terça-feira, 11 de maio de 2021

A casa de granito

 I

Eu e o meu amigo tínhamos acabado de nascer. Ele residia na casa de granito, mesmo em frente da minha. Surgimos no seio das nossas famílias, ali, no Cimo de Vila, como, de forma aleatória, a vida desponta e acontece em qualquer lugar. Ainda usávamos os bibes que as nossas mães nos tinham talhado e cosido à mão. Éramos da mesma idade e isso fazia com que sentíssemos uma afinidade especial que se manifestava nos gostos pelas mesmas brincadeiras: construíamos casinhas com pedras, pedaços de vidro e terra amassada; apanhávamos abelhas, das amarelas, com uma mosca espetada na ponta de uma caruma; guardávamos as vacas (duas pinhas bravas, abertas), atadas nas pontas de um fino cordel de sisal. Por sermos os mais novos da rua, as jovens vizinhas, quase casadoiras, pegavam-nos e passavam-nos de mão em mão esmagando-nos a cara com beijos.

Um dia, os pais do meu amigo foram viver para a cidade. Ele também foi. Regressava de vez em quando para visitar os avós e nós víamo-nos. Um dia morreu! Dizem que foi um sopro no coração. E, assim, perdi, para sempre, o meu primeiro amigo.

A vida continuou porque o sol todos os dias aparecia nas terras de nascente, levantando-se entre os pinheiros bravos, onde o cuco cantava nas manhãs quentes, para os lados do Louriçal. Não sei quantos anos a casa de granito, ainda esteve fechada. Lembro-me apenas de a ver novamente ocupada pelo ti’ Joaquim Ferreiro e pela mulher, a ti’ Maria Adozinda. Nunca soube o apelido de família do ti' Joaquim, mas apenas a alcunha da profissão. Ele não era como o português mediano. Pelo contrário, era alto e espadaúdo. O Elias, que via muitos livros de quadradinhos e já sabia ler bem, dizia que o ti’ Joaquim Ferreiro era "tão grande como os alemães". Os alemães é que eram assim! Apesar disso, o tamanho não lhes valeu de nada, porque "já tinham perdido duas guerras mundiais!", dizia o Elias.

O ti' Joaquim andava sempre com um casaco, mas nunca o vestia. Isso tolhia-lhe os movimentos a trabalhar na sua oficina. Usava-o apenas pelas costas, "por causa das pontas de ar". Mas, na banda filarmónica da Vila, onde tocava caixa, tan-tarran-tan-tan(!), com a farda vestida e boné na cabeça, aprumado, caminhava perfilado e com passo marcial, como na tropa. Um, dois, esquerdo... Parecia outro!

A oficina dele era numa rua para os lados da praça e tinha uma grande porta de entrada. Dividia-se em duas partes. Uma em que trabalhava o ferro, onde havia uma forja, uma bigorna, grandes martelos, tenazes compridas, alicates enormes e montes de pedaços de ferro e aço. Se não havia portões e grades de ferro para fazer, guilhos e picaretas para aguçar ou cavalos, burros e vacas para ferrar, trabalhava na outra parte, onde fazia alguns utensílios, como latoeiro. Para estes trabalhos menores, tinha um pequeno fogão de cozinha, de bomba, a petróleo e as ferramentas eram o martelo de chapa, o alicate, o punção, uma bigorna de reduzidas dimensões e uma máquina de frisar.

Sentava-se no seu banquinho, sempre com o casaco pelas costas, atrás desse fogareiro, que se encontrava no meio do espaço de trabalho, em cima de uma pequena banca de madeira. Era onde aquecia o ferro de soldar. A matéria-prima era a solda de estanho em pequenos pedaços, a folha-de-flandres lisa ou zincada e o rolo de cinta de ferro para cortar à medida, rebitar e soldar à volta do fundo, a robustecer as peças maiores: cântaros, caldeiros, regadores. Já, peças como os copos, latões ou outros utensílios menores, dado o pouco volume de líquido que levavam, não tinham necessidade desse reforço. 

