A cultura popular tem muitas manifestações, mas as festas e romarias são talvez das mais antigas e mais importantes: num tempo em que as populações eram ciclicamente atormentadas por pestes, pragas (principalmente de gafanhotos), guerras e secas, a fome, a doença e a morte eram uma ameaça constante na vida das pessoas. O povo, quase sempre pobre e pouco instruído, não tinha outra forma de enfrentar estas ameaças, muitas vezes sentidas como castigo divino pelos pecados do mundo, senão através da oração, do cumprimento de promessas ou de esmola aos mais pobres ou à Igreja. Foi desta forma que, por todo o país surgiram igrejas e capelas onde as populações se juntavam em preces pelo auxílio divino, da Virgem ou dos santos da sua devoção.
Mas não eram apenas locais de oração, estes
santuários. Ao longo dos séculos foram-se tornando também lugares de festa,
diversão e convívio social, tão aguardado pelas populações durante o ano
inteiro de trabalho no campo. A Beira Baixa é um bom exemplo desta prática,
testemunhada pela abundância de ermidas espalhadas por todo o território, quase
todas com uma lenda associada.
Segundo Jaime Lopes Graça, só no distrito de
Castelo Branco existem perto de oitenta destes pequenos templos, quase sempre
capelas com alpendre, dedicados às mais variadas devoções. São muitos os santos
e Senhoras venerados, mas há alguns que têm maior representação entre nós: São
Sebastião, Santa Bárbara, Santo António, Santa Cruz, Senhora dos Remédios,
Senhora das Preces, e vários outros.
Muitas destas capelas situam-se dentro ou às
portas das povoações, mas algumas foram construídas em locais mais distantes,
quase sempre de grande beleza natural ou com vistas desafogadas. É o caso da
Senhora de Mércules, em Castelo Branco, da Senhora do Almortão, em
Idanha-a-Nova ou da Santa Luzia, no Castelejo. Serão também estes os santuários
que mais peregrinos concentram nos dias das suas festas; a maior parte das
povoações à roda, mas muitos vindos de longe.
Na nossa freguesia, à semelhança de tantas
outras da Beira Baixa, dizimada ciclicamente por toda a espécie de calamidades,
é antigo o culto a vários santos e à Nossa Senhora:
O São
Sebastião
Tem capela numa das entradas da Vila, no largo
com o seu nome. A festa, realizada no fim-de-semana mais próximo do dia 20 de
janeiro; é simples, mas cheia de valor simbólico para toda a população: no
sábado à noite, depois duma oração, a imagem do santo é levada para a Igreja
Matriz onde permanece até ao dia seguinte. Na manhã de domingo regressa em procissão,
acompanhado pelo São Vicente, para a sua capela onde é rezada a missa.
A São Sebastião pede-se proteção contra a fome
e as doenças, e é o único santo a quem continuamos a celebrar o bodo. Esta
prática antiga consiste, entre nós, na bênção de papo-secos que são
distribuídos pela população (antigamente seria apenas aos mais pobres).
Acredita-se que se forem guardados até ao ano seguinte, não faltará pão em casa
ao longo todo o ano. Depois da missa, são também oferecidas filhós e tremoços a
todos os presentes, e vendidas fitas coloridas que era hábito colocar à volta
do pescoço das crianças para as proteger das doenças. Não serviriam de muito
porque continuavam a morrer às dezenas todos os anos, mas também não era por
isso que a fé no santo diminuía…
Na Partida o São Sebastião também tem uma
capela, e continuam a fazer-lhe a festa no dia 20 de janeiro.
A Santa Bárbara
Já foi do Sobral, mas agora tem capela no Casal
da Fraga, onde lhe fazemos a festa no terceiro fim-de-semana a seguir à Páscoa.
Nem sempre foi assim, mas desde há alguns anos que a imagem da santa é levada
na véspera à tarde para a Igreja Matriz onde fica até à noite. Regressa depois
à sua capela numa, procissão à luz das velas e na cadência do toque da Banda.
