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domingo, 23 de maio de 2021

Festas e romarias

 A cultura popular tem muitas manifestações, mas as festas e romarias são talvez das mais antigas e mais importantes: num tempo em que as populações eram ciclicamente atormentadas por pestes, pragas (principalmente de gafanhotos), guerras e secas, a fome, a doença e a morte eram uma ameaça constante na vida das pessoas. O povo, quase sempre pobre e pouco instruído, não tinha outra forma de enfrentar estas ameaças, muitas vezes sentidas como castigo divino pelos pecados do mundo, senão através da oração, do cumprimento de promessas ou de esmola aos mais pobres ou à Igreja. Foi desta forma que, por todo o país surgiram igrejas e capelas onde as populações se juntavam em preces pelo auxílio divino, da Virgem ou dos santos da sua devoção.

Mas não eram apenas locais de oração, estes santuários. Ao longo dos séculos foram-se tornando também lugares de festa, diversão e convívio social, tão aguardado pelas populações durante o ano inteiro de trabalho no campo. A Beira Baixa é um bom exemplo desta prática, testemunhada pela abundância de ermidas espalhadas por todo o território, quase todas com uma lenda associada.

Segundo Jaime Lopes Graça, só no distrito de Castelo Branco existem perto de oitenta destes pequenos templos, quase sempre capelas com alpendre, dedicados às mais variadas devoções. São muitos os santos e Senhoras venerados, mas há alguns que têm maior representação entre nós: São Sebastião, Santa Bárbara, Santo António, Santa Cruz, Senhora dos Remédios, Senhora das Preces, e vários outros.    

Muitas destas capelas situam-se dentro ou às portas das povoações, mas algumas foram construídas em locais mais distantes, quase sempre de grande beleza natural ou com vistas desafogadas. É o caso da Senhora de Mércules, em Castelo Branco, da Senhora do Almortão, em Idanha-a-Nova ou da Santa Luzia, no Castelejo. Serão também estes os santuários que mais peregrinos concentram nos dias das suas festas; a maior parte das povoações à roda, mas muitos vindos de longe.

Na nossa freguesia, à semelhança de tantas outras da Beira Baixa, dizimada ciclicamente por toda a espécie de calamidades, é antigo o culto a vários santos e à Nossa Senhora:

 

O São Sebastião

Tem capela numa das entradas da Vila, no largo com o seu nome. A festa, realizada no fim-de-semana mais próximo do dia 20 de janeiro; é simples, mas cheia de valor simbólico para toda a população: no sábado à noite, depois duma oração, a imagem do santo é levada para a Igreja Matriz onde permanece até ao dia seguinte. Na manhã de domingo regressa em procissão, acompanhado pelo São Vicente, para a sua capela onde é rezada a missa.

A São Sebastião pede-se proteção contra a fome e as doenças, e é o único santo a quem continuamos a celebrar o bodo. Esta prática antiga consiste, entre nós, na bênção de papo-secos que são distribuídos pela população (antigamente seria apenas aos mais pobres). Acredita-se que se forem guardados até ao ano seguinte, não faltará pão em casa ao longo todo o ano. Depois da missa, são também oferecidas filhós e tremoços a todos os presentes, e vendidas fitas coloridas que era hábito colocar à volta do pescoço das crianças para as proteger das doenças. Não serviriam de muito porque continuavam a morrer às dezenas todos os anos, mas também não era por isso que a fé no santo diminuía…  

Na Partida o São Sebastião também tem uma capela, e continuam a fazer-lhe a festa no dia 20 de janeiro. 

 

 

A Santa Bárbara

Já foi do Sobral, mas agora tem capela no Casal da Fraga, onde lhe fazemos a festa no terceiro fim-de-semana a seguir à Páscoa. Nem sempre foi assim, mas desde há alguns anos que a imagem da santa é levada na véspera à tarde para a Igreja Matriz onde fica até à noite. Regressa depois à sua capela numa, procissão à luz das velas e na cadência do toque da Banda. Já na capela, é feita uma oração com muitos fiéis a assistir no exterior, por não caberem lá dentro. No domingo, depois da missa, faz-se também a procissão acompanhada pela Banda.

