O entrudo pregou uma valente partida aos foliões, a
neve caiu durante uma boa parte do dia, a contra dança não pode actuar, só os
mais afoitos se aventuravam nas ruas por culpa da neve. A paisagem imaculada
era um regalo para os cachopos, de vez em quando ouvia-se um som estridente era
a pernada de uma oliveira, de um castanheiro…não aguentavam o peso e partiam.
Chuvosos e frios foram os quarenta dias da quaresma.
O entrudo estava borralheiro, assim como o natal deve
ser passado em casa, o entrudo ao borralho para que a páscoa possa ser vivida
na praça. Não só na praça, mas nas ruas acompanhando o compasso. O povo cantava,
o tilintar da campainha anunciava o local onde andava o senhor vigário a
distribuir as boas festas aos paroquianos. A imagem florida do crucificado era
transportada pelo sacristão; à porta, o dono da casa esperava o Senhor.
- A paz esteja nesta casa; aleluia, aleluia… com o
aspersório aspergia os presentes e seguia em direcção a outra morada.
A procissão dos terceiros, não se realizou, culpa do
tempo; a água caia a cântaros, a ribeira ia de mar a monte cobria as
passadouras, os vicentinos que moravam na outra margem tinham que dar a volta
pela estrada, era impossível passar, um morador mais afoito aventurou-se e à
medida que saltava de uma para a outra …dizia baixinho.
- Deus é bom, mas o diabo também não é mau; Deus é
bom… quando se apanhou no outro lado, mandou o diabo para as malvas.
Não era uma ribeira, mas um rio, a água invadiu os
lagares, muitas paredes caíram, “muitas borregas”; camponeses suplicavam ao
Senhor Santo Cristo para que a chuva parasse, não estava capaz de se fazer
fosse o que fosse nas terras, entrar nelas era uma aventura.
Um campónio tentou atravessar um leirão por pouco não ia
sendo engolido pela terra lamacenta, a sorte foi um pastor que andava perto
ouvir gritos aflitivos.
- Acudam, socorro…
Correu em direção ao chamamento, quando chegou ao
local, no meio do leirão enterrado até à cintura José do cabeço esbracejava,
imediatamente lhe atirou a corda que sempre o acompanhava para levar uns
chamiços à noite para casa; José agarrou-a, salvando-se.
No domingo seguinte ajoelhado em frente ao altar do
Senhor Santo Cristo com velas acesas rezou, agradeceu.
Como a terra estava mole muitos pinheiros caiam, as
sementeiras primaveris não se podiam fazer, os animais não saiam da corte, as
tabernas estavam cheias de fregueses; uns jogavam às cartas, outros ao nôcho,
ao burro, o vinho escorria goelas abaixo.
- Bota aí dois copos, quero daquele pipo além.
- Aquele não; ainda não o baptizei…
Fregueses bebiam, falaçavam, jogavam, de vez em quando;
culpa dos vapores do etílico, alguns desatavam num berreiro tremendo, nascia
uma escaramuça, agarravam-se, esbofeteavam-se, quando chegava a guarda tudo
estava normal, os desentendidos bebiam e conversavam como se nada se tivesse
passado.
A chuva caia, as ruas pareciam ribeiros, o tempo não
melhorava, antes pelo contrário.
Deu tréguas a chuva no domingo de Ramos. O sol rompeu
as espessas nuvens a tarde compôs-se. À medida que se aproximavam as cerimónias
da semana santa o tempo ia melhorando, a lua quase cheia iluminava a noite.
Iniciavam-se quarta-feira as cerimónias da semana
maior.
A seguir ao domingo de Ramos em que Cristo foi aclamado
pelas pessoas, as autoridades do tribunal judaico talvez por ciúme, inveja…
reuniram para combinarem a morte de Cristo.
Uma mulher chamada Maria comprou um perfume muito caro
e com ele perfumou os pés de Jesus. Judas, era o tesoureiro da comunidade dos
apóstolos, não achou graça àquele gesto.
Nada satisfeito com a acção de Maria, abandonou os
companheiros encaminhando-se para o Sinédrio e combinou com as autoridades que
entregaria o Mestre em troca de dinheiro.
Era
a semana maior dos cristãos; as cerimónias começavam quarta-feira com a
realização das trevas.
Num local destacado encontra-se um grande tocheiro
triangular “ver no coro da igreja da misericórdia”; com velas acesas, à medida
que os senhores padres vão recitando salmos, sacristão; vai apagando uma a umas
todas as velas até o templo ficar completamente às escuras; as trevas cobriram
a terra; do coro surge um grande barulho, recorda o momento em que morreu
Cristo, o som barulhento continua, faz lembrar o terramoto que se seguiu à
morte de Jesus. Na quinta-feira santa, finda a procissão a praça e as ruas
enchem-se de gente.
