Deliciosa e desconcertante a história da
Celina, na introdução de “Olha a noiva se vai linda”! Fez-me lembrar esta que me
contaram há tempos, bem mais triste, mas parece que bastante comum naquele
tempo.
Quando os meus pais se casaram, não tinham onde cair
mortos e passaram muito para criar os filhos. Éramos oito, fora os que morreram.
Fui a última, mas nem por isso tive mais mimos, que naquele tempo a gente nem
sabia o que isso era.
Aos cinco anos já andava atrás das cabras e com molhos
de lenha à cabeça, e mal tive corpo para ir ao terço ou à azeitona, não ficava
um ano que fosse em casa. Eram três meses de calma, no verão, e outros três de
gelo, no inverno. Tempos ruins, os de antigamente!
À medida que os meus irmãos se casavam, iam saindo de
casa, e fui eu que fiquei a tomar conta dos meus pais, cada vez mais velhos e
doentes.
Nunca tive um namorado, que o meu pai, mal eles
começavam a rondar a porta, empontava-os logo. Houve um que ainda lhe foi pedir
ordem para falar p’ra mim. Era um bonito rapaz, mais ou menos da minha idade, e
eu até nem desgostava dele, mas também não tinha onde cair morto e o meu pai
dizia que para pobre bondávamos nós.
Um dia, estava a chegar da missa, que nesse tempo
ainda tínhamos que vir à Vila, vejo uma burra presa à argola da porta da nossa
casa. Mal ponho o pé na soleira, ouço um homem a dizer:
- Falem cá com a rapariga que eu torno cá p’rá semana
pra levar a cédula, a ver se damos andamento aos papéis. Quero recebê-la quanto
antes. E vossemecê, se for até à Vila, passe lá pela taberna, que este ano
tenho lá uma pinga da boa.
- Ande vá descansado que eu me encarrego cá do
assunto.
Vi logo quem era o homem e pressenti ao que vinha, mas
nem queria crer que estavam a arranjar-me o casamento; ainda por cima com um
velho, já viúvo. Saí porta fora e pus-me à espreita a uma esquina, e só tornei a
casa quando vi o homem a abalar, em cima da burra. Fiz-me de nova, como se nada
fosse, e tratei logo de esconder a cédula no fundo duma arca, na loja.
Passado um bocado, o meu pai chega-se ao pé de mim e começa-me
para lá com um palavreado, a dizer que estava na altura de arranjar um amparo e
que tinha lá ido a falar com ele um homem que queria casar comigo.
- Mas quem é que lhe disse a vossemecê que me quero
casar? Estou muito bem como estou, não preciso d’ homem nenhum!
- Mas tu não vês que com a idade que tens, daqui
amanhã já não há quem te pegue e ficas pr’aí feita uma desgraçada?
- E olhe que eu bem ralada!
- O homem é de boa gente e já não é nenhum garoto. E
ainda p’ra mais até já tem casa posta e uma barroca que dá renovo com fartura
p’ra todo o ano. O que é que tu queres mais?
- Já lhe disse que não quero saber disso p’ra nada!
Ainda por cima, um velho, e já viúvo. Era o que a mim me havia de faltar! Tirem
daí o sentido, que nem morta ele me leva!
- Ai leva, leva, que já lhe dei a minha palavra!
E a minha mãe a ajudar:
- Não sejas torta, Maria, e recebe lá o homem. Olha
que uma mulher arrumada é outra coisa; toda a gente a respeita. E depois não
hás de passar necessidades como as que eu passei com o teu pai, que ainda tive
que ir muita vez a pedir às portas para vos dar de comer.
Mas eu continuei sempre a ateimar que não me casava.
Não sei como é que deram com a cédula, mas a verdade é
que daí a pouco tempo já corriam os banhos na igreja e o casamento tinha data
marcada.
Foram ao Fundão, compraram um corte de pano e
mandaram-me fazer um fato de saia e casaco, numa costureira da Vila. Uns dias
antes mataram umas galinhas e fizeram arroz doce e uns pães leves. E eu sempre
a ateimar que era escusado andarem naquele afogadilho todo, que eu não me
casava, nem com aquele, nem com outro qualquer.
Na véspera, ainda vim a correr à Vila a falar com uma
irmã minha que já cá estava casada, a dizer-lhe que não fizessem o comer,
porque eu não aparecia na igreja. Ela só me disse assim:
- Ó Maria, tens de casar com o homem. Olha a vergonha
para os nossos pais... Da maneira que eles andam, ainda lhes dá alguma. E ele é
boa pessoa; trabalhador, não é nenhum borrachão como o meu é e ainda p’ra mais
tem alguma coisa de seu.
Eu chorava que nem uma Madalena.
No dia do casamento levantei-me, ainda era noite e abalei
para a horta a regar. Já o Sol ia alto, quando tornei a casa. Fiz uma trouxa
com o fato, meti-a debaixo do braço e pus-me a caminho da Vila. Vinha eu e mais
alguns parentes mais chegados; tão triste que mais parecia que vinha para um
enterro.
Quando cheguei ao ribeiro, despi a roupa que trazia,
lavei-me e vesti o fato do casamento. Os sapatos eram de pano e tinham-me sido dados
por uma tia que fazia limpezas num teatro em Lisboa. Emprestaram-me um véu de
renda que pus na cabeça. Era preto, mas mais preta era a tristeza que tinha
dentro de mim.
E foi assim que eu me casei…
- E depois, deram-se bem?
- Quer que lhe diga? Quem tem filhos tem cadilhos, diz
o povo e é verdade; mas mais cadilhos tem, quem casa descontra vontade.
M.
L. Ferreira