segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O lobo branco

O homem seguia pelo caminho ao longo da ribeira, por entre lameiros e olivais. Dava os bons dias aos que desde cedo trabalhavam nas fazendas rente ao caminho e levantava a mão aos que de longe lhe acenavam. Ia ao Fundão por via de umas trempes para as panelas do lume. No mercado das segundas-feiras havia de tudo e aproveitava para comprar também um molho de cebolo, pois o que semeara no canteiro estava amarelo, não vingava.
Embora a manhã estivesse fresca, o caminho sempre a subir secara-lhe a garganta e foi molhá-la à fonte da Orada. Junto da capela tirou o chapéu, benzeu-se e rezou uma Ave Maria a Nossa Senhora.
Voltou ao caminho, agora cada vez mais inclinado. Subiu nas calmas, sempre no mesmo passo, pois ainda havia muito caminho para andar. O sol já brilhava, mas o tempo andava incerto. “Em abril, águas mil”, lá dizia o ditado e era capaz de se trabalhar, pois do outro lado da serra assomavam nuvens negras. Chegou ao Alto da Portela e lançou um olhar pela paisagem: montanhas e vales escurecidos pelas nuvens. Mas para a frente é que era o caminho. Desse no que desse, não seria a primeira nem a última molha. Seguiu nas endireituras do Cavalinho, um cume mesmo por cima do Fundão.
Comeu uma bucha de pão seco que trouxera de casa e o tempo passou depressa, entretido a pensar na vida e a admirar a paisagem florida de giestas e carquejas. Antes do meio-dia, estava no mercado. Feirou o que tinha a feirar e ainda comprou um podão, porque o achou a bom preço e o que tinha em casa já estava bem reles para cortar a lenha e o mato.
Encontrou os primos de Alcongosta e deram dois dedos de conversa. Já à saída do mercado, cruzou-se com um amigo do Castelejo, antigo companheiro do tempo em que andara nos caminhos de ferro. Foram à taberna beber um copo. Depois outro, com tremoços a acompanhar. A sala era um buraco escuro, com homens de pé, encostados ao balcão, ou sentados nos bancos corridos, encostados à parede. Havia outra sala mais iluminada, com mesas e cadeiras, mas não era para ele, o vinho e os tremoços já chegavam para entreter o estômago.
Despediu-se do companheiro e partiu com a saca das compras ao ombro. Olhou para o céu e percebeu que apanhar uma molha era tão certo como chamar-se Joaquim. Subiu caminho e mais caminho. Frente ao Cavalinho virou à direita para a Portela. Era ainda cedo, mas escurecia como se estivesse a anoitecer. Dos altos da serra desceu um nevoeiro cerrado e quando o apanhou começou a chover. Compôs o casaco e o chapéu e continuou.  Via-se cada vez menos, pouco mais que dez passos à frente. Levantou-se uma ventania e a chuva batia-lhe na cara com força, depressa lhe encharcou a roupa, cada vez mais pesada.
Estava farto de andar e nunca mais chegava às cercanias da Portela. Depois pareceu-lhe que já passara por ali, mas talvez estivesse enganado. Viu uma piçarra grande, inclinada para a frente e aproveitou para descansar. Meteu-se debaixo dela, resguardado da chuva mais forte. Respirou fundo e acalmou, tentando perceber para que lado era o Fundão e para que lado era São Vicente. Já não tinha certezas e a noite parecia ter chegado. Aproveitou para comer o resto do pão que trouxera de casa, pois já sentia fraqueza. O corpo começou-lhe a arrefecer e por isso saiu do abrigo e meteu-se de novo a caminho, na direção que lhe pareceu certa. Andou, andou, até ser noite de todo, sem que encontrasse qualquer sinal familiar.
O que fazer? Parar não podia. Num entroncamento de caminhos, mudou de sentido e continuou. Tinha de teimar. Andou, andou e nada. Passou por um castanheiro com uma taloca enorme e abrigou-se lá dentro.
Ele perdido na serra, ensopado até aos ossos, numa noite negra como breu, e a mulher e a filha em casa, raladas da sua demora. Que remédio senão passar a noite naquele abrigo, pois no escuro não conseguiria encontrar o caminho de regresso. Agachou-se de cócoras e tentou dormir. Sentia-se gelado e as pernas dormentes da posição. Esticou-as e sentou-se no chão, encostado ao interior do castanheiro. Adormeceu.
Um restolhar de animal acordou-o. Olhou para fora, mas não enxergava nada. O barulho ouvia-se cada vez mais perto e à frente dele apareceu uma grande mancha clara. O lobo branco! Fazia dois cães pastores, era enorme. Sentiu um arrepio mortal percorrer-lhe todo o corpo. Ficou imóvel e o lobo pareceu olhar para ele, mas continuou o seu caminho e desapareceu. Levou as mãos à cabeça, tinha os cabelos em pé!
Os antigos contavam histórias do lobo branco, o chefe de todos os lobos da serra, mas ele sempre julgara que eram apenas histórias. Não percebia porque é que o lobo o poupara. Anos antes, tinham encontrado umas botas com os pés de um homem dentro. Os lobos devoraram-no, só não conseguiram comer os pés metidos nas botas.
Mal pregou olho o resto da noite e ainda voltou a assustar-se quando um bicho passou rente ao castanheiro e fixou nele o olhar, duas bolinhas brilhantes. Talvez uma raposa. Quando começou a clarear, saiu do castanheiro e tentou retomar o caminho para casa. O céu limpara, era outro dia. Vasculhou os horizontes até que teve a certeza de um dos cumes ser o Cabeço do Mastro, situado ao lado da passagem da Portela. Foi caminhando sempre de olho nele até chegar ao alto. Depois desceu e um pouco abaixo da ermida da Orada viu dois vultos que vinham na sua direção. Mais de perto reconheceu a mulher e a sogra. Estava em casa.

