Rosto sereno, emoldurado por veneráveis cabelos brancos, a tia Maria ficara ainda a dormir. Bernardo Garrancho, o seu homem, levantou-se, como de costume, de madrugada, ainda escuro. Não acendeu a candeia de azeite para não a acordar.
O apelido
'Garrancho', nunca é demais recordar, era, na verdade, uma alcunha. Vinha-lhe
de ter o indicador direito, torto, resultado da cura deficiente de um golpe com
a tesoura de podar.
Mal pôs o pé
no chão de madeira, Garrancho sentira o ar frio a cortar. Tinha vestida uma
camisola interior, branca, grossa, e umas ceroulas felpudas de algodão da mesma
cor, com que costumava dormir. Calçou as meias grossas e as alpercatas. Para se agasalhar, vestiu por
cima dos bragais um casacão de lã, com gola de peliça, que se encontrava
pendurado atrás da porta do quarto. Pôs uma boina com protetores de orelhas, a
apertar por baixo do queixo.
Saíu, a
tatear na escuridão, porque conhecia bem o espaço, passou, com pés de gato, na
sala da Casa Velha, onde havia, encostados à parede, três grandes arcazes com o
rico grão do trigo, milho e centeio. Abriu a porta da varanda. Apanhou com uma
baforada de ar gelado! Puxou melhor o casaco para o pescoço e foi encostar-se à
grade robusta de madeira, a ver o tempo! Nesta altura do ano começava a pensar
nas sementeiras e, conforme as aparências da meteorologia, assim tinha que
decidir os afazers do dia de trabalho.
A varanda
deitava para o Casarão, a céu aberto, que uma parede grossa de pedra e um
portão, separavam da rua. O chão encontrava-se
atapetado de uma camada de giestas, carqueja e urze, traçadas, que, por
ação dos microrganismos, se transformava lentamente em estrume para fertilizar
a terra.
Ao fundo,
coberta pela plataforma da varanda e pelo sobrado da Casa Velha, mas com
suficiente luz, havia a grande loja e o curral, sempre lastrados a mato novo,
cortado a podão, com uma boa mão cheia de palha velha nas camas dos animais.
Onde habitavam, de um lado, a burra, a Preta, grande, forçuda, mansa, garbosa,
de inteligência e porte quase equinos! E do outro, o bácoro, o corricho, nome
este por que eram, afinal, chamados todos os porcos da vila. Mas ao qual não
pagava a pena pôr nome próprio, porque nunca passava do mês de fevereiro. Ao
contrário do 'Carrafuço', o porco da tia Pulquéria do Casal da Fraga, que ela
tinha dó de matar e cujos caninos, por causa da velhice, lhe saíam já da boca
para fora!
Em casa de
Garrancho, não! Todos os anos, porco
morto, todos os anos posto! Às vezes até criava dois, um na vila, outro
na serra! Mas o destino de ambos era o mesmo: a salgadeira!
Do vigoroso
tabuado, a toda a largura da varanda, Garrancho olhou o firmamento, despido de
névoas. Límpido e de um negro intenso!
"Que
escuridão! E que silêncio vai nesta casa!", disse para si.
Era pelos
meados do mês, nas entranças da primavera! O que supunha e requeria alvoradas
mais claras. Mas, porque era lua nova, aquela manhã era breu. E com o céu sem
nuvens, naquela época do ano, havia sempre mais frio. O intrépido e velho
aldeão era bem conhecedor das travessuras que o tempo, ou o diabo por ele, com
as suas bizarrias, pregava aos homens! Uma sabedoria à custa de levar em cima
com muitos sóis, muitas luas, pedrisco, barrufos, gravanadas, nevões e
ventanias; e de roer muita branquinha com códão de dente de cavalo, que alto lá
com ele! Com os pés a apanhar frieiras e a doerem-lhe dentro das botas por mor
daquele rigor invernal! O que lhe valia era o surrobeco e as bouchas que
acendia!