A mulher do ti’ Joaquim, a ti’ Maria Adozinda, era alta e magra. Quando andava boa, tinha genica, mas a maior parte do tempo era frágil e tomava muitos comprimidos, supostamente para as suas doenças da cabeça. Por isso, se o homem tivesse a desfaçatez de lhe dar uma lamparina, dificilmente se aguentaria com ela! Um pequeno encosto de um homem com um corpo daqueles, habituado a malhar ferro, numa mulher como a dele, tão débil, era como um mosquito vergastado pela cauda de um macho.

Quando o ti’ Joaquim Ferreiro e a mulher foram residir para a casa de granito, durante muito tempo não se ouviu uma mosca na vida deles. Ele ia todos os dias de manhã para a oficina e ela fazia o comer e ia à Fonte Velha buscar água. Eles também tratavam uma hortita onde semeavam umas batatas e punham algumas couves de inverno.

O ti’ Joaquim emborcava o seu copito nas tabernas da baixa, com os convivas de domingo à tarde. Pois com certeza! Mas não era conhecido por ser amigo da pinga como o ti' João Valente ou mesmo como o  ti' Chico Cambão. Portanto, em casa do ti’ Joaquim Ferreiro não parecia que alguma vez viesse a haver desavenças por causa do mau vinho.

Por isso não se sabia como é que, de vez em quando, mas, felizmente, muito raramente, se ouvia uma grande algazarra e coisas a cair pelas escadas abaixo com grande estrondo! Pareciam cântaros, panelas ou outros utensílios. Desconhece-se a razão por que eles se zangavam. Talvez fosse por causa da energia da mulher que, quando andava boa, nunca se calava! As pessoas de compleição tísica, dadas a doenças cismáticas, no auge da discussão e, quando cerram os dentes, têm muita força! Não se sabe muito bem se seria isso ou se seria o facto de a vida nada lhes oferecer, senão lugubridade e desesperança.

Do mal, o menos, esperava-se que o homem não atirasse a própria mulher pelas escaleiras, juntamente com os tachos e os cântaros! Não o achávamos capaz disso, que diabo! Mas, no limite, nunca se sabe até onde podia ir o comportamento de um chefe de família, que defendia a "ordem e os costumes". O Estado entrava assim, com o seu agente, em todos os lares, porque queria paz social. Embora, dentro de cada lar, pudesse haver guerra! Era um mal menor. E, como eram apenas homens que frequentavam os corredores do Estado e que mandavam em tudo, eram também eles que decidiam o que era a "ordem e os costumes". Tudo ficava em casa.

Tirando estes alvoroços, o tempo fluía e as coisas aconteciam, mas devagar. Enquanto o mundo girava, pouco mudava. E talvez nem fosse importante. Bastava que a um dia se seguisse outro dia. Como a quietude do correr das horas de uma tarde de verão, com as pessoas na indolência, ao sol, e as moscas a voltejar.

A filha do ti’ Joaquim Ferreiro e da ti’ Maria Adozinda, se ela era uma rapariga graúda! Era sim senhor! Solteira e independente. Estava para Lisboa e só vinha, de vez em quando, visitar os pais. Por isso, eles estavam quase sempre sozinhos. Cada um tem que tratar da vida, pois com certeza! Mas era no que dava ter filhos únicos.

 

No inverno, com os dias escuros e pequenos, a mulher do ti’ Joaquim retirava-se para o quarto do fundo e ia para a cama cedo. Ele não costumava deitar-se com ela. Entretinha-se com alguma coisa ou sentava-se, simplesmente, à lareira, com o casaco pelas costas, "por causa das pontas de ar", pondo um aspeto meditativo. Pudera! Às vezes desesperava porque sabia a vida que tinha, via o tempo a correr e pensava: "para que andei eu a criar uma filha?". E não podia parar o tempo. Uma noite esteve, vai e não vai, para tirar o relógio de corda que tinha na parede, com aquele tic-tac implicativo, e atirá-lo ao chão! Só não o fez porque se lembrou da sua falecida mãe, a quem o relógio pertencera. Quando, já tarde, deixava o calor do lume para se ir deitar, a mulher estava quase sempre a dormir. Era o que faziam zangas antigas e corpos velhos e ressequidos. 

