É madrugada, o sol ainda não nasceu e saímos de casa.
Temos uma longa viagem pela frente até São Vicente da Beira para umas merecidas
férias em família. Ele leva a filha ao colo que ainda só conta um aninho, mais
a mala de viagem com roupa para quatro. Eu levo o bebé, com três meses, na
alcofinha. Vai pela primeira vez conhecer as terras dos avós.
Após uma hora de autocarro, chegamos à estação de Sta.
Apolónia. O tempo urgia, grande azáfama de gente com a sua bagagem passando
apressadamente de um lado para o outro ao som do ruído dos comboios.
Diz-me ele:
- Vai andando para o comboio que eu vou comprar os
bilhetes.
Eu assim fiz. Arranjei um lugar confortável e pus-me à
janela à espera, ansiosa que ele chegasse com a nossa menina que parecia, como
me disseram na maternidade, um “repolhinho”.
Passado um pouco, ele chega ao cais esbaforido. O
comboio está prestes a partir. Olho pela janela e começo a acenar: “Estou
aqui!”
Ele olha com algum espanto e exclama:
- Não vês que essa carruagem é de primeira classe?
Passa para a carruagem ao lado!
“Primeira classe?”, pensei, admirada. Eu, que nunca
concordei com estas divisões entre classes, não tinha sequer reparado e entrei
na primeira porta que me pareceu melhor.
Assim, vendo-o a reclamar, decidi “É melhor ir para ao
pé dele…”
Peguei na alcofa e lá fui apressada. Como as portas
das carruagens eram ao lado uma da outra, eu desço da minha e num saltinho me
ponho na outra, pensei.
Desci para o cais e neste preciso instante senti o
comboio a começar a andar, mas esperei um momento… “Não é seguro com o bebé
subir assim… o maquinista certamente vai ver que eu estou para subir e vai
esperar…”. Hesitei, mas o comboio começou a andar cada vez mais rápido… fiquei
atónita a ver as carruagens a deslizarem à minha frente. “Não pode ser! Isto
não me está a acontecer!”
Mas estava, e lá fiquei eu no cais da estação, vazio e
imenso, a olhar para o comboio cada vez mais pequenino a desaparecer ao longe,
levando os meus mais que tudo… e eu só, com o meu bebé.
Caí em mim e pensei em voltar para casa. Mas não tinha
um centavo, ele é que levava a carteira (eu não precisava). Tinha que pedir
ajuda, não havia outra hipótese.
No comboio, ele tinha instalado a filha
confortavelmente no assento e arrumado a mala. Decidiu então, dada a demora, ir
ter comigo e lá passou pela ligação das carruagens. Quando chegou ao local onde
eu supostamente deveria estar e não nos viu, perguntou às pessoas que ali se
encontravam:
- Não viram aqui uma senhora com um bebé?
Ao que estas lhe responderam:
- Vimos sim, mas a sua mulher ficou na estação…
- O quê?
- Sim, ela saiu do comboio e ficou na estação. –
confirmaram os passageiros. Ele não queria acreditar!
Dirigi-me às bilheteiras onde estava um
funcionário e começo a contar-lhe a minha história: que o meu marido seguiu no
comboio com a minha filha e eu fiquei em terra com o bebé e não tenho dinheiro
para voltar para casa ou comprar outro bilhete. As lágrimas começaram a
correr-me pela cara e a soluçar, completamente desesperada.
O senhor sorriu e disse-me para me acalmar que tudo se
iria resolver. Fez um telefonema e depois disse:
- Você irá no comboio regional que para em todas as
estações, até Santarém, onde estará o seu marido à sua espera.
Ouvindo isto, o meu coração sossegou. Instalei-me mais
tarde no comboio onde o senhor me levou, sentei-me e amamentei o bebé que
depois destas horas todas já reclamava e com razão.
Comentei a minha história com os outros passageiros
que estranharam ver uma mãe tão jovem assim sozinha com um bebé. Uma senhora ao
lado perguntou:
- Então e a senhora não podia ir para casa?
Expliquei-lhe que não, pois ele é que levava os
bilhetes e o dinheiro.
- Ora veja lá vossemecê! – respondeu muito admirada.
Não sei o que ela terá pensado…
Um senhor insistiu em dar-me dinheiro “para
desenrascar”, mas disse-lhe que não era preciso, pois o meu marido estaria à
minha espera na estação de Santarém.
Ao fim de um longo tempo de viajem, chegámos a Santarém.
Senti-me aliviada, mas com algum receio… Imagino-o zangado e ainda levo um
raspanete.
Aproximo-me da porta e lá vem ele com a menina e a
mala. Ao ver-me, sorri e diz-me:
-Até que em fim, mulher, que já te encontrei!
E lá seguimos viagem até ao Entroncamento, onde esperámos
mais algum tempo pelo comboio seguinte, numa sala cheia de gente e com muito calor. Chegámos só à tardinha a Castelo Branco. Depois ainda fizemos mais
uma longa viagem até São Vicente da Beira.
Era assim naquele tempo, em que ainda nem todos tinham
carro e não havia telemóveis, que se viviam as histórias que ficam para mais
tarde contar e recordar.
3 comentários:
Quando passamos do nosso pequeno mundo para o grande, o que nos choca e cria situações destas é a impessoalidade. Como é que um comboio deixa uma mãe com um bebé na estação? Nem acreditamos e ficamos à espera. E depois de vários entalões, uns mais dolorosos que outros, lá entramos na nova realidade.
E a vida sem carros nem telemóveis? Parece que foi há tanto tempo...
Eram mesmo uma verdadeira aventura, as viagens de ida e volta de Lisboa à terra; e ainda lá não vai assim tanto tempo. Apesar disso eram uma alegria, e não eram as dificuldades que nos impediam de virmos pelo menos três vezes por ano (Natal, Senhora da Orada e Festas de Verão). Agora, com estradas melhores e automóveis mais confortáveis, tudo é mais fácil e, se não fossem os custos com combustíveis e portagens, muita gente viria todos os fins de semana.
Deve acontecer o mesmo com os nossos conterrâneos que vivem no estrangeiro. Este ano voltaram novamente em grande número, para alegria de todos nós. É muito bom vermos as nossas ruas e a Praça cheias de gente, pelo menos em agosto. Oxalá todos tenham tido um bom regresso ao trabalho e que para o ano cá estejam outra vez!
M. L. Ferreira
Albertina!
Que história incrível, que emoção...e o salto quântico que demos em 30
anos. Saltamos do séc. xix para o xxi. Parece que foi só o i que saltou do meio dos XX para a frente, mas foi muito mais que isso.
Acho que uma das virtudes "dos enxidros" é os testemunhos na primeira pessoa de deixa para o futuro.
FB
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