Embora
a manhã estivesse fresca, o caminho sempre a subir secara-lhe a garganta e foi
molhá-la à fonte da Orada. Junto da capela tirou o chapéu, benzeu-se e rezou
uma Ave Maria a Nossa Senhora.
Voltou
ao caminho, agora cada vez mais inclinado. Subiu nas calmas, sempre no mesmo
passo, pois ainda havia muito caminho para andar. O sol já brilhava, mas o
tempo andava incerto. “Em abril, águas mil”, lá dizia o ditado e era capaz de
se trabalhar, pois do outro lado da serra assomavam nuvens negras. Chegou ao
Alto da Portela e lançou um olhar pela paisagem: montanhas e vales escurecidos
pelas nuvens. Mas para a frente é que era o caminho. Desse no que desse, não
seria a primeira nem a última molha. Seguiu nas endireituras do Cavalinho, um
cume mesmo por cima do Fundão.
Comeu
uma bucha de pão seco que trouxera de casa e o tempo passou depressa, entretido
a pensar na vida e a admirar a paisagem florida de giestas e carquejas. Antes
do meio-dia, estava no mercado. Feirou o que tinha a feirar e ainda comprou um
podão, porque o achou a bom preço e o que tinha em casa já estava bem reles
para cortar a lenha e o mato.
Encontrou
os primos de Alcongosta e deram dois dedos de conversa. Já à saída do mercado, cruzou-se com um amigo do Castelejo, antigo companheiro do tempo em que andara
nos caminhos de ferro. Foram à taberna beber um copo. Depois outro, com
tremoços a acompanhar. A sala era um buraco escuro, com homens de pé,
encostados ao balcão, ou sentados nos bancos corridos, encostados à parede.
Havia outra sala mais iluminada, com mesas e cadeiras, mas não era para ele, o
vinho e os tremoços já chegavam para entreter o estômago.
Despediu-se
do companheiro e partiu com a saca das compras ao ombro. Olhou para o céu e
percebeu que apanhar uma molha era tão certo como chamar-se Joaquim. Subiu caminho
e mais caminho. Frente ao Cavalinho virou à direita para a Portela. Era ainda
cedo, mas escurecia como se estivesse a anoitecer. Dos altos da serra desceu um
nevoeiro cerrado e quando o apanhou começou a chover. Compôs o casaco e o
chapéu e continuou. Via-se cada vez
menos, pouco mais que dez passos à frente. Levantou-se uma ventania e a chuva
batia-lhe na cara com força, depressa lhe encharcou a roupa, cada vez mais
pesada.
Estava
farto de andar e nunca mais chegava às cercanias da Portela. Depois pareceu-lhe
que já passara por ali, mas talvez estivesse enganado. Viu uma piçarra grande,
inclinada para a frente e aproveitou para descansar. Meteu-se debaixo dela,
resguardado da chuva mais forte. Respirou fundo e acalmou, tentando perceber
para que lado era o Fundão e para que lado era São Vicente. Já não tinha
certezas e a noite parecia ter chegado. Aproveitou para comer o resto do pão
que trouxera de casa, pois já sentia fraqueza. O corpo começou-lhe a arrefecer
e por isso saiu do abrigo e meteu-se de novo a caminho, na direção que lhe pareceu
certa. Andou, andou, até ser noite de todo, sem que encontrasse qualquer sinal
familiar.
O
que fazer? Parar não podia. Num entroncamento de caminhos, mudou de sentido e
continuou. Tinha de teimar. Andou, andou e nada. Passou por um castanheiro com
uma taloca enorme e abrigou-se lá dentro.
Ele
perdido na serra, ensopado até aos ossos, numa noite negra como breu, e a
mulher e a filha em casa, raladas da sua demora. Que remédio senão passar a
noite naquele abrigo, pois no escuro não conseguiria encontrar o caminho de
regresso. Agachou-se de cócoras e tentou dormir. Sentia-se gelado e as pernas
dormentes da posição. Esticou-as e sentou-se no chão, encostado ao interior do
castanheiro. Adormeceu.