Já na capela, é feita uma oração com muitos fiéis a assistir no exterior, por
não caberem lá dentro. No domingo, depois da missa, faz-se também a procissão
acompanhada pela Banda.
A esta mártir pede-se proteção contra as
trovoadas:
Santa Bárbara, Bendita
Que no céu está escrita
Com raminhos de água benta,
Livrai-nos desta tormenta.
Espalhai-a lá para bem longe
Onde não haja eira nem beira,
Nem raminho de oliveira,
Nem raminho de figueira,
Nem mulheres com meninos,
Nem ovelhas com borreguinhos,
Nem pedrinhas de sal,
Nem nada a que faça mal.
Amém!
Desde há alguns anos que esta festa alia também
a vertente de diversão e convívio às manifestações religiosas. O concerto da
Banda e a atuação do Rancho são os momentos mais esperados pelos mais velhos.
Para os mais novos não falta a música para dançar até às tantas.
O Santo
António
Com capela na entrada da Vila, oposta à de São
Sebastião, tem a festa em Agosto. Para além da missa e da procissão pelas ruas
da Vila, também acompanhada pela Banda, fazia-se o leilão das ofertas doadas pelos fiéis. Protetor dos
animais domésticos, principalmente dos porcos, faziam-se-lhe promessas de chouriças,
morcelas e farinheiras se os livrasse das malinas que os atacavam com alguma
frequência. Se morriam, faltava o conduto do ano inteiro…
Por alturas do carnaval organizava-se o ramo: um homem (o Ti Calmão, no nosso
tempo) percorria as ruas da Vila com um pau muito comprido que tinha cravado
outros mais pequenos a toda a roda. As pessoas que tinham feito promessas
vinham à porta, ou mesmo da janela dependuravam as peças de enchido que tinham
prometido. O ramo era depois
leiloado e o produto da venda revertia a favor do Santo.
Para além de proteção para os animais, também
lhe eram feitas preces para proteção do olival:
Santo Antoninho
pequenino
Que anda plos olivais
A guardar as suas
azeitoninhas,
Que lhas comem os
pardais.
Cruz em monte, cruz em
fonte
Que nunca o diabo
encontre,
Nem de noite nem de dia
Nem às horas do
meio-dia.
Já os galos cantam,
Já os anjos se
alevantam
Já Jesus subiu à cruz
Para nos guardar pra
sempre.
Assim seja, Ámen Jesus.
O povo da Partida, do Casal da Serra e do
Mourelo também tem muita devoção neste santo. Faziam-lhe grandes festas durante
o mês de Agosto, mas, à semelhança do que se passa na Vila, também por lá as celebrações
têm vindo a perder o fervor e brilho de outros tempos.
O Santiago
Diz a lenda que depois de muito penar nas
Lameiras, ao fundo da Partida, o Santo lá conseguiu que lhe fizessem a
capelinha no cimo do Cabeço. É modesta, mas de lá abarca tudo à roda e pode ver
os irmãos, com os quais andaria desavindo. A festa fazem-lha os moradores da
Partida, do Violeiro, do Mourelo e Vale de Figueiras no primeiro de maio (na
Partida fazem-lhe outra em Agosto). E que festa! Nenhum dos povos, nomeado
rotativamente, quer ficar atrás do outro.
Com que vivacidade recorda a Ti São Pedro:
«Quando era pelo Santiago era uma alegria. Mesmo quem andava por lá, nunca
faltava. Era uma festa muito linda. Cada terra trazia o seu ranchinho com um
homem a tocar concertina, e as mulheres atrás, a cantar. Ia tudo a pé por esse
caminho afora. Quando lá chegávamos dávamos a volta à capela, sempre a cantar,
a ver quem ganhava. Os do Vale da Figueira ganhavam quase sempre porque vinham
os do Açor e ajudavam-nos no rancho. Depois da missa vínhamos para casa e
comia-se a carne e os doces que já tinham sido preparados de véspera ou de
manhã cedo. As famílias todas juntas, nem cabiam dentro de casa e vinha-se para
a rua a comer. Era muito lindo!»