A esta mártir pede-se proteção contra as trovoadas:

 

Santa Bárbara, Bendita

Que no céu está escrita

Com raminhos de água benta,

Livrai-nos desta tormenta.

Espalhai-a lá para bem longe

Onde não haja eira nem beira,

Nem raminho de oliveira,

Nem raminho de figueira,

Nem mulheres com meninos,

Nem ovelhas com borreguinhos,

Nem pedrinhas de sal,

Nem nada a que faça mal.

Amém!

 

Desde há alguns anos que esta festa alia também a vertente de diversão e convívio às manifestações religiosas. O concerto da Banda e a atuação do Rancho são os momentos mais esperados pelos mais velhos. Para os mais novos não falta a música para dançar até às tantas.

 

O Santo António 

Com capela na entrada da Vila, oposta à de São Sebastião, tem a festa em Agosto. Para além da missa e da procissão pelas ruas da Vila, também acompanhada pela Banda, fazia-se o leilão das ofertas doadas pelos fiéis. Protetor dos animais domésticos, principalmente dos porcos, faziam-se-lhe promessas de chouriças, morcelas e farinheiras se os livrasse das malinas que os atacavam com alguma frequência. Se morriam, faltava o conduto do ano inteiro…

Por alturas do carnaval organizava-se o ramo: um homem (o Ti Calmão, no nosso tempo) percorria as ruas da Vila com um pau muito comprido que tinha cravado outros mais pequenos a toda a roda. As pessoas que tinham feito promessas vinham à porta, ou mesmo da janela dependuravam as peças de enchido que tinham prometido. O ramo era depois leiloado e o produto da venda revertia a favor do Santo.

Para além de proteção para os animais, também lhe eram feitas preces para proteção do olival:

 

Santo Antoninho pequenino

Que anda plos olivais

A guardar as suas azeitoninhas,

Que lhas comem os pardais.

Cruz em monte, cruz em fonte

Que nunca o diabo encontre,

Nem de noite nem de dia

Nem às horas do meio-dia.

Já os galos cantam,

Já os anjos se alevantam

Já Jesus subiu à cruz

Para nos guardar pra sempre.

Assim seja, Ámen Jesus.

 

O povo da Partida, do Casal da Serra e do Mourelo também tem muita devoção neste santo. Faziam-lhe grandes festas durante o mês de Agosto, mas, à semelhança do que se passa na Vila, também por lá as celebrações têm vindo a perder o fervor e brilho de outros tempos.  

 

O Santiago

Diz a lenda que depois de muito penar nas Lameiras, ao fundo da Partida, o Santo lá conseguiu que lhe fizessem a capelinha no cimo do Cabeço. É modesta, mas de lá abarca tudo à roda e pode ver os irmãos, com os quais andaria desavindo. A festa fazem-lha os moradores da Partida, do Violeiro, do Mourelo e Vale de Figueiras no primeiro de maio (na Partida fazem-lhe outra em Agosto). E que festa! Nenhum dos povos, nomeado rotativamente, quer ficar atrás do outro.

Com que vivacidade recorda a Ti São Pedro: «Quando era pelo Santiago era uma alegria. Mesmo quem andava por lá, nunca faltava. Era uma festa muito linda. Cada terra trazia o seu ranchinho com um homem a tocar concertina, e as mulheres atrás, a cantar. Ia tudo a pé por esse caminho afora. Quando lá chegávamos dávamos a volta à capela, sempre a cantar, a ver quem ganhava. Os do Vale da Figueira ganhavam quase sempre porque vinham os do Açor e ajudavam-nos no rancho. Depois da missa vínhamos para casa e comia-se a carne e os doces que já tinham sido preparados de véspera ou de manhã cedo. As famílias todas juntas, nem cabiam dentro de casa e vinha-se para a rua a comer. Era muito lindo!»