Pôs-se a
olhar mais fixamente. Mirou, tornou a mirar!
Do que vinha
nos livros dos netos, sobre os astros é que não percebia nada! Nunca se sentara
nos bancos duma escola com quadro, carteiras, meninos e professor!
Vai lá, vai!
Esses bancos tinham sido as piçarras graníticas na serra da Gardunha. Desce
criança que lhes subia para cima e sentava-se a ver a planície lá em baixo!
Deitava-se, depois, de barriga para cima, no topo das colossais pedras a olhar
o sol; ou a descortinar, de certo ângulo, nos monólitos ali à volta, aparentes
figuras de pessoas ou animas, talhadas pela erosão dos séculos!
De lá,
vigiava as cabras que andavam em baixo, espalhadas pela encosta, a tosar as
medranças do mato; assobiava-lhes e, se fosse preciso, ralhava-lhes:
"Raios
parta as cabras, que não veem o marco! Olha que ele é bem grande! Ah!
velhacas...! Vá lá ver!"
À voz
corretiva dele, os animais sustinham o avanço à entrada da mancha de pinheiros,
que elas bem conheciam, onde os terrenos confinavam. Conheciam, mas nem por
isso deixavam de prevaricar.
"No
fundo - dizia Garrancho para os seus botões - as cabras pouco diferem dos
homens, por mais que estes tenham a prosápia da superioridade racional; ambos
são tontos e abusam, se alguém lhes dá confiança! Mas antes me quero com cabras
que com certos homens!"
Se Bernardo
Garrancho não sabia uma letra do tamanho da torre da praça, vá lá, que, de
pequeno, sempre lhe tinham ensinado o sete-estrelo, minúsculo, longínquo, com
os seus asteriscos esbatidos; a estrela da manhã e a estrela da tarde que, pelo
seu brilho, ao amanhecer e ao entardecer, saltavam logo à vista no céu! Se
estas estrelas não eram, afinal, estrelas, mas os planetas Vénus ou Mercúrio,
isso seriam avé-marias de outro rosário!
Era o que
lhe zurziam os netos, que já frequentavam a escola e liam o Almanaque de S.
Miguel.
Os tempos
eram outros! Os cachopos, praticamente acabados de desmamar, em vez de se
iniciarem nas tarefas de guardar o gado, regar a horta ou ir à lenha para o
lume, começavam mas era a compreender as coisas do mundo naqueles papéis com
letras e números! E davam cabo da
paciência ao avô com as suas cabecinhas
ariscas de flosa.
"Ora o
raio da cachopada, hã! Dizerem aquelas coisas dos livros! Ainda há dias
nasceram...! E põem-se a falar como gente grande!", congeminava.
Mas naquela
madrugada não havia trapaças do tempo! Estava tudo lavado! Nada de cirros ou
cúmulos. Pela lua nova a face do satélite, voltada para a Terra, não recebia
nenhuma luz solar, acentuando-se o negrume da noite!
Deixá-lo!
Sabia lá ele nada das fases da lua! Do que tinha a certeza, era que, naquelas
alturas, as noites apareciam de um negro retinto e não se vislumbrava o mínimo
da luminosidade leitosa da lua. Dizia-o Garrancho, sem saber a causa do
fenómeno e confirmava-o a ciência pela boca dos netos. Os livros e a
experiência da vida, afinal, complementavam-se.
Era, porém,
nessa cerração intensa que melhor se lia e perscrutava a imensidão do cosmos;
que se estendia a seus olhos como uma infinita cápsula negra, fina,
lantejoilada, a relampejar brilhos furtivos de luz; que parecia não se
coadunarem com a quietude do mundo, que só começava àquela hora a ser quebrada
pelo ladrar de um cão ou pelo cantar de um galo! Perlas a fulgir, espalhadas
num manto de veludo escuro, estendido no espaço, que o clarão da aurora
nascente não pudera ainda esbater aos olhos do observador! Embora não os
compreendesse e muito menos soubesse os seus nomes, assombrava-se com o
trapézio de Orion e as suas três-marias, como velas a alumiar o altar da
Virgem; impressionava-se com a Cassiopeia numa admirável linha quebrada de
ângulos obtusos; deslumbrava-se com a Ursa Maior e com a Ursa Menor e punha-se
à cata da Estrela Polar no céu!