Com algumas diferenças, sinais dos tempos, a
festa continua com o mesmo entusiasmo. Depois da missa e da procissão os homens
dão várias voltas ao recinto a tocar bombos, pífaros, concertinas e castanholas;
as mulheres, atrás, vão cantando e dançando. Um homem eleva a bandeira da terra
que organiza a festa (neste ano vê-se a do Mourelo). Sempre que passam em
frente da capela ajoelham todos, em recolhimento. A seguir, no adro, continuam
a tocar, ao despique, e as mulheres dançam à roda. Uma alegria que contagia
todos os que participam ou assistem.
Algumas famílias levam merenda, outras
continuam a comê-la em casa, quase sempre com amigos que vêm de longe ou de
outras terras ali à roda. Mais recentemente, já há que comer e beber com
fartura no recinto da festa e muita gente mantém-se junto à capela até mais
tarde. Aproveitam para cumprir uma tradição que diz que quem puser o chapéu do
santo passa o ano inteiro livre de dores de cabeça:
Santiago, lá no alto,
É um anjinho do céu,
Tira as dores de cabeça
A quem põe o seu
chapéu.
A Senhora da Orada
Por dentro há muito que a capela está a pedir
obras, mas por fora é uma beleza. É também a que está no lugar mais bonito das
redondezas. Será por isso que é visitado por muita gente ao longo de todo o
ano; alguns para rezar e pagar promessas, mas muitos apenas para usufruírem da
paz e beleza da paisagem e da frescura da água da fonte, com fama de milagrosa.
A festa é no quarto domingo de maio, mas houve
tempos em que ainda o dia lá vinha longe e já no ar andavam as cantigas:
Nossa Senhora da Orada,
Este ano lá hei de ir,
Não vos hei de levar
nada
Inda vos hei de pedir.
Nas vésperas era uma azáfama a fazer a merenda:
tudo do melhor que havia em casa, a contar com a família toda. No domingo de
manhã, um mar de gente, caminho acima; os cestos da merenda à cabeça das
mulheres ou às costas dos homens. Os filhos mais pequenos, pela mão ou ainda ao
colo.
Na missa campal, o sermão a contar a vida da menina escorraçada pelo pai ou a lembrar os que estavam longe, punha as mulheres em lágrimas. Depois era a procissão, toda a gente com velas que mal se conseguiam abarcar, para agradecer os favores recebidos ao longo do ano; quase sempre para pedir outros ficados por conceder.
O andor da Senhora, aos ombros dos rapazes mobilizados
para a guerra.
A seguir a merenda: uma fartura de tudo o que
era bom estendida no chão, em cima duma toalha; a família toda à roda.
Finalmente uma visita pelas tendas espalhadas ao longo do caminho ou um pezinho
de dança ao toque de realejo ou concertina.
À tardinha regressava toda a gente a casa, já
com saudades, mas ainda a cantar:
Nossa Senhora da Orada,
As costas vos vou
virando,
Minha boca se vai
rindo,
Os meus olhos vão
chorando.
Algumas destas festas e romarias mantêm a mesma
capacidade de chamar gente, quer seja levada pela fé ou apenas pela tradição,
mas uma grande parte tem vindo a perder a importância de outros tempos. As
razões são muitas, mas a principal será a perda de população em muitas terras,
que começou com a emigração de muitos homens, principalmente para França. As
mulheres que ficavam sozinhas com os filhos não tinham alegria para romarias;
muitas acabaram por partir também e as terras foram-se esvaziando de gente. Por
outro lado, a evolução da ciência e a melhoria da condição económica e social contribuiu
para eliminar muitas doenças e a situação de pobreza que atravessava as
gerações desde sempre. Deixou, por isso, de haver necessidade de recorrer
tantas vezes à ajuda dos santos protetores.
Mas a fé no poder divino e dos santos continua. Ainda há dias o Papa Francisco pedia a união dos povos numa oração pelo fim desta pandemia. Conhecendo nós um pouco do seu pensamento e do teor das suas mensagens, não me parece que se referisse apenas a que batêssemos no peito e disséssemos muitos Pai-nossos e Ave-Marias…
M.L. Ferreira