Este objeto com história não foi apresentado na segunda tertúlia do Conta-me histórias, realizada a 28 de abril, sob o tema 25 de Abril. Como animador das sessões, tenho de ter sempre algo na manga e este objeto não saiu da minha pasta porque nesta tertúlia as duas horas foram bem recheadas de histórias de tantos participantes.
Aguardo o envio dos textos dos intervenientes nesta e na primeira tertúlia, para os dar a conhecer, aqui, a quem não esteve presente.
O
(meu) Capital
Este é o 1.º volume do
livro I de O Capital, de Karl Marx. O preço marcado a lápis parece
indicar 25 escudos. Está rubricado e datado por mim: 23-Agosto-1974.
Comprei-o na Papelaria
Central do Tortosendo, situada no largo central desta vila. Pela data, foi
durante a minha habitual ida ao seminário, a meio das férias grandes. Eu tinha
então 17 anos e frequentava o Seminário do Verbo Divino, no Tortosendo, uma
vila operária com grandes tradições de luta contra o regime ditatorial que
governara Portugal cerca de 48 anos.
Os padres do seminário,
formados em universidades da Alemanha e dos Estados Unidos, eram adeptos da
democracia, mas não faziam abertamente campanha, junto dos alunos, contra o
regime que vigorara até ao 25 de Abril. Prova disso é que só há três anos soube
a razão porque pessoas da povoação nos perguntavam pelo padre Jerónimo, pois o
queriam no comício do 1.º de Maio, que antecedeu o desfile até à Ponte
Pedrinha, onde milhares de pessoas se espalharam pelas margens do rio Zêzere,
partilhando as suas merendas. Ele tinha direito a honras de palanque, a que se
esquivou, porque em finais de 1973 escrevera no Jornal do Fundão um longo
artigo advogando a democratização do país.
Sabíamos dos presos no
1.º de Maio de anos anteriores, trabalhadores que faltavam ao trabalho nesse
dia e se juntavam debaixo de uma latada a petiscar e a beber uns copos, mas a
meio da tarde eram levados pela GNR, pois logo de manhã os patrões tinham
comunicado à PIDE quem faltava ao trabalho. Mas no ano seguinte, lá teimavam
eles em comemorar o dia do trabalhador!
Eu frequentava o 6.º
ano, atual décimo (na época, o ensino secundário tinha a duração de dois anos e
não três, como atualmente). Por serem mais velhos, os alunos do secundário
tinham direito a uma noite de televisão por semana, à sua escolha. Nesse ano
letivo, mas ainda antes da revolução, o padre Vaz, nosso prefeito, deu-nos uma
noite extra para ouvirmos as Conversas em Família do presidente do
Conselho, Marcelo Caetano. Recusámos, mas ele disse-nos que para vencermos um
inimigo tínhamos primeiro de o conhecer bem. Foi em vão, preferimos ir para a
cama, às 21:30h.
Um dia, num passeio ao
entardecer, o mesmo padre Vaz, pessoa bastante conservadora, partilhou comigo e
com o meu colega José Antunes a história do bispo do Porto, D. António Ferreira
Gomes, que escrevera uma carta a Salazar, criticando a sua política e aconselhando-o
a iniciar um processo de democratização. Salazar castigou-o com o exílio, por
10 anos (1959-69).
Eram boas as relações do
Seminário com o Unidos do Tortosendo, um clube operário que se dizia ser dirigido
por comunistas. Ficou até célebre, e com direito a retrato para a posteridade,
a informação que o padre Garibaldi, um missionário brasileiro do nosso
seminário, deu a um governante do Estado Novo, que, cerca de 1971, foi ao
Tortosendo conhecer o projeto da nova sede para o Unidos. Tão bem falou da
coletividade que o Governo abriu os cordões à bolsa e a obra fez-se.
Ainda representámos
teatro na antiga sede: O Lugre de Bernardo Santareno e O
Assassínio na Catedral, relativo à morte do bispo católico Thomas Becket,
na Inglaterra medieval. Havia no clube um senhor já idoso que todos
referenciavam e que sempre cumprimentava os seminaristas com especial simpatia.
Era o senhor Ribeiro, soube anos mais tarde, pelo Jornal do Fundão, quando foi
homenageado no Tortosendo. Depois do 25 de Abril, também se falava muito de um
preso, não comunista, que fora libertado. Então pensei que fosse do MRPP, que
na altura tinha alguma expressão na Vila, mas soube há poucas semanas que era
da LUAR e se chamava Ramiro Raimundo.
Aqui chegados, pode o
leitor ser levado a concluir que nós, os seminaristas, éramos muito
politizados. Não, vivíamos numa bolha, que apesar de tudo nos abria horizontes
para a existência de pessoas que pensavam de forma diferente e para a
necessidade da democratização do país. Mas só isso. Desconhecíamos partidos e
ideologias, como quase todos os portugueses.
Voltando ao objeto deste
texto, o meu O Capital está forrado com um cartaz lindíssimo de cravos em fundo
negro, com a foice, o martelo e a estrela sobrepostos, em amarelo. Roubei-o ao
Partido Comunista, no outono de 74. Estava afixado no lagar dos Garret, à beira
da estrada, a meio caminho do cruzamento do seminário com a povoação. A altura
de 3 metros não foi para nós, jovens adolescentes, um obstáculo. Um colega meu,
menos pesado, trepou por mim acima e, com os pés nos meus ombros e uma mão
encostada à parede, com a outra arrancou o cartaz, que já estava pouco seguro e
nem se rasgou.
No verão de 75, a minha
prima Carmita, já estudante universitária, então nas habituais férias em São
Vicente, questionou-me sobre as minhas leituras (ou eu falei no assunto, para
me gabar, não me lembro bem). Disse-lhe e a quem nos rodeava que tinha lido O
Capital. Ela ficou estupefacta e informou-me que O Capital de Karl Marx
era uma obra vasta, com vários livros e volumes. Não, eu só lera um volume,
esclareci!
A leitura não me foi
fácil, pois a economia era então uma área quase não abordada nos livros de
História do secundário. Mas ficou-me para sempre a questão das mais valias:
o patrão cria a empresa, equipa-a, paga as matérias-primas, a luz, a água…,
recebe o seu ordenado e paga os salários aos trabalhadores. Pagas todas as
despesas, incluindo o vencimento do empresário, ficam os lucros, dos quais este
se apodera na totalidade, embora tenham sido obtidos com o trabalho de todos.
Era natural que os lucros, as mais valias, fossem distribuídos equitativamente, ficando o
empresário com uma larga percentagem, para o premiar do investimento realizado
e do cargo desempenhado, mas certa percentagem deveria ser distribuída pelos
trabalhadores, igualmente fundamentais na criação dessa riqueza.
Por isso ninguém
enriquece a trabalhar e a distância entre os rendimentos dos assalariados e os
dos empresários é cada vez maior. Situação agravada quando os aumentos
salariais não acompanham o aumento da produtividade, como aconteceu nos últimos
20 anos, na Europa, segundo um estudo recentemente divulgado.
José Teodoro Prata