Causava-lhe
surpresa o sentido com que se compunham as constelações e se organizavam as
figuras. Não sabia o porquê de tudo aquilo! Punha-se, por vezes, a pensar se ao
menos lhe era lícito imaginar que podia, simplesmente, não existir coisa
nenhuma! Porém, encarava logo ali com aquilo tudo à sua frente. Imanência ou
transcendência?!
O certo é
que se sentia pequeno! Parecia que alguém tinha assim arrumado os dados do
universo. Uma certa ordem, sussurrava-lhe que estava alguém atrás daquela obra.
Impunha-lho, categoricamente, à consciência, o esmagamento de tal
grandiosidade! Um homem sem letras, pensava ele, pese embora de grande coração,
não tinha capacidade para compreender tais mistérios. Não obstante, os sábios,
com todos os seus conhecimentos, andavam tão inquietados como ele, por causa
destas coisas que, por serem tão incompreensíveis, a maioria das pessoas
preferia nem pensar nelas.
"Homessa!
Que estou eu para aqui a cogitar? É melhor tornar as coisas mais simples! Quero
lá saber do universo! O que me interessa é o que vou comer ao almoço! E, para
hoje há, para amanhã Deus dará! É quanto basta! Quando morrer vou deitado e
para onde os outros forem, devo ir eu também!"
Tentava
assim desenvencilhar-se e sair por cima do emaranhado dos seus pensamentos. Ao
cabo, não sabia bem o que sentir, se desassossego, se esperança. Porém, tinha
uma certeza: quando pensava na morte, acalentava uma enorme ânsia de continuar
a viver, de se projetar no futuro. E isso voltou a fazê-lo deter-se.
"Quando
a terra me comer, há de ser o fim de tudo?"
Não podia
obter uma explicação, pelo menos, evidente! Só podia fazer a abservação muda do
mundo. E podia entrever, com clareza, que aquela ânsia de viver que sentia, era
a sua fé!
O avanço da
manhã, fê-lo, de repente, regressar à realidade da vida quotidiana e
desprender-se daquele encantamento. Não podia continuar mais tempo a contemplar
o céu estrelado! A alvorada vinha aí, mostrava-se, fazia bater o dente àquela
hora, mas estava limpo, adivinhando-se bom tempo com o avançar do dia! Lá dizia
o ditado: "Março, marçagão, manhã de inverno, tarde de verão!"
Compôs
novamente a gola de peliça e subiu à cozinha. A mulher, entrementes,
levantara-se entanguida. Já se encontrava à volta da lareira a aquecer-se e
começara os afazeres domésticos. Por causa da obscuridade, ainda acendera a
candeia de azeite. Na cozinha, de telhado singelo, a telha de vidro, queria
principiar a luzir a modos que a medo! Com o sol, durante o dia, formavam-se
óculos de luz através das irregularidades das telhas, a bater no sobrado, onde
se via claramente o fumo da lareira que, em certas ocasiões, os netos, a
brincar, tentavam, em vão, agarrar! A cozinha era pouco térmica. Tinha-se
esfumado, de todo, o calor do brasido da noite anterior. A tia Maria acendia o
lume na grande pedra do lar, sem chaminé. Acima do lume, a telha mourisca, sem
forro, por onde saía o fumo, que enegrecera as paredes de pedra nua. E depois o
céu infinito!
Colocou, como de costume, a pichorra
grande da água para fazer o café, encostada às brasas. A panela grande de
ferro, essa, estava sempre ao lume, a aquecer água. Tirava-se a que fosse
precisa e compensava-se com fria para amornar. E assim, havia sempre água para
as necessidades diárias imediatas.
