Esta história, da primeira tertúlia, na Casa do Povo, não chegou a ser contada, por falta de tempo. Como estava feita, aqui a deixo para que a conheçam.
A dobadoira
Esta dobadoira era da
minha mãe e terá sido feita pelo irmão José ou pelo pai João Prata. Ambos eram
carpinteiros, tal como o irmão António, que, por ser mais velho, já não vivia
em casa dos pais quando a minha mãe Maria da Luz preparou o enxoval para se
casar, em 1950. Dobadoira e tear, um deles foi de certeza feito pelo irmão José
Prata, já não me recordo qual, talvez até os dois.
A casa dos meus avós
maternos, João Prata e Doroteia dos Santos, era quase autossuficiente. Produzia
todos os produtos agrícolas necessários à alimentação da família e ainda o
linho para tecer, no tear da loja, o enxoval das seis filhas. Com três carpinteiros
em casa, eram eles que fabricavam todos os móveis e utensílios de madeira
necessários à vida doméstica. Pouca coisa tinha de ser adquirira fora, como o
calçado que era feito por um grupo de sapateiros que uma vez por ano passava lá
por casa, onde comiam e dormiam, até fazer calçado para toda a família. O
dinheiro para lhes pagar e para outras despesas vinha da venda de azeite,
sobretudo das oliveiras dos Canavéis, cujas oliveiras bicais davam um azeite
especialmente fino e por isso bem pago.
Mas voltemos à
dobadoira. Tinha-a em minha casa há demasiado tempo, pois levei-a para mandar
restaurar a parte inferior, mas fui adiando e só neste inverno fiz o que
combinara com a minha mãe. Agora volta à casa da família.
A dobadoira serve para
transformar as meadas de lã em novelos. Às vezes a nossa mãe metia a meada nos
braços de um dos filhos mais crescido, mas a certa altura os braços doíam e tinha
de nos aturar as queixas. Por isso usava sobretudo a dobadoira, procurando a
ponta do fio de lã e começando a enrolar em novelo, com a dobadoira a girar. Na
parte inferior há quatro divisões, onde se colocavam os novelos já feitos ou a
meio, se a dobagem tivesse de ser interrompida.
E ela ensinava a
lengalenga aos filhos: Doba, doba, dobadoira, / não me enleies a meada. / O
novelo é pequeno, / já tenho a mão cansada. / Doba, doba, dobadoira, / não me
enleies o novelo. / Doba, doba, dobadoira, / as tranças do meu cabelo. Nós bebíamos-lhe
estas palavras que agora recordamos.
A nossa mãe fazia todas as
camisolas de lã para a sua casa de muita gente. Algumas eram verdadeiras obras
de arte. Fez isso ainda durante toda a década de 70, quando as minhas irmãs
mais velhas começaram a comprar camisolas de lã industriais, para elas e para
os irmãos mais novos. Nos anos 80, fazia tapetes também tricotados a lã, ainda
tenho um em minha casa.
O trabalho em linho e lã
tinha grande tradição em São Vicente da Beira. Durante o século XVIII,
sobretudo na segunda metade, a Vila foi um dos maiores centros industriais de
lanifícios da Beira, a sul da Gardunha. Nos inquéritos industriais pombalinos,
de 1758, são referidos como grandes centros industriais Alcains, Castelo
Branco, os Montes(?) e São Vicente da Beira. Em 1779, a Real Fábrica dos
Lanifícios da Covilhã colocara aqui, para ensinar os trabalhadores, um espanhol
mestre da roda de fiar e dois portugueses mestres dos teares. Na fábrica-mãe
trabalhava o espanhol João António Robles, de Béjar, Espanha, cujo filho veio
casar a São Vicente, com uma Ribeiro, dando origem à família Ribeiro Robles. Em
1790, havia 177 cardadores e fiadeiras (estes totais seriam de todo o
concelho). Um relatório militar de 1804, elaborado por August du Fay, coronel
do Estado Maior do Exército Português, refere as localidades onde seria
conveniente criar armazéns se abastecimento das tropas, em caso de invasão
estrangeira. Aponta V. V. de Ródão, C. Branco, S. Vicente da Beira e Fundão.
Aqui havia casas, capelas, um convento e uma fábrica onde se podiam fazer
armazéns. Neste mesmo ano, trabalhavam 2349 pessoas para a manufatura da
Covilhã, sendo 1930 destes trabalhadores das 8 escolas de fiação a ela
associadas: Alpedrinha, Casteleiro, Castelejo, Penalva, Penamacor, São Gião, S.
Miguel d´Acha e S. Vicente da Beira.
José Teodoro Prata
2 comentários:
Até aí por volta dos meus doze anos também era a minha mãe que fazia todas as camisolas e casacos de malha para os filhos. Sabia fazer muito pontos, mas do que eu mais gostava era dos favos de mel e das tranças. O jeito que lhe tinha dado ter uma dobadoira, porque, é verdade, era uma tortura dobar as meadas de lã nos braços esticados. Eu era a mais sacrificada, por ser a filha mais velha. Depois vieram as máquinas e deixaram de se usar tanto os tricots feitos à mão. Voltaram uns anos mais tarde, e o tormento repetiu-se com o meu filho, que, às vezes, ainda me lembra alguns momentos em que se sentiu vítima de maus-tratos, principalmente se a meada se enleava.
Numa altura em que ia com alguma frequência ao Lar e conversava com as pessoas, muitas falavam do cultivo e tratamento do linho, para uso doméstico, como prática habitual quando eram mais novas; quase como se cultivassem batatas ou milho. E é verdade que a profissão da maior parte das mulheres, ainda no século XIX, era a de tecedeira. Não admira que São Vicente fosse considerado um dos grandes centros industriais da época.
E quando penso que já não havia muito a dizer sobre a dobadoira, além do jeito que nos deu para aliviar o cansaço dos braços, que nos calhava a todos quando a nossa mãe tinha que dobar as meadas para fazer as camisolas para a família toda, eis que somos presenteados com a história dos lanifícios na nossa terra, com que o autor do blogue nos presenteia e que eu desconhecia.
Tina Teodoro
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