quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O RENEGADO III

(Continuação…)

«Boa noite», entrou logo a dizer.

E assim que deparou com o homem:

«Temos visitas»?

«Temos», respondeu a mulher. «Esta criatura apareceu aqui encharcado, cheio de fome e de frio. Tem estado a enxugar-se. Comeu uma tigela de caldo quente com toucinho e pão e tem estado a aquecer-se para seguir jornada».

Tudo isto fazia parte da encenação que não fora, mas parecia ter sido combinada.

Ainda não se sabia se o indivíduo estava ou não armado. Era preciso tato e bom senso para não deixar que ele pudesse criar perigo para qualquer dos membros da família.   

«Então e você o que o traz por estas paragens, se não leva a mal o perguntar»? Disse o Ti’ Maria.

«Perdi-me por esta serra».

«Com um tempo destes a perder-se na serra!... Nem os lobos por andam e os cães mal ladram nos casais»!

«Pois sim, mas tenho que porfiar… Vida e corpo a sustentar…»

«Homessa! E como vai o amigo»? Disse o Ti’ Maria ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para o cumprimentar.  

O outro ia também a estender-lhe a mão. E é quando o dono da casa confirma aquilo que esperava e era por demais conhecido da história que se contava acerca do Pistotira: a falta dos dedos da mão! A sua marca corporal tinha-o denunciado!  

«Ah! Seu malandro! Seu ‘filha da puta’ ! Você é mas é o Pistotira, procurado por assaltos a casas e pessoas, que inquieta muito tempo a gente destas terras com ameaças e extorsão de bens! Então você vem aqui, alberga-se abaixo das minhas telhas, mesmo nas minhas barbas, bem sei eu se com intuito de roubar-me o que é meu e molestar a minha família? Você está preso! Preso, ouviu! de pagá-las agora todas juntas»!

Enquanto isto dizia, o Ti’ Maria, que era um homem na força da maturidade, deitou-lhe os galfarros aos gorgomilos, atafegou-o e imobilizou-o, para que não se socorresse de alguma faca ou arma de fogo, caso a trouxesse.

Quando viu que fora descoberto, o homem ainda esboçou alguma resistência, mas podia ele nada contra o Ti’ Maria! É que, este, redobrou de esforço e energia. À uma, porque estava em sua casa o que lhe dava mais ânimo e confiança, que tinha para dar e vender. E, por outra, tratava-se de se safar a si próprio e à sua família daquele perigo e inconveniência!

O Ti’ Gato que aquilo ouvira entrou também de rompante na cozinha para ajudar o amigo. Seguro e imobilizado o Pistotira, manietam-no pelos pulsos, por forma a não poder fazer qualquer gesto agressivo.

A intenção era metê-lo na cadeia que se situava por baixo da antiga casa da câmara, na praça, uma espécie de fortaleza de granito. Dali não fugiria!

No dia seguinte, seguiria debaixo da força de cabos de ordens, a pé, até Castelo Branco, para ser presente a tribunal. Era a oportunidade de o Pistotira ir, finalmente, enfrentar a justiça e ser condenado pelas patifarias que tinha praticado durante anos.

Se assim pensaram, melhor o fizeram. Sempre de olho nele porque apesar das mãos atadas, as pernas estavam livres e podia tentar fugir, mal se descuidassem os seus captores. Um de um lado, outro do outro e ele no meio, levaram-no até à praça.

A chuva amainara, mas percebia-se que o astro permanecia nublado. Nenhuma estrela era visível no firmamento. A noite era breu e, como se sabe, não havia luz na via pública.

em frente da taberna do Ti’ João Arrebotes, à vista da pouca claridade que vinha de dentro, puderam os presentes divisar o prisioneiro e os que o traziam preso e amarrado.

Cresceu o alarido. A notícia correu por todas as tabernas da redondeza.

Todos os que souberam do caso, foram aparecendo, gradualmente, até formarem um adjunto de 25 ou 30 homens. Uns mais maduros, outros na força da mediana idade e outros ainda rapazes acima de casadoiros, feros e capazes de arremeter contra castelos!

Acercavam-se do energúmeno, primeiramente, por curiosidade. Queriam ver de perto o vilão mas também, de algum modo, herói de aventuras. Afinal tinha sido preso um dos homens de que tanto se falava, cuja fama de malfeitor corria pela Beira. Um dos fora da lei que há muito se tinham assenhoreado daquelas serras.

Podiam agora tocar-lhe, que estava ali à distância de um braço. Como se só pelo toque pudessem confirmar a existência daquela figura quase lendária que lhes parecia ter saído da fantasia dos livros de quadradinhos. 

Foi chamado o regedor que, após se inteirar do caso, confirmou a detenção. O forasteiro dormiria no local apropriado e no dia seguinte seria levado a Castelo Branco. O resto ficaria à responsabilidade das autoridades da comarca.