À semelhança dos anos passados paroquianos de todos os
lugares vinham à vila para fazerem a desobriga e participarem nas cerimónias
religiosas.
Findo
o sermão do Senhor da Cana Verde os fiéis deixavam a igreja e cada um seguia
para suas casas, seus lugares.
Sacristão fechou as portas, apagou as velas e saiu.
No coro um cachopito dormia na paz dos anjos; mal
abriu os olhos vendo-se no meio da escuridão começou num berreiro aflitivo,
subiu as escadas da torre a tactear, gritava, fungava…
A aurora aproximava-se; um ganhão ao atravessar a
praça ouvindo gemidos teve medo e fugiu, aconteceu o mesmo com outras pessoas.
- É uma alma do outro mundo, diziam. A criança
continuava a chorar e a fungar. Só pela madrugada quando o responsável pela
manutenção do relógio subiu as escadas da torre para lhe dar corda, o resgatou.
A manhã de sexta-feira santa estava criadora; depois
da tempestade, vem a bonança. António juntamente com alguns ajudantes
dirigiu-se ao calvário para colocar o Cristo na cruz, feito o trabalho passam
dois garotos que moravam no Casal param, fixam os olhos na imagem, António com
ar doutoral e sério voltando-se para um deles disse:
- Ó meu malandro; foste tu que mataste o Nosso Senhor!
- Não fui eu não senhor, foi o meu primo.
Desatou num berreiro correndo juntamente com o primo
em direcção ao Casal. António já faleceu, Mata Nosso Senhor ainda está entre
nós graças a Deus. A partir daí começou a chamar padrinho ao meu pai.
O martelo sineiro batia duas badaladas, o povo
acotovelava-se para participar na procissão do encontro, Senhor dos Passos tinha
acabado de sair da Igreja da Misericórdia, a banda toca os primeiros acordes da
paixão, os mesários cada um com sua vara orientam a procissão, janelas e
varandas estão cheias de gente querendo ver o préstito.
Na Fonte Velha padre Leal com seu vozeirão forte toca
o coração das mães que tinham seus filhos no ultramar, lágrimas, choro…A
Senhora do Pranto acompanhada pelo São João saem da Rua das Laranjeiras e
juntam-se ao Senhor dos Passos; Verónica limpa a cara ensanguentada mostrando
aos fiéis o rosto de Cristo que ficou marcado no pano, as três imagens sobem a
Rua da Costa em direcção ao calvário, Senhor da Paixão entra sub-repticiamente
na capela de Santo António, os andores da Senhora das Dores e do São João sobem
as escadas do monte Gólgota atrás do pano preto são colocadas, a banda termina
a função, padre Leal dá início ao sermão do calvário.
- Meus irmãos; Cristo acaba de percorrer as ruas da
vossa terra, neste momento chegou ao monte calvário, passou uma noite terrível,
no jardim das oliveiras até os apóstolos O abandonaram, Judas traiu-O, Pedro renegou-O.
Judas
manifestou o seu arrependimento enforcando-se numa figueira; Pedro puxou da espada
e cortou uma orelha a Malco para defender o Mestre; Jesus repreendeu-o e voltou
a colocá-la. Antes que o galo cante três vezes tu me trairás.
- Mestre; nunca. O galo cantou, Pedro arrependeu-se e
chorou amargamente.
Pilatos lavou as mãos, não encontrava nada que pudesse
condenar aquele inocente.
A multidão gritava:- cruxifiquem-no, cruxifiquem-no…
- Eis nosso Salvador.
- Pai, perdoai-Lhes porque não sabem o que fazem e
expira.
O Céu tolda-se de nuvens escuras, trovões fortes…o
bombo da banda troa fortemente imitando o ribombar da trovoada, as pessoas
respeitosamente ajoelham.
Sentado no muro do quintal da Ordem Terceira um garoto
do Casal da Serra, “era a primeira vez que assistia à cerimónia” desata a
chorar saiu a correr cheio de medo, a mãe coitada muito aflita foi atrás dele e
lá o acalmou.
Há cerca de cinco ou seis anos no mesmo local a minha
neta; sete aninhos voltando-se para a avó.
-Avó, aquilo é verdadeiro ou é a fingir?…
Olhem; sabem que mais! Muitas graças a Deus e poucas
graças com Deus.
J.M.S
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