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domingo, 3 de janeiro de 2016

Casamento à moda antiga

Deliciosa e desconcertante a história da Celina, na introdução de “Olha a noiva se vai linda”! Fez-me lembrar esta que me contaram há tempos, bem mais triste, mas parece que bastante comum naquele tempo.

Quando os meus pais se casaram, não tinham onde cair mortos e passaram muito para criar os filhos. Éramos oito, fora os que morreram. Fui a última, mas nem por isso tive mais mimos, que naquele tempo a gente nem sabia o que isso era.
Aos cinco anos já andava atrás das cabras e com molhos de lenha à cabeça, e mal tive corpo para ir ao terço ou à azeitona, não ficava um ano que fosse em casa. Eram três meses de calma, no verão, e outros três de gelo, no inverno. Tempos ruins, os de antigamente!
À medida que os meus irmãos se casavam, iam saindo de casa, e fui eu que fiquei a tomar conta dos meus pais, cada vez mais velhos e doentes.   
Nunca tive um namorado, que o meu pai, mal eles começavam a rondar a porta, empontava-os logo. Houve um que ainda lhe foi pedir ordem para falar p’ra mim. Era um bonito rapaz, mais ou menos da minha idade, e eu até nem desgostava dele, mas também não tinha onde cair morto e o meu pai dizia que para pobre bondávamos nós.
Um dia, estava a chegar da missa, que nesse tempo ainda tínhamos que vir à Vila, vejo uma burra presa à argola da porta da nossa casa. Mal ponho o pé na soleira, ouço um homem a dizer:
- Falem cá com a rapariga que eu torno cá p’rá semana pra levar a cédula, a ver se damos andamento aos papéis. Quero recebê-la quanto antes. E vossemecê, se for até à Vila, passe lá pela taberna, que este ano tenho lá uma pinga da boa.
- Ande vá descansado que eu me encarrego cá do assunto.
Vi logo quem era o homem e pressenti ao que vinha, mas nem queria crer que estavam a arranjar-me o casamento; ainda por cima com um velho, já viúvo. Saí porta fora e pus-me à espreita a uma esquina, e só tornei a casa quando vi o homem a abalar, em cima da burra. Fiz-me de nova, como se nada fosse, e tratei logo de esconder a cédula no fundo duma arca, na loja.
Passado um bocado, o meu pai chega-se ao pé de mim e começa-me para lá com um palavreado, a dizer que estava na altura de arranjar um amparo e que tinha lá ido a falar com ele um homem que queria casar comigo.
- Mas quem é que lhe disse a vossemecê que me quero casar? Estou muito bem como estou, não preciso d’ homem nenhum!
- Mas tu não vês que com a idade que tens, daqui amanhã já não há quem te pegue e ficas pr’aí feita uma desgraçada?
- E olhe que eu bem ralada!
- O homem é de boa gente e já não é nenhum garoto. E ainda p’ra mais até já tem casa posta e uma barroca que dá renovo com fartura p’ra todo o ano. O que é que tu queres mais?
- Já lhe disse que não quero saber disso p’ra nada! Ainda por cima, um velho, e já viúvo. Era o que a mim me havia de faltar! Tirem daí o sentido, que nem morta ele me leva!
- Ai leva, leva, que já lhe dei a minha palavra!
E a minha mãe a ajudar:
- Não sejas torta, Maria, e recebe lá o homem. Olha que uma mulher arrumada é outra coisa; toda a gente a respeita. E depois não hás de passar necessidades como as que eu passei com o teu pai, que ainda tive que ir muita vez a pedir às portas para vos dar de comer.
Mas eu continuei sempre a ateimar que não me casava.
Não sei como é que deram com a cédula, mas a verdade é que daí a pouco tempo já corriam os banhos na igreja e o casamento tinha data marcada.
Foram ao Fundão, compraram um corte de pano e mandaram-me fazer um fato de saia e casaco, numa costureira da Vila. Uns dias antes mataram umas galinhas e fizeram arroz doce e uns pães leves. E eu sempre a ateimar que era escusado andarem naquele afogadilho todo, que eu não me casava, nem com aquele, nem com outro qualquer.
Na véspera, ainda vim a correr à Vila a falar com uma irmã minha que já cá estava casada, a dizer-lhe que não fizessem o comer, porque eu não aparecia na igreja. Ela só me disse assim:
- Ó Maria, tens de casar com o homem. Olha a vergonha para os nossos pais... Da maneira que eles andam, ainda lhes dá alguma. E ele é boa pessoa; trabalhador, não é nenhum borrachão como o meu é e ainda p’ra mais tem alguma coisa de seu.
Eu chorava que nem uma Madalena.
No dia do casamento levantei-me, ainda era noite e abalei para a horta a regar. Já o Sol ia alto, quando tornei a casa. Fiz uma trouxa com o fato, meti-a debaixo do braço e pus-me a caminho da Vila. Vinha eu e mais alguns parentes mais chegados; tão triste que mais parecia que vinha para um enterro.
Quando cheguei ao ribeiro, despi a roupa que trazia, lavei-me e vesti o fato do casamento. Os sapatos eram de pano e tinham-me sido dados por uma tia que fazia limpezas num teatro em Lisboa. Emprestaram-me um véu de renda que pus na cabeça. Era preto, mas mais preta era a tristeza que tinha dentro de mim.
E foi assim que eu me casei…
- E depois, deram-se bem?
- Quer que lhe diga? Quem tem filhos tem cadilhos, diz o povo e é verdade; mas mais cadilhos tem, quem casa descontra vontade.

