Eu era um seminarista adolescente que levava a vida
religiosa a sério. Aliás, em pequeno, sonhara que era bispo, vestido com vestes
muito coloridas, numa missa no lameiro da Barroca, onde tínhamos a mina de água
para beber. O leirão cheio de pessoas vestidas com roupas vistosas e as paredes
cobertas de panos coloridos. Predominavam as cores claras: branco, amarelo, rosas,
laranjas… O altar era no alto de uma das paredes, como se fosse um palco. Deve
ter havido crisma em São Vicente e eu reproduzi no sonho a festa que vira na
Igreja.
No secundário, fomos a Fátima e eu achei o santuário
desmesuradamente grande e impessoal. E um colega perguntou como seria quando a
azinheira secasse. Comecei a questionar-me sobre o meu futuro, se era aquilo
que eu queria. A coisa piorou quando tentei racionalizar tudo. Ora a
religião pertence ao domínio da fé, da crença, não da razão. Alguém afirmou,
anotei-o por aqueles tempos, que submeter Deus à razão é matá-lo dentro de nós
próprios.
No 2.º ciclo, tivera um professor da Covilhã com uma empregada vicentina. Brincava com os alunos de São Vicente, éramos vários,
dizendo que nunca iria com ela aos figos. Pudera, ela era mais alta que ele! Afirmava
que nós estudávamos na melhor escola que havia. Era de facto uma excelente
escola. Entre muitas coisas boas, havia a tradição do teatro e no 7.º ano
(atual 12.º) corremos as povoações dos arredores do Tortosendo com a peça de
teatro “O Lugre”, de Bernardo Santareno. O dinheiro que arranjámos serviu para
organizar uma viagem de finalistas.
Éramos doze e fomos num carro e numa carrinha. Em
Lisboa, ficámos em Benfica, na residência do Verbo Divino, por cima dos Móveis
Baía. Numa noite, fui com dois amigos encontrar-me com as minhas irmãs. No
regresso, encontrámos o padre prefeito desanimado, pois os outros colegas
tinham ido todos ver “A Grande Farra”, um filme com pessoas nuas a comer até
vomitar e morrer, o retrato de uma sociedade decadente. Caramba: os nossos
colegas não nos tinham dito nada! Era uma porcaria, mas o grande filme do
momento. Como resistir-lhe? Impróprio para seminaristas, pensava o nosso
prefeito.
Continuámos a viagem, pelo Alentejo, mas já com o
ambiente estragado. De regresso à nossa casa do Tortosendo, adivinhava-se
borrasca e ela chegou: três alunos expulsos, dos nove que tinham ido ver o
filme. Depois, de três passou a um: o nosso conterrâneo Francisco Barroso.
Passei-me, com a discriminação. Na reunião que
tivemos com o prefeito, para justificar a saída do Chico, aquilo já não me dizia
nada e só pensava nas videiras que o meu pai tinha para enxofrar. Sim,
estávamos em Maio e só faltava um mês para os exames finais no Liceu da
Covilhã. Marcaram ao Chico o dia de abalada e eu comecei a avisar os
professores para não contarem comigo na preparação para aos exames.
Foi numa sexta-feira e viemos os dois, primeiro de
comboio até ao Fundão e depois na camioneta da carreira do Pião. Na Paragem,
toca de carregar com as malas, a abarrotar com o enxoval de cada um, as roupas
pessoais e da cama, incluindo uma manta de fitas. Ao alto da rua Nicolau
Veloso, o Ernesto Hipólito veio à porta da mercearia e pôs-se a rir como que
viu: dois ex-colegas do seminário vergados com as malas às costas um mês antes
do ano letivo acabar. Continuámos a subida, deixei o Chico no Cimo de Vila e
segui quelha acima para a Tapada.
A minha mãe veio à porta do balcão quando eu já o
estava a subir e ficou triste, ela que tinha esperança de ver o seu filho padre.
Anos depois, explicou-me que naquele momento foi como se tivesse feito de
noite. E eram só cinco e meia de uma tarde luminosa de primavera.
José Teodoro Prata
José Teodoro Prata
5 comentários:
Constou-me que o filme não terá sido a Grande Farra mas sim a Emanuelle.
E, verdade seja dita, ficou tão traumatizado com a expulsão (não com o filme) que um dia destes quis-lhe emprestar a trilogia dos filmes da Emanuelle e o nosso amigo Chico ia-me excomungando.
Então tu não sabes (claro que sabia) que foi por causa disso (terá sido?) que eu vi esboroar-se a minha vocação cardinalícia?
Hoje os tempos são outros e o Chico não teria sido expulso e seria "certamente" um ótimo cardeal, conhecedor do bem e do mal para dele poder falar.
António Casimiro Barata
Então terá sido o "Emanuelle", que é outra loiça!
Já não tenho pena do Chico, tenho pena é de não ter ido ver.
Como diria o Diácono Remédios:
- Ó meus meninos! Então querem ser padres e ver o "Emanuelle"? Não pode ser: ou uma coisa ou a outra!
Ai o malandreco do Chico!. Quem é que havera do dizer!!!
Ó Ernesto, sabes o que foi? É que eu ainda sou do tempo em que não havia Internet...essa é qué essa, meu rapaz.
Nunca soube quem era a empregada do professor Ernesto, mas penso ter ouvido dizer que era da família Machana.
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