quarta-feira, 26 de abril de 2017

Liberdade

As manas viviam em Lisboa, tinham vivido a revolução do 25 de Abril e vinham cheias de ideias revolucionárias. O povo enfim livre, dava liberdade ao pensamento e eufórico, enchia as paredes de frases revolucionárias. Elas tinham vindo às festas do Verão.
Nessa altura, as casas eram caiadas e viviam-se as festas com tudo a que se tinha direito: as cerimónias religiosas, a música todo o dia e os concertos de bandas ou artistas, na praça à noite, as barraquinhas cheias de novidades e a verbena com muito artigo para leiloar, o fogo de artifício, os bombos e a alvorada bem forte, na madrugada no dia do Senhor Santo Cristo.
Durante os dias da festa, havia rancho melhorado: matava-se o borrego ou o cabrito que tinha sido criado para esse fim. As famílias recebiam os entes queridos que viviam fora e confraternizava-se.
Também na Tapada, a casa foi caiada de alto abaixo. Sobrou alguma cal. Então as manas lembraram-se de imitar os revolucionários e toca de começar a escrever na parede de trás da casa, que dava para a quelha e na parte lateral, ainda rebocada a cimento tais como:
“Independência da Tapada D. Úrsula”, “ Viva o 25 de Abril”, “PCP” com a foice e o martelo, “Spínola Traidor” e “Nacionalização dos Figos do Padre Velho” - havia e ainda existe uma figueira que dá figos brancos pingo de mel que estava num terreno que era do Padre Tomás, mesmo a cair para a quelha. Os figos eram sempre comidos por nós e por quem passava. Mas, naquele ano, alguém se lembrou de comprar os figos, para poder ter exclusividade na apanha dos mesmos, o que nos causou um grande constrangimento e revolta.
Quando o nosso pai chegou a casa, ficou abismado e arreliado com o nosso atrevimento. Um homem honrado, assim como a família, a ser comentado pelas bocas dos vizinhos? O que é que as pessoas haviam de pensar de tudo aquilo? Então não esteve com meias medidas. Era preciso apagar tudo ou não haveria festa para ninguém. Ficámos aflitas. Tínhamos de caiar as paredes todas para apagar tudo, mas não havia mais cal. Era sábado à tarde e as lojas já tinham fechado. No domingo, ninguém saiu de casa. Mas na segunda-feira, dia mais rijo das festas, as lojas abriam de manhã. Era preciso ir comprar mais cal e ficou decidido que iria eu. Todo o caminho fui apreensiva. Entrei na loja do sr. Joaquim Boas-Noites e envergonhada pedi a cal, sempre a pensar o que é que o homem havia de achar de andar a caiar num dia santo como aquele.
Mas o sr. Joaquim Boas-Noites, homem solícito e de poucas falas, lá foi buscar a cal sem comentários. Quando cheguei a casa fomos caiar as paredes, mas a cal estava fraca e não ficou um trabalho exemplar, pois ainda se ficou a perceber o que estava escrito por baixo, durante muitos anos e até há bem pouco tempo, agora que a minha irmã já recuperou a casa.

Tina Teodoro

4 comentários:

Anônimo disse...

Tempos de esperança, nessa altura trabalhava na secção de peças da Ford onde se situa hoje o Pingo Doce na cidade de Castelo Branco
De vez em quando "como quem não quer a coisa", aparecia por lá o doutor Vieira, advogado; que entregava um pequeno panfleto; descia para a cave e lia-o com sofreguidão.
Na manhã do vinte e cinco de Abril a rádio fartava-se de repetir:-Aqui movimento da forças armadas...
Grândola Vila Morena... senha combinada para que os militares avançassem sobre Lisboa.
Os presos políticos foram libertados, a censura terminou, liberdade de expressão...
Os rostos das pessoas sorriam, as guerras ultramarinas "onde tantos jovens morreram" terminaram, a educação, a saúde e tantas conquistas tornaram-se reais
Todos os dias temos que lutar pela democracia e pela liberdade; os populismos emergem cada vez mais; temos que ter consciência que a democracia não é um bem que se adquiriu para sempre.
-Viva o vinte e cinco de Abril
J.M.S

Anônimo disse...

Tivemos o privilégio de conhecer, de perto, uma revolução. Poucos o têm! Na altura éramos todos da esquerda mais ou menos anárquica, que é uma espécie de mistura de liberdade com alegria. O que, naqueles tempos, foi ótimo! Era a poesia na rua, como aconteceu no Maio de 68 em França, onde os estudantes reivindicavam paradoxos como este: "Devemos ser razoáveis e exigir o impossível!".
Ora, confirma-se que, de vez em quando, o homem precisa da Utopia. Depois, tudo regressa à normalidade.
Julgo que esta foi a principal revolução da nossa história como povo. Semelhante, talvez, à da I República. Mas mais importante, porque o 25 de abril/74 teve lugar numa época de maior maturidade. A sociedade estava mais bem preparada. O que explica a sua longevidade! O 25 de abril vale também por isso. Não se resumiu a um golpe de Estado mais ou menos militar. De facto, foi assim que começou, mas todo o povo se envolveu e houve condições para o lançamento das bases de uma democracia fundamentada e moderna. Mas como diz o JMS, isto não está adquirido. Os últimos tempos da cena internacional, provam-no.
Bonita história da TT.
Abraços.
ZB

Anônimo disse...

Histórias deliciosas e importantes, a avivar as memórias daquilo que foram as vivências de quase todos nós!
Gostei especialmente da “Nacionalização dos Figos do Padre Velho” (já nem me lembrava de que era assim que lhe chamávamos quando chegou o Padre Branco) e da “Independência da tapada D. Úrsula”Que pena que tivessem que as apagar!
Ainda hoje, quando passo por algum sítio onde ainda restam algumas desta frases revolucionárias, paro e leio com atenção. Algumas lembram acontecimentos e situações que muitas vezes já tinham caído no esquecimento, mas gostamos de recordar.

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Acho que não fui ouvido nem achado no assunto. Que me lembre, aquilo foi mesmo obra só de mulheres. Colaborei depois a caiar a parede, nas partes mais altas.
Foram muito importantes todas as vivências daqueles tempos, para aprenderemos a democracia.
Por motivos meramente político-partidários ou de defesa dos interesses instalados, é costume diabolizar-se(ou endeusar-se) o PREC, mas ele foi simplesmente fundamental para a construção da nossa sociedade democrática. Porque foi o povo, na sua vivência diária, tantas vezes com erros e contradições, avanços e recuos, que foi escolhendo e definindo o caminho para o futuro em que vivemos agora.
Sei que tenho uma ideia muito lata do PREC, mas penso que o seu sentido é realmente muito lato, não se resumindo às manifestações, greves e ocupações com que normalmente se limita.
E por isso nele cabem plenamente as pinchagens das minhas irmãs e o castigo do meu pai.