Um
restolhar de animal acordou-o. Olhou para fora, mas não enxergava nada. O
barulho ouvia-se cada vez mais perto e à frente dele apareceu uma grande mancha
clara. O lobo branco! Fazia dois cães pastores, era enorme. Sentiu um arrepio
mortal percorrer-lhe todo o corpo. Ficou imóvel e o lobo pareceu olhar para ele,
mas continuou o seu caminho e desapareceu. Levou as mãos à cabeça, tinha os
cabelos em pé!
Os
antigos contavam histórias do lobo branco, o chefe de todos os lobos da serra,
mas ele sempre julgara que eram apenas histórias. Não percebia porque é que o
lobo o poupara. Anos antes, tinham encontrado umas botas com os pés de um homem
dentro. Os lobos devoraram-no, só não conseguiram comer os pés metidos nas
botas.
Mal
pregou olho o resto da noite e ainda voltou a assustar-se quando um bicho
passou rente ao castanheiro e fixou nele o olhar, duas bolinhas brilhantes.
Talvez uma raposa. Quando começou a clarear, saiu do castanheiro e tentou
retomar o caminho para casa. O céu limpara, era outro dia. Vasculhou os
horizontes até que teve a certeza de um dos cumes ser o Cabeço do Mastro,
situado ao lado da passagem da Portela. Foi caminhando sempre de olho nele até
chegar ao alto. Depois desceu e um pouco abaixo da ermida da Orada viu dois
vultos que vinham na sua direção. Mais de perto reconheceu a mulher e a sogra.
Estava em casa.
Nota:
Ouvi muitas vezes, nas matações dos Teodoros, contar este episódio que se passou com o meu tio Joaquim Nicolau, o matador da família. Esta história está muito pouco ficcionada, apenas se acrescentou o lobo branco que, segundo se conta, apareceu mesmo, mas nas Tapadas, a um filho do tio Manuel Rodrigues e da tia Ana Prata. A parte das botas que apareceram só com os pés dentro é uma história que se contava na minha infância.
Pelo caminho "dos mouros", da Orada ao Alto da Portela, sempre a subir.
8 comentários:
Parabéns por mais um excelente post. Fiquei intrigado... Quem era o seu tio Joaquim Nicolau? Sendo Nicolau, tem de ser da minha família e não encontro nenhum Nicolau na nossa árvore... Sabe dizer-me mais alguma coisa sobre ele?
Cumprimentos
Paulo Nicolau Almeida
No âmbito da minha actividade profissional fiz alguma formação na área da literatura para a infância. Sempre que nas aulas se falava de como era importante o contacto precoce da criança com o livro, nomeadamente para o seu desenvolvimento emocional e motivação para a leitura e escrita, eu pensava na sorte dos nossos filhos em terem nascido numa época em que todos os aspectos do desenvolvimento infantil eram valorizados e potenciados através dos mais variados instrumentos, nomeadamente as histórias tradicionais ou outras mais modernas. Por outro lado, interrogava-me como é que as pessoas da minha geração, e outras de gerações anteriores, não tendo sido alvo de grandes preocupações em termos educativos (pelo menos de forma explícita), tinham conseguido sobreviver com algum equilíbrio e encontrado motivação para superar tantas dificuldades e baixas expectativas.
Ao ler esta história, e tantas outras que tens partilhado connosco (obrigada por isso), penso encontrar parte da resposta para estas minhas interrogações. Ela trouxe-me à memória outras histórias que a minha mãe e a minha avó me contavam (acho que eram sempre as mesmas ou muito parecidas) que me deixavam completamente arrepiada de medo e me faziam aninhar no colo mais próximo. Este medo não impedia que no final pedisse “conte lá outra vez…”. Penso que, à sua maneira, estas histórias da tradição oral cumpriram um papel importante na nossa infância. Para além de nos ajudarem a lidar com os medos e a ganhar segurança, constituíram momentos importantes de partilha da nossa cultura. Constituíram sobretudo momentos de partilha de afectos entre gerações.
