sexta-feira, 21 de agosto de 2020

No tempo da outra senhora

Encontrei agora, este blogue (https://estatuadesal.com), de onde tirei o artigo que se segue e quem vem na linha da penúltima publicação (da Libânia). Não me lembro de o ter lido na altura e publico-o aqui, pois é muito rico.

TÃO FELIZES QUE NÓS ÉRAMOS

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 18/03/2017)

Autor

                              Clara Ferreira Alves

Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós

Anda por aí gente com saudades da velha portugalidade. Saudades do nacionalismo, da fronteira, da ditadura, da guerra, da PIDE, de Caxias e do Tarrafal, das cheias do Tejo e do Douro, da tuberculose infantil, das mulheres mortas no parto, dos soldados com madrinhas de guerra, da guerra com padrinhos políticos, dos caramelos espanhóis, do telefone e da televisão como privilégio, do serviço militar obrigatório, do queres fiado toma, dos denunciantes e informadores e, claro, dessa relíquia estimada que é um aparelho de segurança.

Eu não ponho flores neste cemitério.

Nesse Portugal toda a gente era pobre com exceção de uma ínfima parte da população, os ricos. No meio havia meia dúzia de burgueses esclarecidos, exilados ou educados no estrangeiro, alguns com apelidos que os protegiam, e havia uma classe indistinta constituída por remediados. Uma pequena burguesia sem poder aquisitivo nem filiação ideológica a rasar o que hoje chamamos linha de pobreza. Neste filme a preto e branco, pintado de cinzento para dar cor, podia observar-se o mundo português continental a partir de uma rua. O resto do mundo não existia, estávamos orgulhosamente sós. Numa rua de cidade havia uma mercearia e uma taberna. Às vezes, uma carvoaria ou uma capelista. A mercearia vendia açúcar e farinha fiados. E o bacalhau. Os clientes pagavam os géneros a prestações e quando recebiam o ordenado. Bifes, peixe fino e fruta eram um luxo. A fruta vinha da província, onde camponeses de pouca terra praticavam uma agricultura de subsistência e matavam um porco uma vez por ano. Batatas, peras, maçãs, figos na estação, uvas na vindima, ameixas e de vez em quando uns preciosos pêssegos. As frutas tropicais só existiam nas mercearias de luxo da Baixa. O ananás vinha dos Açores no Natal e era partido em fatias fininhas para render e encharcado em açúcar e vinho do Porto para render mais. Como não havia educação alimentar e a maioria do povo era analfabeta ou semianalfabeta, comia-se açúcar por tudo e por nada e, nas aldeias, para sossegar as crianças que choravam, dava-se uma chucha embebida em açúcar e vinho. A criança crescia com uma bola de trapos por brinquedo, e com dentes cariados e meia anã por falta de proteínas e de vitaminas. Tinha grande probabilidade de morrer na infância, de uma doença sem vacina ou de um acidente por ignorância e falta de vigilância, como beber lixívia. As mães contavam os filhos vivos e os mortos, era normal. Tive dez e morreram-me cinco. A altura média do homem lusitano andava pelo metro e sessenta nos dias bons. Havia raquitismo e poliomielite e o povo morria cedo e sem assistência médica. Na aldeia, um João Semana fazia o favor de ver os doentes pobres sem cobrar, por bom coração.

Amortalhado a negro, o povo era bruto e brutal. Os homens embebedavam-se com facilidade e batiam nas mulheres, as mulheres não tinham direitos e vingavam-se com crimes que apareciam nos jornais com o título Mulher Mata Marido com Veneno de Ratos. A violação era comum, dentro e fora do casamento, o patrão tinha direito de pernada, e no campo, tão idealizado, pais e tios ou irmãos mais velhos violavam as filhas, sobrinhas e irmãs. Era assim como um direito constitucional. Havia filhos bastardos com pais anónimos e mães abandonadas que se convertiam em putas. As filhas excedentárias eram mandadas servir nas cidades. Os filhos estudiosos eram mandados para o seminário. Este sistema de escravatura implicava o apartheid. Os criados nunca dirigiam a palavra aos senhores e viviam pelas traseiras. O trabalho infantil era quase obrigatório porque não havia escolaridade obrigatória. As mulheres não frequentavam a universidade e eram entregues pelos pais aos novos proprietários, os maridos. Não podiam ter passaporte nem sair do país sem autorização do homem. A grande viagem do mancebo era para África, nos paquetes da guerra colonial. Aí combatiam por um império desconhecido. A grande viagem da família remediada ao estrangeiro era a Badajoz, a comprar caramelos e castanholas. A fronteira demorava horas a ser cruzada, era preciso desdobrar um milhão de autorizações, era-se maltratado pelos guardas e o suborno era prática comum. De vez em quando, um grande carro passava, de um potentado veloz que não parecia sujeitar-se à burocracia do regime que instituíra uma teoria da exceção para os seus acólitos. O suborno e a cunha dominavam o mercado laboral, onde não vigorava a concorrência e onde o corporativismo e o capitalismo rentista imperavam. Salazar dispensava favores a quem o servia. Não havia liberdade de expressão e o lápis da censura aplicava-se a riscar escritores, jornalistas, artistas e afins. Os devaneios políticos eram punidos com perseguição e prisão. Havia presos políticos, exilados e clandestinos. O serviço militar era obrigatório para todos os rapazes e se saíssem de Portugal depois dos quinze anos aqui teriam de voltar para apanhar o barco da soldadesca. A fé era a única coisa que o povo tinha e se lhe tirassem a religião tinha nada. Deus era a esperança numa vida melhor. Depois da morte, evidentemente.