O fumo e o
calor pilavam as castanhas num caniço, por cima, mas chegado ao lado da
lareira, próximo do teto, preso aos caibros por quatro fortes ganchos de ferro.
O caldudo de castanhas fora a base da alimentação em épocas de míngua. Agora,
eram já poucas. A maioria dos castanheiros fora substituída por oliveiras, que
davam o apreciado fio dourado do azeite! As chouriças e morcelas, dispostas ao
longo das varas, ao lado das castanhas, iam sendo lentamente curadas.
Bernardo Garrancho tirou dois latões de
água a ferver para um jarro esmaltado. Desceu para uma pequena divisória com
postigo, ao lado da porta da varanda, deitou a água na bacia metálica do
lavatório, onde havia também um espelho e toalhas. Temperou-a com água fria do
cântaro que estava sempre ao lado do lavatório. Tirou o casacão de peliça.
Lavou a cara e limpou-se. Despiu a roupa de dormir, branca, que a mulher lavava
amiudadamente na pedra do tanque de água da serra e punha a corar, na relva do
rego da levada. Às vezes, também lavava algumas peças pequenas, cá em baixo, no
caminho onde passava todos os dias, no Ribeiro do Marzelo. Um ribeiro que, à
época, levava imensa água, graças ao regime pluvioso de chuvas abundantes! E
onde ela também tinha o seu lavadouro de pedra!
Era segunda-feira, início da semana de trabalho. Garrancho
envergou uma camisola interior lavada e uma camisa forte para o trabalho, em
flanela. Ensebou as botas de cabedal com sola de pneu, para amaciar e proteger
o material.
Botar as botas nos
pés e calçar as calças era o que íamos escrever. Mas para obedecer às regras do
idioma, temos que dizer que calçou as botas e vestiu as calças de ganga,
lavadas, que trazia a cote. Por cima da camisa pôs um colete de surrobeco amarelo
de lã semi-grosseira que a tia Maria lhe comprara no mercado, para os domingos
comuns, mas que ele já deixara de levar à missa. Pelas costas, pôs um casaco
compridote, um género de capote, mas mais curto, do mesmo tecido, um pouco
coçado, mas ainda bom para trazer no dia a dia.
O neto,
Salvador, também se levantara. Estava a fazer as suas higienes da manhã no
lavatório de ferro, amovível, a um canto do quarto, com a porta aberta e luz
vinda da varanda. Penteou-se para trás e pensou que tinha cabelo à Ivanhoe. Por
isso, fez uma pose fotográfica, a ensaiar para as festas de verão. Era quando
um homem vinha a tirar retratos à praça. Mas setembro ainda lá vinha longe! Ao
espelho, julgando-se bem parecido, encheu-se de nove horas! De repente,
ouviu-se:
"Salvador,
ó Salvador!" Quando é que te despachas? Anda lá, filho!", gritou lá
de cima a avó Maria a quem parecia demasiado longa a demora do neto! "Esta
mocidade, quando é para trabalhar, nunca têm pressa! Se fosse para ir para a
praça passear, ia logo a correr!", desabafou.
"Vou
já, minha avó!", respondeu o neto.
"Deixa-o
andar!", disse, ironicamente, o marido
para a mulher. "Algum dia há de aprender! Quando for para a tropa,
se não se apresenta a tempo e horas na parada, começa a levar umas cachaçadas e
depois diz que o diabo que o tenta!"
Finalmente,
o rapaz vestiu-se para o trabalho, um pouco atabalhoadamente. Como de costume,
tinha que ir para a serra, para os necessários afazeres da jornada. O normal
era ir guardar o rebanho das cabras. Já tinha saído da escola e ajudava em
muitas tarefas. Mais ligeiro, trepou à cozinha e sentou-se num banco demasiado
baixo, que já lhe causava desconforto para as pernas um pouco longas. Estava
espigadote. E principiou o almoço que a avó já tinha posto na mesa da cozinha.