Certo dia, ao escurecer, o ti’ Joaquim Ferreiro acendeu a braseira de zinco, com reforços de ferro, obra da sua arte de trabalhar os metais, aproveitando os carvões vivos da lareira e pô-la no estrado, na pequena sala. Estava frio e a chuva batia ligeiramente na janela. O tempo foi-se escoando com ele a cogitar, recolhido, embalado por aquele tamborilar suave. Sentado na cadeirinha, com o casaco pelas costas, no aconchego das brasas, por longas horas, estava já a cabecear. Não havia meio de se ir deitar e já eram horas! A mulher acordou do primeiro sono a meio da noite, estranhou a demora, saiu do quarto e foi à sala. 

Com o lume alto, na pedra do lar, os gases saíam pela chaminé. Mas a braseira, incandescente, no meio da sala, com uma prata por cima para avivar as brasas, exigia arejamento. Talvez porque não tivesse aberto as janelas e não renovasse convenientemente o ar da exígua divisão, o ti’ Joaquim morreu. A mulher foi dar com ele caído no chão, envenenado com os monóxidos carbónicos da combustão.

"Aqui d’el-rei"!

Veio a vizinhança mais próxima, com os olhos entumescidos do sono, um casaco e uns sapatos enfiados à pressa. Algumas mulheres confortavam a viúva. Entre o sururu do acontecimento, foram-se inteirando do sucedido e comentavam aleatoriamente:

"Estas tragédias estão sempre a acontecer!"

"Não foi o primeiro, nem será o último!", lamentavam alguns que aparentavam as mesmas idades do finado.

Era o que sempre se dizia, quando alguém morria. Os lugares comuns eram sobre a tristeza e a saudade que deixava o defunto:

"Foi uma pena! Tão boa pessoa! E ainda não era velho!"

Ao cabo, pensavam sempre:

"Estou confortável porque desta ainda não fui eu".

A mulher do ti' Joaquim Ferreiro não demorou muito, foi-se-lhe juntar. Pois, diz-se que, para todos, a vida tem um término e que a morte é a coisa mais certa da vida. Mas eu interrogo-me sempre sobre isto. Por que havemos nós de ter a certeza da morte? Na verdade, enquanto vivos, vemos os outros morrer. Quando morremos não temos consciência da morte. Nunca se ouviu alguém dizer:

"Afinal, sempre morri!"

De todo o modo, caso eu morra, a minha sepultura é a número 35 do Cemitério Novo!


II

A casa de granito continuava vaga desde que o ti' Joaquim Ferreiro e a ti' Maria Adozinda tinham falecido. Foram mais tarde trastejá-la e passaram a habitá-la, o ti’ Manuel Pedro, homem alto, olho branco, conhecido por Mané Gato e a mulher, a ti' Ludovina, cujo nome, as gentes da Vila, pelas suas boas artes linguísticas, pronunciavam, "Delevina".

O ti' Mané Gato era um homem muito considerado na Vila, não só pelo seu forte pulso, mas também pela sua honradez. Era muito amigo do ti’ Zé Silvério. Ambos eram resineiros, encarregados de outros resineiros. Eram eles que entabulavam mediações com o empregado engravatado da fábrica da resina, que vinha fazer os pagamentos ao pessoal. Ambos tinham também a sua quota-parte na agricultura para complemento dos rendimentos da resina. Por via das suas funções de tomarem conta do pessoal e da forte impressão, tanto física, como de palavra de honra, que ambos gozavam, havia a impressão que entre eles se disputava o lugar de "número um da terra". A questão esteve sempre em aberto. Mas depois que o ti’ Mané Gato morreu, o ti’ Zé Silvério reivindicou o lugar só para si, não se sabe se com toda a justiça ou não. Com o seu copito no estômago e a alma toda contente, batia com o pé-direito no chão, ao mesmo tempo que proclamava:

"Número um da Vila!" 

