quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Mariana da Ribeirinha



Toda a vida fomos pobrezinhos, cá em Portugal, mas dizem os antigos que mesmo assim sempre houve muitos cobiçosos a quererem tomar conta da gente. Diz que duma vez foram os espanhóis que vieram por aí adentro. Parece que eram muitos! Tinham boas espingardas e bons cavalos; andavam bem comidos e bebidos; armados em valentes! Os nossos, coitaditos, esganados com fome, muitos deles descalços e nem armas como deve ser tinham. Mas parece que deram bem conta deles todos, mesmo quase só com machadas e forquilhas. Diz que uma ocasião, uma padeira deu cabo duns poucos só com a pá do forno. Se é verdade ou se são histórias, isso não sei; é o que ouvia contar aos antigos…

Mas dizem que os piores foram os franceses que vieram a seguir, no tempo do Napoleão. Parece que eram ruins, os filhos do diabo! Toda a gente tinha um medo deles que se pelava. Pilhavam tudo por onde quer que passassem: casas, hortas e até as igrejas e as capelas! E diz que matavam as crianças e que faziam mal às mulheres; tanto se lhes dava que fossem velhas ou novas. Não respeitavam ninguém! Piores que bichos! Constava-se que no Açor mataram uma cachopinha muito linda, ainda donzela, que tinha ido com outra à lenha. Quiseram gozar-se dela, mas como a rapariga se defendeu, deram-lhe um tiro que caiu logo ali, redonda no chão. Diz que no sítio onde fizeram esse serviço, nunca mais nasceu uma ponta de renovo.

Para fugirem dessas desgraças e para não serem obrigados a ir para a guerra, muitos homens pegavam nas mulheres e nos filhos e abalavam dos povos. Fugiam para a serra, ou para onde calhava, e ficavam por lá escondidos até que as tropas abalassem.

Foi o que fez um homem do Vale da Figueira, quando se começou a constar que os soldados andavam para aquelas bandas. Pegou nos três filhos e na mulher, que já andava outra vez com barriga de fim de tempo, e foram-se a esconder numa cabana que fizeram com paus e ramos de gesta, para os lados da Ribeirinha. A mulher e os meninos dormiam lá dentro, deitados numa cama de fetos. O homem dormia ao relento, a tomar conta, não fossem os soldados ou algum bicho aparecer por lá.

Passaram muitos cuidados e muita fominha, enquanto por lá andaram. Não é que não estivessem já avezados a viver com muitas precisões, sem farturas nem grandes novidade, mas naquela ocasião foi muito pior! A única coisa que tinham para comer era uma talêga de milho e uma amotolia de azeite que tinham trazido de casa, por isso os cachopinhos só comiam umas papas de carolo, aguadas, quer de manhã quer à noite; o homem e a mulher, o mais das vezes, era um caldo de beldroegas ou de saramagos engrolados, temperado com um fio de azeite.

Ele bem procurava! … Todos os dias pela tardinha ou logo de manhã, muito antes do sol nascer, saía à cata de qualquer coisa com que matar a fome aos filhos e à mulher, mas o mais das vezes voltava de mãos a abanar. Pelas hortas, nem se atrevia! Eram tempos de miséria e de pilhagem, e o que ainda não tinha sido roubado estava bem guardado pelos donos, de dia e de noite. Os figos ainda em leite e os gachos e as amoras tão verdes que nem os cães os queriam. Ir pedir às portas, nem pensar! Se o agarrassem, lá tinha que marchar também… Por sorte que era o tempo dos ninhos, e de vez em quando lá trazia uns passaritos ainda mal vestidos ou um coelho tirado da toca. Era uma festa, nesses dias! E duma vez que agarrou uma cobra?! Deu uma caldo melhor que canja de galinha!

Um dia, já pela tardinha, andava ele nestas andanças e a mulher sozinha com os filhos. Os dois mais velhos estavam entretidos a escarafunchar num buraco com uma palha, a ver se agarravam um grilo que não parava de cantar de dia e de noite; a mãe estava sentada à porta, a catar o mais novo. Nisto começou a ouvir uma grande algazarra e passadas de cavalo, lá ao longe. Aflita, só teve tempo de agarrar nos cachopinhos e arrastar-se com eles para dentro da cabana.

Espreitou por uma fisga e viu uma carreira de soldados, em cima de cavalos, a virem na direção da cabana. Ficou sem ação, de tanto medo. A única coisa que foi capaz de fazer foi agarrar-se aos filhos e ajoelhar-se no chão, defronte para o buraco da porta, a rezar à Nossa Senhora. Pensou que tinha chegado a hora dela e a dos seus meninos. Só um milagre da Virgem lhes poderia valer.