 

José Teodoro Prata

3 comentários:

José Barroso disse...

Um verdadeiro desfilar de cenas dramáticas do Portugal antes de 25abr74. Como diz a esclarecida autora, ainda há quem tenha saudades desta portugalidade!
Eu acho que a natureza do homem é de uma grande inconstância. Já se sabe que não há sociedades perfeitas. Seja com o partido A, B ou C, sempre existirá corrupção e vigarice, sempre haverá mentiras e fraudes. Penso que temos que acreditar na democracia política e que as instituições realmente funcionam. Nomeadamente, as que têm a competência para velarem pelos valores democráticos, concretamente, os tribunais. Estes devem usar, com firmeza, os poderes que têm para castigar os corruptos, os vigaristas e quem pratica fraudes ou outros crimes. Neste momento, a descrença dos cidadãos nas instituições, está a levar ao extremar de posições na socoiedade portuguesa (e no mundo), com o aparecimento de populismos que estão já a chegar ao poder. E sabe-se o que a História nos tem ensinado quando aparecem pseudo-salvadores da pátria!

M. L. Ferreira disse...

A parte mais chocante deste elencado de misérias que caracterizou a sociedade portuguesa até há bem pouco tempo (alguns aspetos teimam em persistir...), vem no final do artigo. A conivência da Igreja, que, seguindo a mensagem de Cristo, devia proteger os mais fracos, é de todo imperdoável. Não será por acaso que tanta gente deixou de acreditar.

José Barroso disse...

A Igreja Católica sempre fez isso; isto é, esteve sempre ao lado dos poderosos. Bem vistas as coisas, eu até penso que, em toda a história da Igreja, aconteceu que persistiram sempre duas igrejas.
Havia uma oficial e outra popular; fenómeno que eu nunca consegui entender. É por causa da segunda que eu me mantenho fiel a muitos dos princípios católicos. Outrossim: as teses doutrinárias de Lutero não são melhores que as da Igreja Romana. Há ainda que descontar que a Igreja temporal é feita por homens e todo o homem é falível. Mas a seguir a Lutero houve muitos outros doutrinadores que dizem coisas muito diferentes...
É um facto que existem palácios, riquezas e dignitários da Igreja que estão muito longe dos pobres. Mas sempre houve homens como o Padre António Vieira que defendia os índios (igreja popular) e que, apesar de ser jesuíta, teve problemas com a Inquisição (igreja oficial). Mas houve muitos outros, como Xavier, Anchieta, Nóbrega e uma multidão de missionários; há Francisco de Assis ou, mais recentemente, Teresa de Calcutá, etc.
Já a dogmática (mais ou menos ascética) tem que existir em face da lógica dos princípios. Sem ela nenhuma religião subsiste. Pois deriva da impossibilidade de o homem conhecer a realidade. São declaradas verdades sem que alguma vez elas se possam comprovar. Os crentes, querendo pertencer a certa religião, apenas têm que as aceitar. E isso é assim porque a sua adesão é feita não apenas por via racional, mas também pela fé. Tudo isto mudou muito. A própria Igeja, inversamente a outros tempos, declara no Código de Direito Can. 748, § segundo: "A ninguém é licito obrigar os homens a aderir à doutrina católica contra a sua consciência".
Compreende-se melhor um dogma com uma explicação prática: por exemplo, a ressureição de Lázaro, contada no Evangelho, só é compreendida com o dogma da "natureza divina de Jesus".
Em relação a outros dogmas que conflituam com o vida do homem, pode dizer-se que a doutrina católica, em geral, tem-se humanizado nos últimos tempos. Mas também é verdade que a Igreja oficial, em alguns aspetos, tem ido muitas vezes a reboque das orientações civis, sobretudo depois da Revolução Francesa. O tema é complexo e muito longo...
Abraços, hã!
JB