segunda-feira, 6 de julho de 2015

LUGARES AONDE SE TORNA – 5



A noite em que o mundo esteve para acabar
Para a tia Maria da Luz, que não apreciou No tempo dos avós mais velhos, por não falar dos Nicolaus.

Francisco Matias só se decidiu quando viu passar à sua porta o Francisco Nicolau, com o rebanho da família à frente. Eram os últimos do Casal e da Charneca que rumavam à igreja, em horas tão impróprias. Na vila e a toda a roda, nas casas, só os animais. “Se o F’cisco Nicolau também aí vai, é mesmo o fim do mundo. Anda!”, disse o Matias para a mulher, que se tinha levantado da cama ao primeiro alarme, na rua, da proximidade do juízo final. Ela insistira, então, que fossem para a igreja, como os demais, mas ele, ainda atordoado do sono, mandou-a calar.
Na igreja, completamente à cunha quando chegaram, rezava-se o terço. Era assim há mais de uma hora, em sessão contínua, um terço a seguir ao outro. Os primeiros a chegar não faziam ideia de quantos rosários tinham rezado; nem isso os interessava! Como não sabiam, quantos rezavam, porque o faziam – reclamavam a misericórdia divina, neste mundo ou no outro, tão perto afinal um estava do outro. E rezavam, rezavam, “venha a nós o Vosso reino”, “tende piedade de nós”, “seja feita a vossa vontade”, “perdoai as nossas ofensas”; num canto, junto do altar lateral, encostado ao Cabanão, alguns crentes tinham lançado o mote, cantado, da “Mater dolorosa” em latinório beirão, mas desistiram ao verificar que ninguém os seguia; mais que um lamentou não saber os Martírios, considerando a sua utilidade prática em momento de tamanho aperto. Aqui e ali, em exercícios individuais, rezava-se ao santo da devoção de cada um. E invocava-se a Virgem – a Senhora do Carmo, da Orada, de Fátima, da Conceição, enfim, a Virgem Maria, Mãe de Deus em todas as declinações conhecidas daquela gente simples, que a angústia do fim do mundo juntara na igreja matriz de São Vicente.
Acabando o mundo naquela noite improvável de Janeiro de 1938, ao apresentar-se a julgamento no outro mundo, Francisco Nicolau prestaria contas de 60 anos vividos em São Vicente. O pai, José, deixara-lhe o sobrenome, a profissão e, muito provavelmente, a visão do mundo. Era homem dos diabos, dizem, o Francisco – num domingo de Inverno, bêbado, por algum mal-entendido, agarrou na sua Maria em braços (se ela era uma mulherona!), para a deitar à enchente da ribeira do Ramalhoso, em frente do lagar da Casa Conde, onde também era a fábrica da farinha. Estivera à morte em duas ocasiões, já a caldos de galinha e pão trigo; requisitada de urgência a extrema-unção, das duas vezes o padre Tomás foi encontrá-lo já a cavar na horta do lameiro que depois foi do Mesquita. Ninguém lhe tirava da cabeça que é mau sinal quando os padres chegam a tempo.
Na genealogia, averbam a Francisco uma ascendente, Ana Nicolau, que o tribunal da Inquisição perseguiu nos primeiros anos do século XVIII, acusada de ser bruxa – um assunto a investigar. Estando certa a genealogia, ficará mesmo assim por confirmar se foi obra da bruxa não terem dado nenhum padre as quatro vocações de elevado potencial, geradas pela família depois da II Guerra Mundial, ou se, mais plausível, foram as fracas convicções religiosas de Francisco Nicolau, reduzidas a uma prática mínima, na fronteira do censurável, que mataram no ovo as vocações dos netos. Por isso, também por isso, ainda era mais duvidoso que os sinais do fim do mundo o tivessem levado à igreja!
Nessa noite o céu fizera-se todo vermelho quando anoiteceu. E ficou assim, sem mudança, o escuro da noite de Janeiro transformado numa coisa para lá do entendimento daquela gente simples. Subitamente, tinha-se propagado uma explicação: “o céu ficou encarnado porque explodiu a fábrica do fermento!”. E, enquanto uns se davam a averiguações sobre se o fermento do pão é vermelho, outros, igualmente realistas, mantendo a tese da explosão, identificavam “uma fábrica de colorau, para os lados da fronteira”, ou algum efeito da guerra civil, em Espanha. Mas não, nenhuma destas explicações resistiu ao critério da fé, ganhando força a interpretação de se tratar do sinal do fim dos tempos, versão rapidamente adoptada por todos, que o vermelho do céu, entre outras desgraças, evocava as chamas do Inferno!
Na igreja de São Vicente, como noutras, sob o céu vermelho, rezava-se e chorava-se; decerto, já todos se tinham arrependido dos próprios pecados, e muitas mulheres, não fosse faltar-lhes o tempo, tinham-se despedido das mães e dos filhos, os homens, encolhidos no fundo da igreja, alguns, como Francisco Nicolau, ainda indecisos sobre o santo mais adequado a invocar, provavelmente rezavam. Já ninguém discutia se o fim do mundo seria por água ou pelo fogo – todos julgavam saber a resposta.
Um certo movimento, à altura do transepto, acabou por perturbar a tragédia que ali se vivia. Alguém que entrara, preparava-se para falar aos condenados ali reunidos. As vozes e os sinais pedindo silêncio avançaram, como um raio, até ao fundo da matriz. Um homem que todos conheciam falou então a todos aqueles desgraçados: “Não é nada, vão lá para casa. O professor José Miguel esteve a ler num livro, isto não é o fim do mundo – é uma aurora boreal!”

José Miguel Teodoro

4 comentários:

Anônimo disse...

Esta era uma das histórias que ouvia contar à minha avó, arrepiadinhas, eu e ela. De há tanto tempo não a ouvir, já quase a tinha esquecido, mas valeu a pena o tempo de espera, para a recordar assim, desta forma genial.
As teorias que engendraram para explicar o fenómeno, sobretudo a da explosão da fábrica de clorau, são a cereja (ou o figo pingo de mel) em cima do bolo…
Uns artistas, estes Teodoros!

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Julgava que a do clorau tinha sido inventada pelo José Miguel.
Deliciosa e muito bem escrita!

Anônimo disse...

Os contadores são também fazedores das histórias. Ou, como dizia o outro “Quem conta um ponto acrescenta-lhe um ponto…” o que, principalmente no caso presente, só demonstra o talento do autor/contador.

M. L. Ferreira

Margarida Gramunha disse...

que delicia esta narrativa :) também ouvi o meu avô falar deste evento .