Quando chegaram perto da cabana, um dos soldados desamontou-se, pegou na espingarda que trazia ao ombro presa com uma correia, abaixou-se e assomou lá para dentro, de arma apontada. Viu a mulher de joelhos abraçada aos filhos, os olhos esbugalhados, como se dissesse: «Pelas alminhas de quem lá tem, não faça mal a estes inocentes…»; viu também os cachopinhos, quase encarrapatos, todos a tremer; só lhes luziam os olhinhos, de tanta fome e tanto medo. À mulher pareceu que o soldado se aprontava para entrar na cabana. Mal pôde suster um grito. Mas, nisto, viu-o a dar um passo atrás, virar-se para os outros e abanar a cabeça, como que a querer dizer: «Vamos embora que aqui não há nada.» Pôs a arma ao ombro, amontou-se outra vez no cavalo e sumiram-se ao fundo da vereda.

Quando o homem chegou, já noite alta, entrou na cabana e viu a mulher espojada no chão, tolhida com dores; os filhos à roda dela. Nunca se vira metido em tais andanças e nem sabia o que havia de fazer numa ocasião daquelas, mas como não tinha de quem se valer e a natureza não espera, aforrou as mangas e fez o que pôde. Passado um bocado, estava cá fora uma menina. Tão enfezadinha que mais parecia um coelho esfolado, mas berrava que nem um bacorinho.

Puseram-lhe Mariana. Toda a vida lhe chamaram a Mariana da Ribeirinha, por causa do sítio onde tinha nascido. Foi sempre miudita, mas dizem que era rija e esperta que nem um alho. Tinha já muita idade, quando Deus a chamou. Foi a minha bisavó!

M. L. Ferreira

Nota: Esta história foi-me contada por uma vizinha. Pode não ter muito rigor factual, mas mostra-nos um pouco da maneira como as pessoas entendem alguns acontecimentos da nossa História, passados oralmente de geração em geração.

5 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Esta história é muito interessante e aqui deixo algumas achegas:
Em situação de guerra, o povo quase não distinguia o exército nacional do exército inimigo. Embora este fosse naturalmente mais perigoso, o exército amigo pouco mais trazia do que desgraças. Por isso, em 1812, andavam fugidos ao serviço militar dois jovens do Tripeiro: João, filho da viúva Joana Leitão, e Francisco Vaz, filho de José Mendes. Fugiram da incorporação, tal como parece ter fugido o pai da Mariana.
Também durante as Invasões Francesas, uma companhia inglesa passou por C. Branco e requisitou carregadores. Dias depois, começaram a fugir e a regressar à cidade, moídos de pancada, alguns com braços partidos, tal foi o tratamento que os ingleses lhes deram.
Noutro ano, uma companhia inglesa de cavalaria estacionou em C. Branco, durante uma semana. As ceifas tinham acabado de ser feitas, no vale da Líria, e os cereais estavam em molhos, nos campos, em rolheiros (montes). Os ingleses soltaram lá as centenas de cavalos e mulas, que comeram tudo, deixando a cidade sem cereais para o ano novo agrícola que se iniciava. Pouco depois, a fome e a falta de cereais para as sementeiras era tal que a Inglaterra teve de mandar dinheiro para distribuir pelos agricultores da região, cabendo também uma certa quantia ao concelho de S. Vicente da Beira.

José Teodoro Prata disse...

A Ribeirinha é a zona que se situa a noroeste da Partida, mas junto à povoação, nos vales dos ribeiros que correm de Ribeiro da Eiras e do Vale de Figueiras. Foi um deles, ou a ribeira que se forma dos dois, que deu nome à zona, antiga propriedade concelhia.
Por ali passava o caminho em direção aos cumes da Gardunha até à Enxabarda. Lá no alto, o caminho chamava-se Estrada Nova, na época das Invasões Francesas.
A Estrada Nova era a principal via dos exércitos entre Abrantes e Almeida. Por isso a presença de franceses, na Ribeirinha, é mais que provável.

Anônimo disse...

Muito engraçado seria identificar-se o assento de baptismo dessa menina!
Cumprimentos!

José Teodoro Prata disse...

Isso não é difícil, basta a Libãnia conseguir alguns dados, junto da pessoa que lhe contou a história, como nomes dos pais e/ou do marido e/ou data de nascimento e/ou data de óbito e/ou data de nascimento de algum dos filhos dela...
Eu faria o resto.

Ernesto Hipólito disse...

Também gostava de saber quem foram os descendentes desta Mariana.
Zé, vê lá isso!

E.H.