mental. Já o Miguel Torga os imortalizou no Garrinchas e outras personagens dos seus livros.
E se o "Vermelho" apenas vinha pedir ajuda, acenando com os braços, num dos quais tinha o podão? Nunca saberemos...

José Teodoro Prata disse...

Anônimo M. L. Ferreira disse...
É bem possível que aquela “perseguição” fosse apenas um pedido de ajuda ou chamada de atenção. O medo que tínhamos do “Vermelho” resultava principalmente do estigma de que eram vítimas todas as pessoas que, de alguma forma, eram diferentes. Não está longe o tempo em que, com o pretexto de as proteger da sociedade ou proteger a sociedade delas, eram fechadas em instituições com muito pouca dignidade.
Mas o pior é que, ainda hoje, oiço algumas pessoas referirem-se a alguém que padece de qualquer tipo de doença mental ou psiquiátrica, como sendo doidos ou doidas, e não revelam o mínimo de empatia com elas.
Por mais que tenhamos evoluído, a sociedade ainda não está preparada para aceitar o que é diferente da maioria (diferente de nós).