A . dos Santos
RIBEIRA DA MINHA TERRA
Ah! Ribeira de São Vicente,
Como te percorri o ventre,
Púbere,
Serrano,
Da nascente.
Era eu ainda uma criança!
Como te calcorreei as fráguas,
Da montanha escarpada,
Úbere,
De onde brotas todo o ano,
Na Senhora da Orada.
Era ainda a vida uma esperança!
Como sei dos sobressaltos,
Das tuas águas,
Que descem,
Por entre as rochas, ali,
No teu leito,
Beijando os salgueiros altos,
Que crescem,
Nas orlas da tua amurada,
Debruçados sobre ti,
A espreitar-te o peito.
Quando te ouço e vejo,
Bruxuleando,
reluzente,
Num saltitar de sonoridade,
A caminho do longínquo Tejo,
Como quem te contempla à distância,
À luz do sol poente,
De carmim,
Invejo-te a juventude e a idade,
Porque renasces incessantemente,
E és sempre nova.
Ao passo que, a mim,
Já se me foi a infância,
E a vida não se me renova.
Brinquei no teu seio,
Descalço, calça arregaçada,
Na intimidade da tua frescura,
P’lo meio dos feixes
De juncos,
Procurando em ti, de uma assentada,
Inexoravelmente,
Entre os espinhos das silvas, como facas,
A tua ternura,
E os teus peixes,
Ambos escondidos, secretamente,
No secretismo das tuas lapas.
Carregado de candura,
Despreocupada, imensa,
Andei, na minha meninice,
A apanhar-te as borboletas e as libelinhas,
Que ziguezagueavam, entre as tuas flores,
E verdura,
Asinhas,
Que vi, como se ainda agora as visse,
Em recortes de luz intensa,
De mil cores.
E também os gafanhotos, que punha, como isco,
No anzol de alfinete dobrado,
Atado na ponta da linha de coser branca,
Que, arisco,
Surripiava do açafate de costura de minha mãe.
Artimanha desusada,
(Que ninguém,
Com juízo, atamanca),
Procurando pescar-te o fruto prateado,
Nessa armadilha caseira, improvisada,
Ingeri-te o corpo e a alma,
Nas tuas correntes puras,
Bebendo-te, sôfrego,
Em dias de grande calma.
Feri nas arestas das tuas pedras duras,
A pele nua.
Por isso,
Parte da tua água, é também o meu sangue.
Sobre uma laje tua,
Cheia de limo e musgo, escorregadia,
Que a sombra de alguma figueira,
Às vezes já com um laivo outoniço,
Plantada na tua fímbria,
Protegia,
Me deitava, cansado de andar, exangue,
E adormecia.
Como vi e ouvi as bravas mulheres da Vila,
A vida cheia de fé,
A lavar a roupa nos açudes das tuas claras águas,
Que a areia térrea da tua profundeza filtrava,
A cantar, para sufocar as mágoas,
Ou para
embalar,
O seu menino dentro da trouxa,
Na relva, ali ao pé.
E estendê-la, a corar,
Na erva,
sempre verde, da tua margem,
Onde a água não chegava.
E ainda distingo, na memória,
As pequenas figuras,
Como quando de longe as avistava,
Na refração da luz,
Violeta de ametista,
A diluírem-se nas lonjuras,
Como num quadro, uma paisagem,
De um pintor impressionista.
Como me regalava, no verão,
Banhando-me na forte torrente,
Das tuas cachoeiras refrescantes,
Em completa comunhão,
Contigo!
Ricos instantes,
Que guardo num registo antigo,
Quase da idade,
Do meu coração.
Como eu te amo, Ribeira de S. Vicente!
Mas dessa afetividade,
Desse amor,
Apenas me dei conta recentemente.
Amava-te sem saber,
Como quem possui um objeto e não lhe dá valor.
Mas, agora, vou amar-te,
Incondicionalmente,
Até morrer.
E tu, atraindo outros universos,
De outras gerações,
De vicentinos,
Como um feitiço,
Inspirando outros versos,
Outras canções,
Prosseguirás bela, impassivelmente,
Decerto, marcando os seus destinos,
Como musa, já se vê, não como enguiço,
Até sempre, perenemente.
Amar-te,
Incondicionalmente,
Sim,
Até morrer.
Mas, eu morro,
E tu, Ribeira,
Ah! Tu continuarás a correr!