Todos acreditavam que a situação dispensava investigação. Podia dizer-se que o caso era público e notório e não necessitava de prova, tal a má fama de que o indivíduo gozava em toda a riba Gardunha. Mas, se necessário, testemunhas contra ele não faltariam.    

Era preciso metê-lo no calabouço. Veio um candeeiro. A turba iniciou a marcha com o clamor que a circunstância deixa adivinhar e o prisioneiro no meio, atado de mãos, em direcção ao edifício onde se situava a cadeia, no topo da praça.

Elevou-se a gritaria, o homem sempre vigiado pelos cabos de ordens e por muitos populares. Formavam-se grupos de indivíduos que transbordavam euforia, abraçados uns aos outros, aos urros, que iam e vinham, dentro da roda do ajuntamento, aos avanços e às arrecuas. 

Entraram pela porta que hoje dá acesso ao gabinete do presidente da Junta de Freguesia, aberta para a praça velha, agora praça Dr. Hipólito Raposo. O rés do chão era amplo. Mas havia divisão dos espaços, de acordo com as necessidades, uns destinados à zona das detenções, outros aos serviços administrativos e outros com funções auxiliares ou não especificadas. 

Até ali, criara-se à volta do indivíduo um halo de proteção. Uma espécie de estado de graça generalizado entre os membros da malta, pela surpresa e curiosidade que suscitara a sua aparição.

Mas começaram a levantar-se, a pouco e pouco, vozes de censura. A admiração deu lugar à chalaça, primeiro, e à provocação, depois. Desvaneceu-se a fantasia da lenda e veio ao de cima a lembrança do desassossego provocado pelo malfeitor nas populações, durante anos. 

Dentro da cadeia, pendurou-se o candeeiro em local adequado, suficientemente alto, para iluminar o local, com o detido no meio do aglomerado das pessoas e o regedor e os cabos de ordens por perto.

Circulava entre os presentes, entusiasmados pela façanha conseguida, um cântaro de tinto do Arrebotes, oriundo da muito ténue encosta ensolarada das Vinhas do Poço, abaixo da Fonte da Portela, a expensas da rapaziada ali reunida.

A certa altura da função, fosse por força da excitação do préstimo feito à sociedade, prendendo o facínora; fosse pelos copos escorropichados desde que anoitecera, às cinco da tarde daquele dia de inverno; e, com as veias das frontes a latejar, as testas brunidas e o hálito vinolento, turvou-se-lhes o espírito.

«Hás de pagá-las agora, cão». Dizia um.

«Safado»! Dizia outro.

«Espera-te o degredo em África para o resto da vida»! Regougava aquele.

«Acabou-se o teu reinado, ladrão»! Volvia ainda um outro.
   
Dizendo isto, atento o currículo de torpezas do biltre, antecipavam-lha já um futuro negro, mesmo antes de a justiça se pronunciar. E a vingança, ainda que ligeira, já começara. Um passava por ele e dava-lhe uma lambada; outro um pontapé; outro, ainda, empurrava-o e caçoava dele.

E assim se viu o homem encurralado e sozinho. Salvo seja, parecia mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo entre os algozes. É certo que ele era culpado e pecador e merecia castigo. Mas até na condenação um homem tem direito à dignidade.

«Ah! Damonho! Tantas fizeste que vais acabar a espernear numa corda»! 

«Chegou o teu fim! Não voltas a ver sol nem lua»!

E porque torna e porque deixa, levaram umas boas duas horas nesta léria, bem regadas de tinto.

Não tugiu. Uma palavra dele e aumentaria ainda mais a sanha da chusma.

Tanto quanto lhe era possível e porque, até àquele dia, em todas as ocasiões se tinha saído por cima do cadafalso que lhe haviam armado, principiou logo a pensar em tirar partido da ineficácia daqueles cérebros toldados pela exasperação. Que era nada menos que uma mistura feita de muita emoção e alguns meios quartilhos de tinto do Arrebotes!

Tinha que espreitar uma aberta para dar às de vila diogo, se não queria ir bater com os costados na enxovia.  

A tramoia ameaçava prolongar-se noite dentro e pela madrugada fora, até à saída do prisioneiro para Castelo Branco.  

Porém, a certa altura, não se sabe bem o que sucedeu. Se foi algum gesto feito à toa; se terá sido alguma pancada com intenção de alguns causarem a desordem e fazer justiça popular já ali, criando as condições de impunibilidade para os autores; se foi por falta de combustível. Fosse lá por que razão fosse, o que se sabe é que o candeeiro se apagou de repente e ficou tudo às escuras! Pânico! 

«Aqui d’el rei que o preso foge»! «Aqui d’el rei»! Acudam»! «Agarrem-no»! «Não o deixem fugir»! Gritavam. E andavam feitos tarantas na escuridão, às apalpadelas, aos encontrões uns nos outros, sem atinarem ou enxergarem o que quer que fosse.
  