O que se sabia, com certeza, era que se o ti’ Mané Gato estivesse presente onde houvesse uma escaramuça, muitas vezes por causa do tinto, era homem para apaziguar os ânimos a contento de todos. Impunha a sua autoridade pela consideração que gozava e pela imponência da estatura. Sobretudo, se via desproporção entre as forças litigantes.

Uma vez, veio a dar-se esse caso, aquando da prisão do Peito de Cavalo, o enorme salteador, que, segundo o ti' Albertino, varreu a serra da Gardunha por uns anos. O homem tinha sido preso, em flagrante, por populares que, talvez já pingados, porque, em qualquer sociedade, não faltava o garrafão, o queriam matar pela inquietação que causava na pacata vida das famílias. Foi o t'i Mané Gato que, impondo a sua conceituada palavra, disse:

"Enquanto eu aqui estiver não se mata ninguém!"

Os circunstantes, e eram muitos, ouviram, mas nenhum levantou um dedo. O homem foi entregue às autoridades concelhias competentes, vindo a ser julgado em tribunal, como era de lei.

De outra vez, houve outra circunstância. Não sei se é verdadeira, nem me lembro quem ma tivesse narrado. Nem isso é decisivo. Pois, como sabemos, qualquer homem de quem se contem façanhas e atos heroicos, a certa altura, passa a fazer parte do mito. Deixamos de saber o que pertence à realidade dos factos e o que é do domínio do imaginário.

A conjuntura foi que, um dia, na taberna da ti' Maria Viúva, com as sociedades regadas pelos copos, viva a nossa que é melhor que a vossa (!), três irmãos graúdos, uns trastes, há anos desavindos com um homem da terra, parecia que se estavam a unir para o sovar. Ainda que ele sorvesse o seu copo ao balcão e se apresentasse calmo. Mas eles procuravam ocasião para levarem por diante a sua maquinação. No meio da malta, fingiam meios tombos, falsamente provocados pela bebida, para dar encostos nuns e estes baterem no outro. O intuito era provocatório. 

Nestes casos, o ti' Mané Gato, não olhava à razão da luta. Dava-lhe volta ao estômago assistir ao massacre de qualquer ser vivo, quanto mais de um homem! Confortado na sua autoridade, ia pedir desforços, pondo-se sempre do lado dos mais fracos. A seu ver, era uma forma de pôr em prática a caridade cristã que lhe tinham ensinado e, por essa forma, tentear o mundo, que tão desequilibrado lhe parecia. Quando se apercebeu que os malandros estavam a chegar a pontos ostensivos, que não deixavam dúvidas quanto às suas intenções, o ti' Mané Gato chegou-se à frente:     

"O que é que se passa? Vocês estão doidos ou quê? Estão aqui umas belas sociedades e não admito que se estrague a boa união com conflitos e zangas antigas. Não tendes vergonha de andardes a tramar coligações contra um homem só?"

Soava que, noutros tempos, tinha havido quezílias de namoro entre o visado e uma irmã dos amotinados, que não deu em casamento. Mas, como era costume, o assunto era lá entre homem e mulher, pois se eles, na época, eram maiores e solteiros, ninguém tinha nada com isso! Porém, se o costume quase sempre prevalecia, o certo é que, muitas vezes, as famílias também se metiam, para defender a honra.   

"Ele chamou curta à nossa irmã!", atiraram os da horda. "Havemos de lhe fazer engolir a má criação!", vociferavam os marmanjos.

Ele, o vinho, fazia coisas!

E o ti' Mané Gato, que conhecia bem a vida da pequena Vila:  

"Isso são coisas antigas. Mas, se querem, vão à cidade e resolvam o assunto de outra maneira, com a justiça. Comigo aqui, não há bulhas! Se querem guerrear, mas de homem para homem, vão lá para os infernos, para a Devesa. Haja respeito pelo Senhor Santo Cristo que está ali ao lado na Igreja da Misericórdia".

