terça-feira, 10 de maio de 2016

Lugares aonde se torna - 9

Faltou-nos um projecto desafiante
Já conhecia ambas, a primeira, de ter ouvido falar; a segunda, de uma visita anterior. São sítios onde se vai aos livros, para ver e comprar. Como eu fiz. O Miguel Ferreira levou-me lá, a Hay-on-Wye, num sábado de manhã; a ida a Óbidos, num fim-de-semana, este Inverno, foi prenda da namorada.
Hay-on-Wye (na língua da terra o nome da localidade é muito mais complicado, mas aqui não vale a pena entrar em pormenores) é na fronteira entre o País de Gales e a Inglaterra. Chega-se lá de carro, atravessando campos de carneiros a pastar; também há cavalos. A vontade de empreender a viagem começara numa anterior estada na capital do Reino Unido, que incluiu deambulações pelos alfarrabistas de Charing Cross Road e a frequência de uma feira de profissionais livreiros na cave de um hotel, na Russel Square, ao lado do Museu Britânico. Ali comprei uma biografia de Dom João de Castro, em língua portuguesa, escrita por Jacinto Freire de Andrade, uma bonita edição in octavo da Typographia Rolandiana, 1786. Nunca tinha pago um valor tão alto por um livro, 75 libras, e durante algum tempo duvidei que tivesse feito uma boa compra; percebi que tinha feito bem quando li, bastante mais tarde Rubens Barbosa de Moraes: «nunca se arrependa por não ter comprado…». Enquanto me aliviava daquela verba, o livreiro ficou mais familiar – foi ele quem sugeriu que colocasse Hay na agenda: «a cidade dos livros, não conheces? Vem gente de todo o mundo, bibliófilos e curiosos. Tens de ir lá!»
Estava frio, na ida a Hay-on-Wye, alguma neblina; enquanto por lá andámos, uma cacimba desagradável estabilizou-nos a temperatura corporal em níveis para o baixo. Um tempo de excepção foi o que tivemos – bom tempo, quero dizer, que o mais comum, lá, é chuva a sério e mais frio. Os locais pareceram-me deslocados para tais geografias: nós perfeitamente ambientados, roupinha quente, um impermeável, eles de roupa ligeira, muitos em t-shirt de meia manga. Com aquelas temperaturas, em tais preparos?! Duvidei que cheguem a velhos.  
Esta história de Hay-on-Wye resultou do voluntarismo de Richard Booth, ao declarar a independência de Hay, proclamando-se rei do lugar, nomeando o seu cavalo como primeiro-ministro. Estava-se no “dia das mentiras”, 1 de Abril, em 1977, o ano da fundação do reino dos livros. A ideia de base parece ter sido a criação, a nível local, de uma indústria de turismo centrada no comércio do livro, que Sua Majestade projectava como remédio para a continuada decadência da localidade, atolada na inércia, e sem motores de desenvolvimento económico. O próprio rei Ricardo Coração de Livro (Richard Booth) abriu a sua primeira livraria em 1961, ainda lá está, em Hay. O livro em segunda mão é a alma de Hay-on-Wye, numa filosofia de que todo o livro é valioso e para cada livro existe um cliente. Ao todo, são uns 25 pequenos negócios de venda de livros, a que se juntaram mais recentemente lojas de outros tipos de artigos; uma velha fábrica, uma capela e mesmo o castelo são locais onde se vendem alfarrábios e outros manuseados, vulgaridades e raridades, a bons preços. Há-as especializadas (infantil/juvenil, viagens, comics, crime e mistério, etc.) e as generalistas; e também vendas ao ar livre, como vem nas fotografias do lugar. De todas, preferi a Addyman Annexe e a (não podia ser outra) Richard Booth, que se ufana de ser a maior loja, em todo o mundo, de livros em segunda mão. Trouxe de lá um Humours of History, verdadeiro manual de interpretação humorística de 160 episódios da História de Inglaterra – a colheita possível, que nas primeiras visitas, se me deslumbro, a compra me é sempre penosa, pelo muito que tenho de rejeitar. De todo o modo, um dia de papinho cheio.
A Óbidos era uso ir-se pela ginja, o passeio na muralha, a paisagem envolvente e para lhe percorrer as ruas; os mais afortunados ficavam de um dia para o outro. Há uns anos, conheço eu quem fosse lá ao Festival do Chocolate, passando meio dia a tentar estacionar, para sete minutos de degustação do santo cacau tratado com competência e imaginação – a quê mais podia aspirar um justo?
O homem dos livros em Óbidos foi – é – um senhor chamado José Pinho. Tinha fundado a Ler Devagar, um espaço livreiro que se dá a frequentar em Alcântara, numas antigas instalações industriais, que agora levam o nome de LX Factory. Em Óbidos, o projecto (já completo?) é de 12 livrarias, incluindo duas infantis. Querendo, pode-se conferir a filosofia do conceito, numa entrevista de Pinho, na revista Ler, de Setembro de 2013, e a sua aplicação, in loco, em Óbidos.
Desfrutei, especialmente, de três livrarias de Óbidos: primeira, a Santiago, instalada numa antiga igreja, desactivada, generalista, cheia de luz e de livros, um prodígio de design interior ao serviço da nova função, operada (a livraria de Óbidos) pela editora/livraria Letra Livre (conhecem, ali na calçada do Combro, um pouco abaixo da Liga dos Amigos de São Vicente da Beira, que ainda lá está, na Marechal Saldanha); segunda, a Livraria alfarrabista generalista da Adega, no Espaço Ó, à entrada da localidade, e, terceira, a Livraria do Mercado, aquela onde mais me demorei e enfeirei com critério, Urbano, Régio, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, coisas velhas, um de cada. Outra surpresa, da oferta estalajadeira da Vila Literária foi a estadia, pernoita incluída, literalmente no meio de livros – assim é, agora, o antigo convento (concluído, afinal, fora de tempo, em 1830, tempo de secularização, pelo que não chegou a receber religiosas), que virou hotel literário, as paredes forradas de estantes, livros nos espaços de estar, de comer, de dormir. Também vendem livros – foi de lá que a namorada trouxe uma velha edição inglesa de Mulherzinhas, da avó Louisa May Alcott.
Tivessem Booth ou Pinho, num momento de alucinação, agulhado para a N352 e a vila dos livros nacional podia ter nascido ao quilómetro 16 da estrada que liga Castelejo a Escalos de Baixo! Que nós (quero dizer, na nossa modesta apreciação) para fazer uma coisa assim, em São Vicente, nem precisávamos de gente que tal; era querermos! Mas, aí, só se o projecto valesse a pena – tivesse alguma vez havido um projecto desse género, à altura das nossas ambições, e haviam de ver, minha gente, uma verdadeira vila dos livros, a sério e em grande! Com a enorme vantagem, na versão indígena, de não termos de aturar o mau feitio do José Pinho, nem, cruzes!, de ser governados pelo cavalo do galês. Valeu-nos a Providência, como sempre.