Era a oportunidade do Pistotira! Ele já tinha mirado uma janela que dava do edifício da cadeia para a praça velha, situada a cerca de apenas um metro de altura do chão, hoje serviço da Junta de Freguesia. Encontrava-se aberta. A pequena multidão, desleixada pelo excesso de confiança da sua missão, não a fechara.

Mal se apagou a luz e ele se sentiu livre, afastou os vigias mais próximos com dois encostos. A coberto daquela abençoada escuridão, deu dois saltos empurrando mais alguns dos que inopinadamente lhe estorvavam o caminho. Que ele, como já se referiu, era lesto de pernas e ágil de movimentos. Habituado que estava a livrar-se de encrencas como esta, deu um pulo pela janela e estava na rua como pássaro fora da gaiola!

Em menos tempo do que se leva a rezar uma avé maria, afastou-se do local e pôs-se de largo. Os do adjunto, meio a tatear, lá acenderam o candeeiro. Foi então que puderam confirmar a falta do prisioneiro. E vieram logo para a rua onde reinava a grande aliada do fugitivo, a treva, às apalpadelas. Ainda deram umas voltas pela zona da praça, pensando que, com a noite que estava, ele não iria muito longo. Mas podiam lá eles apanhá-lo com a mente que levava, incendiada pelo ânimo, direito à liberdade.

Nunca o apanharam. E assim acabou, que se saiba, a aventura do Pistotira por estas serras. Teria rumado a sul, onde continuou a fazer das suas.


Uns anos depois, no Vale de Santarém, em desavença com alguém a quem teria cobiçado os haveres, em fuga desenfreada, caiu num poço que se lhe atravessara no caminho e que não lobrigou, afogueado como ia a escapulir-se, mais uma vez, para não perder a liberdade.

Terá sido a sua derradeira aventura. Consta que ficou muito mal nessa queda e que acabou mesmo por morrer quando a GNR quase lhe terá arrancado as orelhas ao puxá-lo do poço. 
     

José Barroso 

2 comentários:

Anônimo disse...

Quem sabe se, antes de rumar ao sul, não se terá acoitado primeiro ali para os lados das Quintas… É que há dias, num dos serões na Taberna da Amália, falou-se do Pistotira e alguém disse que era habitual ele atravessar a Gardunha, passando pela Senhora da Orada e visitar alguma das várias casas que por ali existiam. Diz-se que nunca lhe era negado um prato de sopa e um canto para pernoitar, e, quando podia, até fazia questão de pagar alguma coisa…
Provavelmente, no meio de tanto mistério, algumas das histórias que se contam sobre o Pistotira serão verídicas, outras, fantasia; mas a verdade é que elas fazem parte do imaginário de muitos de nós porque era à volta das “aventuras” de personagens como esta que rolavam muitas das conversas nos longos serões de inverno de outros tempos.
Ao ler esta magnífica reconstituição feita de forma tão realista e ao mesmo tempo tão criativa, houve alturas em que quase me senti a participar nos acontecimento e a hesitar se devia torcer pelo malfeitor ou pela justiça popular.
Claro que eram outros tempos, mas ao ler a história do Renegado lembrei-me do livro “Os Miseráveis” adaptado ao cinema recentemente. Para quem não leu o livro ou viu o filme, trata-se da história da vida de um homem condenado a vários anos de trabalhos forçados por ter roubado um pão. Quando finalmente é posto em liberdade sente-se rejeitado por todos e continua a viver à margem da sociedade. Um dia vai dar a uma igreja onde o bispo lhe dá de comer e dormir, mas no dia seguinte rouba uns talheres de prata e foge. É apanhado pouco depois pela polícia e levado à presença do bispo que o desculpa declarando que tinha sido ele a oferecer os talheres em troca da promessa de que ele os utilizaria para fazer o bem. Admirado com esta atitude do bispo, o “ladrão” muda de vida e torna-se num homem respeitado pela sua bondade e ajuda aos mais necessitados.
Claro que isto é ficção, mas faz-nos pensar em como muitas vidas podiam ser diferentes se não fossemos tão preconceituosos e sempre tão dispostos a atirar a primeira pedra em vez de tentarmos compreender e acreditar.
Parabéns ao Zé Barroso!
M.L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Conheço três versões do fim do Pistotira:
1. Fugia pelos campos do Ribatejo, caiu a um poço e afogou-se;
2. Foi preso numa prisão de Lisboa, onde a água do mar lhe entrava pela cela, e lá morreu.
3. Suicidou-se numa prisão, dizendo, enquanto cortava as veias com uma lâmina de barbear,: Vem morte, que és tão linda!».
Enfim, nestas histórias antigas, não se distingue o mito da realidade.