E mais assim e mais assado, lá tentou dissuadir a conjura dos manos, para que não levassem por diante os seus intentos de estragar a festa de domingo à tarde. Porém, um dos irmãos, o mais masmarro, não esteve pelos ajustes. Novo e altivo, veio direito ao ti’ Mané Gato:

"Nem você, nem o Regedor. Ainda havemos de lhe fazer amargar a sua petulância e a mania de que manda em tudo nesta terra!"    

Parecia que também falava pelos irmãos, mas nenhum deles se mexeu. Fiado na sua juventude, aventurou-se ao pé do ti' Mané Gato, até à distância de um braço, dando-lhe um pequeno encosto na cara que lhe fez cair o chapéu domingueiro. Fizeram roda! O ti’ Mané Gato, na sua forte compleição da maturidade, cegou! Ah! homem de uma cana! Felino, fazendo jus ao próprio nome, lançou-se aos gorgomilos do revanchista que nem um lince ao cachaço de um coelho. Estava o outro a ofegar, dominado, e o ti' Mané Gato preparava-se para lhe saltar com os pés em cima da arca do peito. Foi quando quatro rapazes da roda dos assistentes decidiram, a custo, tirar-lhe o homem das mãos. 

"Ó ti’ Mané, então, que diabo…!"

O ti' Mané, esbraseado, apartado, moderou a sanha, apanhou o seu chapéu e rematou:

"Só o barbeiro me põe as mãos na cara!"

O machacaz, combalido, dorido, ia-se levantando devagar, encostando-se ao balcão, a recompor-se. Os irmãos quedos e mudos, tinham apostado nele, um digno e forte candidato a desagravar as mágoas familiares, mas perderam. A coisa serenou graças à intervenção do ti' Mané Gato, pondo-se fim à questão, pelo menos daquela vez.

 

O raio do sumo da uva, depois de fermentado, parece ganhar a alma dos anjos e do demónio! E tem, nestas partes, um papel crucial. Tanto espalha as alegrias, como arranja as sarrafuscas. Com a volubilidade que se lhe reconhece, ora porque faz tantos amigos, ora porque entre eles cria desavenças, era natural que as zangas por sua causa também fossem intensas, mas breves. E, daí a bocado, depois da discórdia, foram, todos abraçados, deixando de lado ofensas antigas, contendores, olheiros e papalvos, beber a sossega. A paz, por ora, voltava à taberna, até que surgisse nova oportunidade a juntar outros antagonistas.

Tem-se por verdadeiro que “a ocasião faz o ladrão”. Numa taberna, mais que numa mesquita, era provável que "o cura doenças", nome que Mané Gato dava ao vinho, começasse a subir à cachimónia de alguns. E depois davam-se estes casos. Mas não pagava a pena apeguilhar porque, depois, em chegando a Semana Santa, tinham que ter o trabalho de confessar tudo ao padre Tomás, sem o que não podiam apresentar-se à Sagrada Comunhão. E ninguém queria ficar de fora.      

 

III 

Por aqui já se vê que o ti’ Mané Gato, gostava muito da pinga, ao contrário do ti' Joaquim Ferreiro. À noite, mas, especialmente, aos domingos à tarde, tinha na praça ou nas tabernas da baixa, a sua assembleia de amigos, onde era igual entre iguais porque a todos respeitava. Mas sobre ele pairava uma aura de justiça, fazendo frente aos fortes e acudindo aos fracos, num tempo em que, nem o Regedor, com os seus Cabos de Ordens, tinham mão nos mais fortes. E faltavam os meios de polícia e de justiça que tinham chegado às cidades. Nas tabernas, os homens iam bebendo e conversando sobre a vida, tão catolicamente como no trabalho ou no recato da família, enquanto, sem o saberem, festejavam o pagão Baco. Mas também celebravam o Cristo, em cuja Mesa o Vinho nunca falta.

"É da nossa religião beber vinho. Na taberna, como na missa!", dizia o ti' Mané Gato. Eram esses bons convívios e boas harmonias, que ele defendia a todo o custo.