Sebastião Baldaque

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...


Belmonte fez há anos um projeto semelhante. Criou um conjunto de museus (água - do Zêzere), azeite - num lagar restaurado, religioso - capela de São Tiago, descobrimentos - Pedro Álvares Cabral, judaico...), formou guias e é ver milhares de alunos e turistas adultos a rumar anualmente a Belmonte.
Não é desculpa, mas eles são um mini concelho que beneficia de verbas para projetos que uma freguesia sujeita ao beija mão não pode nem sonhar.
Mas, por outro lado, temos Penha Garcia, onde estive com alunos, recentemente. Dizia-me há anos o professor Américo que, em Penha Garcia, ele não se dava com o presidente da Junta, de opiniões e partidos diferentes, mas quando tocava ao desenvolvimento de Penha Garcia estavam sempre unidos..
A conversa foi a propósito de São Vicente.

Anônimo disse...

Aqui está uma boa deixa para uma questão em que tenho pensado. Descobri há pouco tempo que a sala onde fiz a terceira e quarta classes está agora forrada de estantes cheias de livros. Não consegui ainda ver a qualidade, mas, dentro da filosofia de que todos os livros são bons e para cada um existe um cliente (leitor), há lá muita leitura.
Há dias olhei e fui logo dar com um autor de quem ainda li muito pouco e gostava de conhecer melhor. Perguntei como é que podia requisitar os livros e disseram-me que só tinha que pegar neles e avisar lá em baixo na Junta. Não me pareceu mal esta informalidade, mas depois pensei se seria apenas informalidade ou falta de organização e interesse.
Talvez ainda vamos a tempo de fazer qualquer coisa; assim haja ideias, mesmo que menos ambiciosas que as encontradas pelo Sebastião Baldaque nas suas viagens…

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Esta do Sebastião não cansa! Para quem corre por gosto! Cartapácios ensebados em terras de galeses e anglos? Queria-me ver numa! Mas fico-me por aqui, por terras de lusos! Para já! Que ainda não deixei de lado a maluqueira! De pôr pés por cima desses oceanos e dar um pincho aonde batem outras marés e sopram outras brisas! À procura do passado ou do futuro!
Outra certeira é a do rol. Sempre o rol. Dos nossos sonhos! Os nossos sonhos...
Capital do alfarrábio? Uma aposta no amanhã. O turismo e a gastronomia.
Mas o tempo é erosão! E esta manhã, chove! A água é clara, mas o dia é cinzento! Escuro! Estou nostálgico, sorumbático! Quase pessimista! Porque o passado nunca nos trouxe boas promessas... Mas fica a fúlvida chama da lembrança!
Abraços.
ZB