Nota:
Ouvi muitas vezes, nas matações dos Teodoros, contar este episódio que se passou com o meu tio Joaquim Nicolau, o matador da família. Esta história  está muito pouco ficcionada, apenas se acrescentou o lobo branco que, segundo se conta, apareceu mesmo, mas nas Tapadas, a um filho do tio Manuel Rodrigues e da tia Ana Prata. A parte das botas que apareceram só com os pés dentro é uma história que se contava na minha infância.


Pelo caminho "dos mouros", da Orada ao Alto da Portela, sempre a subir.

8 comentários:

Paulo Duarte de Almeida disse...

Parabéns por mais um excelente post. Fiquei intrigado... Quem era o seu tio Joaquim Nicolau? Sendo Nicolau, tem de ser da minha família e não encontro nenhum Nicolau na nossa árvore... Sabe dizer-me mais alguma coisa sobre ele?
Cumprimentos

Paulo Nicolau Almeida

Anônimo disse...

No âmbito da minha actividade profissional fiz alguma formação na área da literatura para a infância. Sempre que nas aulas se falava de como era importante o contacto precoce da criança com o livro, nomeadamente para o seu desenvolvimento emocional e motivação para a leitura e escrita, eu pensava na sorte dos nossos filhos em terem nascido numa época em que todos os aspectos do desenvolvimento infantil eram valorizados e potenciados através dos mais variados instrumentos, nomeadamente as histórias tradicionais ou outras mais modernas. Por outro lado, interrogava-me como é que as pessoas da minha geração, e outras de gerações anteriores, não tendo sido alvo de grandes preocupações em termos educativos (pelo menos de forma explícita), tinham conseguido sobreviver com algum equilíbrio e encontrado motivação para superar tantas dificuldades e baixas expectativas.
Ao ler esta história, e tantas outras que tens partilhado connosco (obrigada por isso), penso encontrar parte da resposta para estas minhas interrogações. Ela trouxe-me à memória outras histórias que a minha mãe e a minha avó me contavam (acho que eram sempre as mesmas ou muito parecidas) que me deixavam completamente arrepiada de medo e me faziam aninhar no colo mais próximo. Este medo não impedia que no final pedisse “conte lá outra vez…”. Penso que, à sua maneira, estas histórias da tradição oral cumpriram um papel importante na nossa infância. Para além de nos ajudarem a lidar com os medos e a ganhar segurança, constituíram momentos importantes de partilha da nossa cultura. Constituíram sobretudo momentos de partilha de afectos entre gerações.
Afinal, de outra forma, também tivemos a nossa sorte!