M. L. Ferreira

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Venho pedir à menina…

Os rapazes trabalhavam quase todos à jorna. Depois de largarem, confluíam para a fonte e ali ficavam, em roda, enxadas e sachos de lado, a comer as merendas. Só faltavam as raparigas, a razão daquele ajuntamento. Elas chegavam, com o cântaro debaixo do braço. Vinham à água para a ceia, a mando das mães.
À passagem de uma moça, atiravam-se as boas tardes ou uns piropos, a espreitar um brilhozinho no olhar ou um sorriso reprimido. Ela não parava, direita à bica da água. O interessado seguia-a, chamava-a, na esperança de um estugar dos passos, de um virar de cabeça, de umas palavras mais. Se a rapariga dava esperanças ou porque o rapaz era dos afoitos, ele atirava à moça:
“Por que venho, venho
E porque digo, digo
Venho dizer à menina
Se quer casar comigo”
A resposta adivinhava-se pela reação da pretendida, não por palavras, que não ficavam bem, ali, a uma moça com juízo. Isso seria mais tarde, noutro tempo e noutro local, se ela aceitasse passar aos rituais seguintes.
Em terra de filarmónica, também se faziam serenatas. Músico ou não, o pretendente podia rodear-se de amigos que soubessem tocar os instrumentos da banda ou outros. À noite, em frente à casa da sua amada, cantavam e tocavam, tentando derreter aquele coração empedernido.
Com muita lábia e passadas se chegava ao namoro, se os dois estivessem para aí virados. Primeiro na rua, para se conhecerem melhor e dar tempo à vizinhança e à família. Se o amor resistisse a este primeiro teste de controlo social, o rapaz pedia licença aos pais da namorada, para começar a namorar em casa dela. Mas sempre vigiada pelos irmãos mais novos ou pela mãe. E o namoro não se arrastava até tarde, para que a rapariga não ficasse falada.
Se o rapaz fosse de fora, pagava um cântaro de vinho, tremoços e sardinhas assadas, aos rapazes solteiros de São Vicente. Fazia-se uma patuscada e o forasteiro era aceite na comunidade.
Quem namora quer casar e por isso, rapaz e rapariga, cada um por seu lado, tratava de arranjar o que era costume cada um levar. Precisava-se, no mínimo, de um ano. O rapaz tinha de poupar dinheiro para comprar as mobílias do quarto (cama) e da sala (mesa e cadeiras). À rapariga, cabia a mobília da cozinha (cantareira, bancos, masseira, tabuleiro) e o enxoval (lençóis, fronhas, travesseiros, mantas, toalhas de rosto e de mesa), com a respectiva arca.
Numa casa de lavoura, a família plantava o linho, trabalhava-o até ser fio que a noiva tecia no tear da loja. As peças de pano de linho eram depois cortadas, cosidas e bordadas. As mantas faziam-se com fitas de panos velhos, também no tear.
Cerca de três meses antes do casamento, os pais do noivo iam a casa dos pais da noiva a pedir a mão da rapariga para o filho e a combinar a boda. Quantos convidados de cada parte, que cozinheira contratar, quantas reses e aves de capoeira seriam precisos e se comprados ou de produção própria. Tudo a meias. E o local da boda, em casa de um deles, se fosse grande, ou alugada.
Os convites faziam-se um mês antes do casamento e, na última semana, as duas famílias mobilizavam-se na feitura de bolos e doces: biscoitos, bolos de leite, esquecidos, cavacas e pães-de-ló. Eram para oferecer aos não convidados (vizinhos, amigos e pessoas ricas), agregando-os também à festa. O retorno esperado eram prendas para os noivos.
E chegava o dia do casamento. O noivo, acompanhado pelos convidados, dirigia-se à casa da noiva, onde era aguardado por ela e pelos seus convidados. Depois, em cortejo, seguiam para a Igreja, ele com a madrinha e ela com o padrinho.
O noivo vestia fato preto, camisa branca, gravata cinzenta, lenço branco no bolso do casaco e chapéu. A noiva trajava de fato de saia e casaco, preto ou de outra cor, ou vestido, que não tinha de ser branco, xaile e lenço na cabeça ou véu.
A cerimónia podia incluir missa ou não, conforme fosse dia de semana ou domingo. À saída da Igreja, saudavam-se os noivos com pétalas de flores.
Seguia-se a boda e as iguarias eram de estalo:
- Canja
- Carne assada e guisada
- Bifes com batatas fritas
- Arroz com carne
- Iscas de fígado
- Pastéis de carne
- Arroz-doce
- Vinho
- Chá
- Doces
Era o tirar a barriga de misérias, em tempos de muitas carências.
E começava uma nova vida, gerando outras, muitas vidas.


A foto é de um casamento na Meimoa (Penamacor), em 1933. Embora não pareça, a noiva tinha apenas 24 anos!

Em São Vicente da Beira, os jovens já se casavam por amor, na primeira metade do século XX. Os meus pais, António Teodoro e Maria da Luz (Prata), casaram há precisamente 60 anos, tal como Luís Rodrigues (Prata) e Tomázia da Conceição e ainda Joaquim Leitão e Emília Rosalina do Casal da Serra. O dia 30 de Dezembro calhou num sábado, em 1950. Só puderam casar depois do Natal, pois no Advento não se realizavam casamentos.
Esta crónica é uma homenagem aos pais e avós que viveram os rituais de amor aqui descritos.

Texto composto a partir da recolha de Maria Isabel dos Santos Teodoro, trabalho manuscrito, Escola Secundária de Alcains, 1985.