Com algumas diferenças, sinais dos tempos, a festa continua com o mesmo entusiasmo. Depois da missa e da procissão os homens dão várias voltas ao recinto a tocar bombos, pífaros, concertinas e castanholas; as mulheres, atrás, vão cantando e dançando. Um homem eleva a bandeira da terra que organiza a festa (neste ano vê-se a do Mourelo). Sempre que passam em frente da capela ajoelham todos, em recolhimento. A seguir, no adro, continuam a tocar, ao despique, e as mulheres dançam à roda. Uma alegria que contagia todos os que participam ou assistem.

Algumas famílias levam merenda, outras continuam a comê-la em casa, quase sempre com amigos que vêm de longe ou de outras terras ali à roda. Mais recentemente, já há que comer e beber com fartura no recinto da festa e muita gente mantém-se junto à capela até mais tarde. Aproveitam para cumprir uma tradição que diz que quem puser o chapéu do santo passa o ano inteiro livre de dores de cabeça:

 

Santiago, lá no alto,

É um anjinho do céu,

Tira as dores de cabeça

A quem põe o seu chapéu.

 

A Senhora da Orada

Por dentro há muito que a capela está a pedir obras, mas por fora é uma beleza. É também a que está no lugar mais bonito das redondezas. Será por isso que é visitado por muita gente ao longo de todo o ano; alguns para rezar e pagar promessas, mas muitos apenas para usufruírem da paz e beleza da paisagem e da frescura da água da fonte, com fama de milagrosa.

A festa é no quarto domingo de maio, mas houve tempos em que ainda o dia lá vinha longe e já no ar andavam as cantigas:

 

Nossa Senhora da Orada,

Este ano lá hei de ir,

Não vos hei de levar nada

Inda vos hei de pedir.

 

Nas vésperas era uma azáfama a fazer a merenda: tudo do melhor que havia em casa, a contar com a família toda. No domingo de manhã, um mar de gente, caminho acima; os cestos da merenda à cabeça das mulheres ou às costas dos homens. Os filhos mais pequenos, pela mão ou ainda ao colo.

Na missa campal, o sermão a contar a vida da menina escorraçada pelo pai ou a lembrar os que estavam longe, punha as mulheres em lágrimas. Depois era a procissão, toda a gente com velas que mal se conseguiam abarcar, para agradecer os favores recebidos ao longo do ano; quase sempre para pedir outros ficados por conceder.

O andor da Senhora, aos ombros dos rapazes mobilizados para a guerra.  

A seguir a merenda: uma fartura de tudo o que era bom estendida no chão, em cima duma toalha; a família toda à roda. Finalmente uma visita pelas tendas espalhadas ao longo do caminho ou um pezinho de dança ao toque de realejo ou concertina.

À tardinha regressava toda a gente a casa, já com saudades, mas ainda a cantar:

 

Nossa Senhora da Orada,

As costas vos vou virando,

Minha boca se vai rindo,

Os meus olhos vão chorando.

 

Algumas destas festas e romarias mantêm a mesma capacidade de chamar gente, quer seja levada pela fé ou apenas pela tradição, mas uma grande parte tem vindo a perder a importância de outros tempos. As razões são muitas, mas a principal será a perda de população em muitas terras, que começou com a emigração de muitos homens, principalmente para França. As mulheres que ficavam sozinhas com os filhos não tinham alegria para romarias; muitas acabaram por partir também e as terras foram-se esvaziando de gente. Por outro lado, a evolução da ciência e a melhoria da condição económica e social contribuiu para eliminar muitas doenças e a situação de pobreza que atravessava as gerações desde sempre. Deixou, por isso, de haver necessidade de recorrer tantas vezes à ajuda dos santos protetores.

