O
“Vermelho”
A
Rua Nicolau Veloso terá sido, desde sempre, uma das mais importantes vias de
entrada e saída de São Vicente. No tempo em que os meus pais lá moraram
continuava a ser ainda das ruas mais movimentadas da Vila. Desde madrugada ao sol-posto,
rua abaixo, rua acima, não se esvaziava de gente: homens e mulheres a caminho
das hortas, da ribeira ou dos pinhais; crianças para a escola, logo ali na
Praça; quem chegava ou partia na camioneta da carreira, sempre motivo de
curiosidade. Nas noites de verão enchia-se de vizinhos que fugiam da calma
dentro de casa e vinham respirar o ar fresco soprado da serra. Para nós, os
mais novos, era o mundo inteiro naquela rua.
Mas
havia dias (diziam os mais velhos que era nas voltas de lua) em que esse mundo
era perturbado por um homem que morava numa casa, mesmo ao fundo da rua.
Chamávamos-lhe o “Vermelho”. Assim que o víamos debruçado à janela, a “pregar”,
de braços levantados, tal e qual um padre nos sermões dos dias de festa, já não
saíamos de casa; se andávamos na rua, corríamos a esconde-nos na primeira porta
que encontrássemos aberta. De vez em quando espreitávamos, porque enfrentar o
medo nos dava também algum prazer e transformava em quase heróis.
Mais
ou menos por essa altura os meus avós moravam numa casa do Casal da fraga.
Foram tempos bons, os que lá passei, principalmente durante as férias grandes,
quando vinham também os meus primos da Covilhã. Trabalhávamos muito, em tudo o
que havia para fazer em casa ou na horta, mas tínhamos tempo de sobra para brincar.
“Brinquedos” também não faltavam porque tudo nos servia. Alguns dias, já mais
pela fresca, a minha prima Nela e eu íamos à Senhora da Orada com a nossa avó,
que trazia sempre alguma novena em atraso e aproveitava os dias grandes e
alguma companhia para as cumprir.
Num
desses dias, íamos já quase ao cimo da barreira, reparámos que andava um homem
a roçar mato do lado de baixo da estrada. Reconheci logo o “Vermelho” e
assustei-me, mas a minha avó tranquilizou-me: «não tenhas medo, filha, que ele
não faz mal a ninguém», e continuámos o caminho. Daí a pouco sentimos que
vinham a seguir-nos. Olhámos e era ele, de passo acelerado, a clamar, com o
podão no ar, ameaçador. A minha avó, que deve ter sentido medo por nós,
mandou-nos correr, mas nós, uma de cada lado, demos-lhe a mão e ajudámo-la a
subir. Ela só dizia: «Nossa Senhora da Orada nos ajude! Nossa Senhora da Orada
nos ajude!...» entremeando com Ave-Marias.
Passado
algum tempo sentimos que já não havia ninguém atrás de nós. Olhámos, ainda com
medo, e vimos o “Vermelho” a andar calmamente, estrada abaixo, o podão às
costas, como se não fosse nada com ele. Nós continuámos o caminho até à capela,
mas, pelo sim pelo não, à vinda metemos pelo caminho velho. Cruzámo-nos com
ele, escondido debaixo de um molho de mato, já a caminho da Vila.
A minha avó contava esta história como mais um dos muitos milagres que a Senhora da Orada lhe fez. De vez em quando ainda me lembro dela como um dos maiores sustos que apanhei na vida.
Nota: o “Vermelho”, que na verdade se chamava João, era o terror das crianças do meu tempo. Pelos vistos sem razão, porque o único perigo que constituía era ele achar que era médico e autor das cirurgias mais esquisitas que se possam imaginar. Dizem que ficou assim depois de, um dia em que teve que abrir uma sepultura para enterrar outro defunto (era coveiro), se ter deparado com um cadáver quase intacto. É possível que esse incidente também fosse fantasia, ou, a ser verdade, tenha potenciado o despoletar de um quadro de doença mental que, visto à distância de tantos anos, poderia ser algum tipo de esquizofrenia.
M. L. Ferreira