Garrancho
sentou-se, como habitualmente, ao lume, no velho tronco de sobreiro que lhe
servia de assento, onde a tia Maria lhe faria chegar a malga cheia e o pão com
o conduto.
O almoço era
café, no qual misturavam leite de cabra, ordenhado no dia anterior à noite, na
serra, e já fervido. Não tinha tempo de se cortar. Era o cortas! Onde se ia
cortar, com toda a certeza, era no estômago com os sucos gástricos! O pão era
de centeio ou broa e, por vezes, de trigo, com margarina comprada na loja e queijo,
chouriço ou azeitonas da casa. Mas a dejejua podia ser só leite com sopas de
broa migadas e, para quem gostasse, um pouco de mel ou açúcar amarelo.
Muitas
vezes, porém, optavam por uma refeição mais substancial: batatas fritas com
ovos estrelados, feijão pequeno com morcela assada e cebola crua; ou mesmo,
sopa forte de feijão grande encarnado e pão. Desta forma resistiriam melhor às
canseiras desgastantes das fainas agrícolas!
Comido o
almoço, ala que se faz tarde. Fazia frio, mas Garrancho não era homem de
receios quanto ao tempo. Já se disse que o conhecia bem. Atravessara invernias
geladas e estios abrasadores! Estava calejado! Já não era como na época de
rapaz casadoiro!
"Setenta,
sempre são setenta!", confessava ele aos amigos, quando o desafiavam
diante de mais meio quartilho, nas sociedades da taberna.
"Atreves-te, Bernardo"?, mangavam na
roda!
Fazia-se
forte.
"Se me
atrevo? Ó rapazes, não me dasifieis, que vós não me conheceis bem!"
Bebia sem
descansar.
Mas a idade
tudo trazia e não era coisa boa! Um homem não tinha preço ou medida na sua
dignidade. Mas nas questões da idade principiava a ter o seu limite. E naquela
manhã sem nuvens, o ar golpeava como vidro! Em março, a maioria dos anos, ainda
se davam as tais geadas brancas e, pior que as brancas, as negras, a estalar
por baixo das botas; e ainda nevava abundantemente, não só na vizinha Estrela,
quiçá, também na Gardunha!
Por isso, as
constipações fortes de congestionar, pôr os olhos a prantear e o nariz a
correr, eram comuns! A ponto de molhar quase todos os lenços do açafate. Mais
sabão azul e mais trabalho para a tia Maria! O que era certo é que nunca tinham
tomado um comprimido, apesar das mazelas
próprias do tempo.
"Humm...
Temos sempre muito que fazer. Adoecer é um luxo para a gente das cidades que
não faz nada!", concordava o casal de velhos.
Os vizinhos
admiravam-se mesmo como é que eles concordavam sempre em tudo! Eram muitos anos
a virar frango, que é como quem diz, a lavrar, a semear, a guardar o gado, a
bater o fado na serra, ao pé um do outro!
Cepa como a
deles é que já não havia! O estetoscópio ou lá como aquilo se chamava, só era
conhecido no hospital da Misericórdia da vila! A farmácia ficava cara! Afinal,
tudo batia certo e era conveniente!
Ele curava o
pingo com copos de uma aguardamente muito boa, feita das borras do seu vinho,
que destilava no alambique da praça. Uma bagaceira que fazia subir, e muito, a
escala do alcoolímetro!
"Para
manhã fria, aguardente quente!", dizia o amigo Tonho Racha que gostava
muito dela; e Garrancho concordava.
Assim o
diziam, assim o faziam. Garrancho aquecia-a, singela ou com açúcar ou mel. Ao
lado do terreiro da entrada da Casa da Serra, estava um muro de pedra e por
cima dele, uma fileira de cortiços de abelhas rodeados de alecrim. E rosmano e
flores era por todo o lado! Davam mel para os gastos e sobrava.