Mas a fé no poder divino e dos santos continua. Ainda há dias o Papa Francisco pedia a união dos povos numa oração pelo fim desta pandemia. Conhecendo nós um pouco do seu pensamento e do teor das suas mensagens, não me parece que se referisse apenas a que batêssemos no peito e disséssemos muitos Pai-nossos e Ave-Marias…

M.L. Ferreira

domingo, 3 de abril de 2011

Os franciscanos em São Vicente

A presença franciscana remonta, na nossa terra, possivelmente, ao século XV ou XVI. Quase todos os templos da Vila são desses finais dos tempos medievais e inícios da Idade Moderna, excepto a Igreja Matriz (erigida na época da fundação da povoação) e a Orada (é muito mais antiga que a Matriz, mas a actual capela também foi construída naquele período).
Nesses fins da Idade Média, São Vicente terá alcançado o seu máximo desenvolvimento económico e social. Houve então riqueza para levantar templos, palácios e equipamentos públicos, como a Câmara Municipal e o Pelourinho.
A capela de São Francisco não foge a esta regra. O grande arco de volta perfeita, no seu interior, com a aresta cortada, é, na nossa Beira, tipicamente quinhentista. Esteve, até há poucos anos, pintado de azul (Já não me recordava, lembrou-mo, há uns tempos, a Ilda Jerónimo).


Mas o templo não foi, desde o início, de devoção a São Francisco, mas sim a Santo António, ele próprio franciscano e contemporâneo do fundador da Ordem Franciscana, com quem ainda se encontrou, na Itália que depois o adotou como seu e onde se tornou um dos santos maiores da Cristandade.


Foi, pois, a capela dedicada a Santo António, até 1744. Nesse ano, veio a São Vicente um grupo de frades franciscanos pregar uma missão. E a sementeira foi de tal modo fecunda que, nos anos seguintes, a capela deixou de pertencer apenas a Santo António para a ser, sobretudo, dedicada a São Francisco. Nela teve sede, logo de seguida, a Irmandade da Ordem Terceira e terá sido criada também, por esses anos, a procissão dessa mesma irmandade, a Procissão dos Terceiros que hoje vai, novamente, percorrer as ruas da nossa Vila.


São Francisco recedendo a bula da criação da Ordem Terceira das mãos do Papa Inocêncio III.

Ainda por esses anos, foi edificado o Calvário, quase em frente à capela. Já estava construído em 1758. O Calvário servia de palco, ainda é, de uma outra grande tradição vicentina, a Procissão dos Passos, na Sexta-Feira Santa. Mas também esta tradição tem origens franciscanas, esta das Religiosas do Convento, igualmente fundado no século XVI. Mas este assunto fica para desenvolver, noutra ocasião.
A capela nunca deixou de ser dedicada também a Santo António. A sua festa ainda se realiza, anualmente, no terceiro domingo de Agosto. Quando era criança, questionava os adultos sobre a pertença da capela. Uns ainda se lhe referiam como capela de Santo António, a maioria de São Francisco, mas depois lá vinha a festa de Agosto, para me voltar a baralhar.
A doação da capela a São Francisco marcou também a toponímia local. Toda a zona envolvente da capela tem o nome do santo assim como tomou o seu nome o caminho, hoje rua, de saída da Vila em direção ao Casal da Fraga e à parte superior do vale da Ribeirinha.
Às vezes, é preciso olharmos para longe, a fim de percebermos a verdadeira grandeza do que temos. Neste caso, para o Violeiro. Em 1766, faleceu Brittis Maria Cabral de Pina, viúva do Sargento-Mor Domingos Nunes Pouzaõ do Violeiro, antepassados dos viscondes de Tinallhas, como já expliquei no artigo referente ao Cabeço do Pe. Teodoro. Na hora da sua morte, Brittis Cabral de Pina quis que o seu corpo fosse amortalhado com o hábito de São Francisco. Há meses, o Irmão José Amaro, também do Violeiro, contou-me que, ainda adolescente, teve de calcorrear o caminho do Violeiro até São Vicente, descalço, à frente de um carro de bois, para fazer o funeral do seu avô. Isto cerca de 1950. Passaram junto ao cemitério da Partida, mas não puderam parar, pois o avô exigira ficar sepultado no chão sagrado de São Francisco.