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Paulo:
Este Joaquim Nicolau (não sei se tinha Nicolau no nome) era da família dos Nicolau e o filho tem esse apelido no nome (Jaime Teodoro Nicolau).
Estava casado com Celeste Teodoro, a irmã do meu pai, e moravam um pouco acima da casa da Ti Jú e do meu tio João Teodoro.
Acho que assim já lá chegas.
Um abraço.
José Teodoro

Anônimo disse...

Já o disse aqui:
Estas histórias fazem-me lembrar as aventuras d' "O Malhadinhas" de Aquilino Ribeiro, livro que sempre me fascinou, não só pelas atribulações do protagonista, a calcorrear montes e vales, a pé ou no "machinho", nas suas andanças de almocreve. E, fascínio, que se explica, porquanto toda a acção se desenrola no interior do país, por "Terras do Demo". Mas também pela linguagem utilizada pelo autor. Lugares e linguajar em tudo muito idênticos aos nossos.

Comprova-o, curiosamente (ou talvez não) o facto de, nessa obra, também se contar uma história de lobos, incluindo o episódio dos pés dentro das botas, única parte do corpo que os lobos não podiam devorar.

Na era da globalização, como é a presente, é possível desmistificar, em parte, essas histórias, com raízes no fundo dos tempos, que talvez se expliquem com o isolamento, a fragilidade e os medos das populações, durante séculos.

Mas, histórias, que sem dúvida, ainda hoje nos emocionam.

Um regalo !!

Zé Barroso

José Teodoro Prata disse...

Zé Barroso:
És lixado! Eu a julgar que a história do homem comido pelos lobos (que só deixaram os pés dentro das botas) era verdadeira e só nossa e tu vens-me com o Aquilino! Decoraste-lhe os livros? Eu já não me lembrava...
E cheguei a casa e a minha mãe disse-me que a história do tio Joaquim não foi bem assim. E que o lobo branco das Tapadas era afinal a sombra do rapaz, à luz da lua!
Como estará a pensar a Libânia, vocês andam a dar cabo da magia das nossas histórias de infância.
Aguardem pela versão 2 dos lobos!

Luzita disse...

Esta história do tio Joaquim P. Nicolau está muito ficcionada, quem a sabe bem é a minha Mãe, que a “viveu” e assistiu a todo o desenrolar do acontecimento.

Quanto ao tio Joaquim ser Nicolau, sim ele ainda era familiar do Paulo Duarte de Almeida.
A mãe de Joaquim Nicolau chamava-se Maria José Nicolau, que era irmã de Francisco Nicolau, bisavô de Paulo Duarte de Almeida.

Boas escritas e boas histórias, mas verdadeiras e bem vicentinas.
Bom fim-de-semana!

José Teodoro Prata disse...

Luzita:
As histórias têm é de ser bem escritas e boas! Serem verdadeiras e vicentinas é absolutamente secundário: o rigor pode até tirar-lhes força e o serem vicentinas, de facto dá jeito serem-no, neste blogue, mas só por isso.
Beijos.

Margarida Gramunha disse...

O meu avô contou-me vezes infinitas a história dos pés nas botas. Na sua versão os pés pertenciam a um cachopito que em vez de sair da escola e ir direito a acasa foi ver do pai à Serra e não estando ele lá se dirigiu depois à fonte da portela. Como entretanto se fez noite e a sua mãe já estava em cuidados juntou-se parte da população da vila e armados de paus , alfaias agriculas e tochas foram em busca do penqueno. Encontraram apenas as botas com os pés. Acrescento ainda que quando nos sabia melhor ouvir esta e outras histórias de lobos , era enquanto desciamos da serra já noite sozinhos na companhia do avô Joaquim Barroso. E enquanto as contava olhavamos os penedos cheios de medo mas ainda assim com curiosidade a ver se viamos os miticos lobos