Não era amarelo, nem encarnado, nem azul. Era de todas as cores o meu mato-branco!
Da cor da fantasia de quando, nas brincadeiras, misturávamos ervas e terra molhada numa lata velha de sardinhas, cozinhávamos num lume de faz de conta, e levávamos à boca, mexendo os maxilares a fingir que comíamos como se fosse o melhor banquete.
Da cor da paciência nas esperas aos gafanhotos, às sardaniscas, aos grilos e formigas, que às vezes ficavam sem uma asa ou uma pata, só para não fugirem ou para ver como era.
Da cor do prazer da água fresca da presa, nas tardes quentes de verão, a espreitar os mais velhos que dormiam a sesta a uma sombra, caídos de cansaço, não fossem dar pela nossa falta.
Da cor do cheiro a pão quente e queijo fresco feitos pela minha avó; ou do gosto do leite morno acabado de ordenhar.
Da cor do doce amargo das cerejas, dos figos e dos gachos, ainda mal amadurecidos, comidos às escondidas na pressa da novidade, e às vezes nos davam dor de barriga a denunciar o pecado.
Da cor do orgulho de saber um ninho e de o poder ensinar. Espreitar os passarinhos, cada vez mais vestidinhos, até poderem voar. O ninho ficava triste e eu também, mas apostava que eram eles, quando olhava para céu e os via lá em cima a brincar.
Da cor da satisfação, todos sentados debaixo da nogueira, com o prato no colo, a comer batatas migadas com tomates apanhados na horta, ali mesmo ao pé. E havia sempre de sobra para alguém que aparecesse com fome.
Da cor de me sentir grande quando o meu avô me deixava no fundo da caneca um bocadinho da gemada que a minha avó lhe fazia todas as manhãs. Ou quando me deitava uma gota de aguardente no café, como fazia no dele.
Da cor da aflição, quando fui a correr chamar pela minha tia, que uma ovelha estava a morrer, com as tripas de fora; daí a pouco a surpresa de um borreguinho já a querer ter-se nas pernas, ao lado da mãe, e ela a lambê-lo.
Da cor da desilusão, quando passei horas a olhar para o céu à espera de ver passar a cegonha que, tinham-me dito, trazia no bico mais um menino para a minha mãe; devo ter-me distraído, que não a vi. A verdade é que à noite, quando me levaram para casa, estava tudo diferente, sem a minha mãe na cozinha, só o meu pai a dizer-me: «Vai dar um beijo ao teu irmão que já chegou». Estava na cama, ao lado da minha mãe, no lugar onde eu gostava de me deitar ainda.
Da cor do medo, quando acordávamos à noite e tínhamos que ir fazer chichi ao relento, sempre a imaginar sombras de lobos esfomeados, prontos a engolirem-nos, como nas histórias dos mais velhos. Ou do medo dos ciganos que vinham perguntar se ali não queriam um burro, que tinham lá um, quase dado; mas a gente ouvia dizer que o que eles queriam era roubar-nos.
Da cor dos gritos da mulher que encontrou o filho a boiar dentro do tanque, e a cachopada toda a correr, caminho acima, para ver o anjinho. Era ainda tão pequeno que quatro crianças bastaram para pegar no caixão pintado de branco.
Da cor do arrependimento, quando, aos domingos à tarde, a minha tia mais nova, mal saída da infância e já pastora, me pedia que fosse com ela deitar as ovelhas; mas as brincadeiras na Praça eram teimosas e nem a promessa de um vestido novo para a boneca de trapos me convencia. Há dias em que ainda a oiço, ao longe: «Sua peguença!».
Da cor do desânimo dos meus avós quando receberam a carta a dizer que o Mato-branco tinha sido vendido, por modos a um homem rico. Só lhes deram tempo de ceifar o pão, tirar as batatas, apanhar o feijão e colher o milho e a fruta mais serôdia. Que aquela terra, boa parte feita à picareta pelas mãos deles e dos filhos, dava de tudo com fartura.
Passados muitos anos voltei ao meu mato-branco na esperança de encontrar algumas das cores que lá tinha deixado, mas não achei nenhuma igual. Tinham-se esbatido com o tempo…
M. L. Ferreira