Afinal, de outra forma, também tivemos a nossa sorte!
M. L. Ferreira
Paulo:
Este Joaquim Nicolau (não sei se tinha Nicolau no nome) era da família dos Nicolau e o filho tem esse apelido no nome (Jaime Teodoro Nicolau).
Estava casado com Celeste Teodoro, a irmã do meu pai, e moravam um pouco acima da casa da Ti Jú e do meu tio João Teodoro.
Acho que assim já lá chegas.
Um abraço.
José Teodoro
Já o disse aqui:
Estas histórias fazem-me lembrar as aventuras d' "O Malhadinhas" de Aquilino Ribeiro, livro que sempre me fascinou, não só pelas atribulações do protagonista, a calcorrear montes e vales, a pé ou no "machinho", nas suas andanças de almocreve. E, fascínio, que se explica, porquanto toda a acção se desenrola no interior do país, por "Terras do Demo". Mas também pela linguagem utilizada pelo autor. Lugares e linguajar em tudo muito idênticos aos nossos.
Comprova-o, curiosamente (ou talvez não) o facto de, nessa obra, também se contar uma história de lobos, incluindo o episódio dos pés dentro das botas, única parte do corpo que os lobos não podiam devorar.
Na era da globalização, como é a presente, é possível desmistificar, em parte, essas histórias, com raízes no fundo dos tempos, que talvez se expliquem com o isolamento, a fragilidade e os medos das populações, durante séculos.
Mas, histórias, que sem dúvida, ainda hoje nos emocionam.
Um regalo !!
Zé Barroso
Zé Barroso:
És lixado! Eu a julgar que a história do homem comido pelos lobos (que só deixaram os pés dentro das botas) era verdadeira e só nossa e tu vens-me com o Aquilino! Decoraste-lhe os livros? Eu já não me lembrava...
E cheguei a casa e a minha mãe disse-me que a história do tio Joaquim não foi bem assim. E que o lobo branco das Tapadas era afinal a sombra do rapaz, à luz da lua!
Como estará a pensar a Libânia, vocês andam a dar cabo da magia das nossas histórias de infância.
Aguardem pela versão 2 dos lobos!
Esta história do tio Joaquim P. Nicolau está muito ficcionada, quem a sabe bem é a minha Mãe, que a “viveu” e assistiu a todo o desenrolar do acontecimento.
Quanto ao tio Joaquim ser Nicolau, sim ele ainda era familiar do Paulo Duarte de Almeida.
A mãe de Joaquim Nicolau chamava-se Maria José Nicolau, que era irmã de Francisco Nicolau, bisavô de Paulo Duarte de Almeida.
Boas escritas e boas histórias, mas verdadeiras e bem vicentinas.
Bom fim-de-semana!
Luzita:
As histórias têm é de ser bem escritas e boas! Serem verdadeiras e vicentinas é absolutamente secundário: o rigor pode até tirar-lhes força e o serem vicentinas, de facto dá jeito serem-no, neste blogue, mas só por isso.
Beijos.
O meu avô contou-me vezes infinitas a história dos pés nas botas. Na sua versão os pés pertenciam a um cachopito que em vez de sair da escola e ir direito a acasa foi ver do pai à Serra e não estando ele lá se dirigiu depois à fonte da portela. Como entretanto se fez noite e a sua mãe já estava em cuidados juntou-se parte da população da vila e armados de paus , alfaias agriculas e tochas foram em busca do penqueno. Encontraram apenas as botas com os pés. Acrescento ainda que quando nos sabia melhor ouvir esta e outras histórias de lobos , era enquanto desciamos da serra já noite sozinhos na companhia do avô Joaquim Barroso. E enquanto as contava olhavamos os penedos cheios de medo mas ainda assim com curiosidade a ver se viamos os miticos lobos
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