Havia as
constipações mais agarradas, sempre com a garanta a pigarrear. Às vezes, era só
uma. Começava em novembro e ia até fevereiro.
A terapia, para além da aguardente, compunha-se de chás, lume e, à
noite, cama e cobertores, tudo bem agasalhado. Para a tia Maria a receita era a
mesma! Mas, em vez de copos cheios, tomava pequeninas chiscas:
"Ó
Bernardo, faz favor, chega-me aí um bocadinho de aguardente quente com mel! Mas
muito poucochinho, se não posso ficar tonta!", ria-se.
Qual
hospital da Misericórdia?! Nem as portas lhe conheciam! E quanto ao dr. Alves,
médico muito competente, só o costumavam ver ao domingo no camarim da igreja,
na missa do dia.
Os bons
genes de Garrancho e Maria, aliados àqueles tratamentos caseiros,
permitiam-lhes resistir às sezões. O corpo exsudava, desembaraçava-se de uns
vírus e adaptava-se a outros. Costumava ser assim, especialmente na mudança do
verão para o inverno! Uma semana ou, no máximo, duas, depois do tempo
arrefecer, tudo voltava ao normal! Quem os queria ver rijos e saudáveis, era ir
espreitar à fazenda, onde ele assobiava que nem um melro, atrás da burra, a
lavrar. Quando chovia, a terra estava tão macia que a charrua a rasgava com
facilidade. Podiam então ouvi-lo dizer
"Ó
Maria, ela está que parece galinha!"
A esta
habitual observação, a mulher já sabia o que responder:
"Pois
está! Mas não queiras tu fazer dela canja!"
Riam-se.
Enquanto a
sementeira avançava, ela seguia-o fielmente, acompanhando a lavoura com o sacho
junto ao tronco das árvores, onde a charrua não podia passar. E punha-se a
cantarolar, como vinha fazendo desde o primeiro rego da lavrada, tão jovialmente
como uma grafonola nova!
Naquela
manhã, avós e neto, desceram da cozinha à Casa Velha a falar daquele dia de
trabalho. O que era preciso fazer e o que não era. A burra, assim que ouviu a
voz do dono, cantou, a lembrar que, antes de sair para o trabalho, queria,
entrementes, mais uma gavela de caneirões. Tão certo, como exato era o
Cortébert, o relógio de bolso de corda de Garrancho, assim era pontual o zurrar
da Preta!
O porco, ao
ouvir bater os caldeiros da vianda, logo pela manhã, entrava numa chiadeira
infernal, à espera que a dona lhe trouxesse o almoço. Não era necessário
deslocar-se à furda. Deitava-lho diretamente para uma grande pia de pedra, lá
em baixo, através do alçapão de tampa removível, aberto no sobrado da grande
varanda.
Os dois
homens desceram ao Casarão por uma escada de madeira móvel, enquanto a tia
Maria deu a volta pela Casa Nova.
Trouxeram a
burra, a Preta, para a rua e aparelharam-na.
"Tome
lá! Aceite aí a cillha desse lado", disse Salvador para o avô. "Vai…!"
"Isto
está fixe! Podes ir andando para a serra", disse para o neto. "Põe-te
a andar! Vai à frente a deitar as cabras."
"Não
quer que o ajude a carregar a burra?"
"Não!
Agora é cá comigo. Vou pôr as cangalhas, encher dois cestos de estrume e levo
no meio uma taleiga de milho para as galinhas. Deito a sobrecarga e aperto o
arrocho, se for preciso. Anda, vai lá! Depois, eu e a tua avó seguimos atrás de
ti."
E o neto
foi.
Os primeiros
raios da aurora, já com boa claridade, foram apanhá-lo no Alto do Caldeira.
Olhou para trás e viu os avós lá em baixo, no vale, a caminhar com o seu vagar
atrás da burra. O dia começava a nascer para mais um dia de trabalho!
JOSÉ BARROSO