Assim é que, volta de um lado, volta do outro, conversa daqui, conversa dali, passavam umas valentes horas nas baiucas, muitas vezes, a beber muito e a comer nada. E quanto mais um homem bebe, mais vontade tem de beber. Há uma altura em que não concede ter a garganta seca. Experimentar, repetir, cultivar e abusar causa todos os vícios. O homens é o único animal com estas fraquezas. Já, como se viu, em casa do ti' Joaquim Ferreiro, as desavenças aconteciam porque a ti' Adozinda, a mulher, quando começava a falar, não havia meio de se calar! Era um vício menor mas, também, nada recomendável. E o homem descoroçoava!

Razão tinha o padre Tomás!

Ele que, na sua pureza ortodoxa e não desviante, pugnava por uma comunidade de paroquianos sem mácula, ralhava:

"Velhacos, confessais-vos agora e logo vos afogais outra vez nos vícios. Não tendes temperança. Vinde cá, que eu logo vos coço!"

Dizia isto, mas, da próxima, lá tinha que perdoar novamente! Porque, ainda que de má vontade, estava obrigado a perdoar, pelo menos, "setenta vezes sete".

 

Mas, a vida, na Vila, continuava. E foi assim, que num domingo de verão, como tantos outros, tinha entretanto corrido uma carrada de anos (!), o ti’ Mané Gato, já bem aviado, mesmo ao fim dessa tarde de sol, deixou a taberna da ti' Maria Viúva. Havia mais de 30 anos que a sua idade tinha entrado nos "entas".

Nesse dia, ainda passou pelo ti' João Arrebotes, onde tomou um derradeiro copo. Seria o último que, sem o saber, bebia na vida! Disse "até amanhã" e saiu. Voltou para a rua D. Úrsula, dobrou a esquina para a rua Manuel Lopes e começou a subir. Tentava não dar parte de fraco, como todos os que se tocavam da pinga, aqui ladeando a rua, ali tateando a parede para retomar o equilíbrio. E embicou, como pôde, direito à casa de granito, ao topo da rua, no Cimo de Vila.   

Quando chegou à porta de casa não encontrou a chave. A mulher não estava. Como habitualmente, devia ter ido à horta acomodar os borregos. Ao fundo da porta havia um buraco para deixar entrar o gato e as galinhas para a loja. Ao sol posto, com os animais recolhidos, cerrava-se com uma pedra amovível. Quando os donos saíam, fechavam a porta, metiam o braço pela abertura e penduravam a chave na parte de trás, onde se encontrava um prego espetado, saliente, para esse efeito.     

Ti' Mané Gato procurou-a, a custo, no lugar habitual, tirou-a, rodou a fechadura, abriu e subiu, com dificuldade, as escadas de madeira inclinadas. Acabou de subir e pôs-se de pé no alto da escadaria, procurando agarrar-se à ombreira da porta que dava para a sala. Nessa altura, não se soube bem o que aconteceu. Com o espirito do vinho a puxar para um lado e o ti' Mané a puxar para o outro, talvez o primeiro tenha sido mais forte! Tudo aponta para que se tenha desequilibrado e caído para trás, desamparado, pelas escadas, indo embater, ao fundo, no granito do limiar e ferindo-se com gravidade na cabeça, no prego saliente atrás da porta, onde se costumava pendurar a chave.  

Ao regressar, a mulher, não conseguiu abrir a porta porque, como veio a verificar, atrás dela se encontrava o corpo do homem, se não mais, pelo menos, profundamente inanimado, pelas consequências da queda. Por uma fresta, era visível na pedra clara do limiar uma mancha vermelha. Era sangue! Assim que a ti' Ludovina, entreabrindo mais a porta, se apercebeu do lagoeiro, e percebeu a verdadeira gravidade da situação, desatou aos gritos:  

"Ai Jesus! Ai o meu homem que está morto! Ai, meu rico homem! Acudam...! Acudam...!", gritava a mulher, surpreendida e consumida pelo desespero.

A caramunha e a gritaria, ao cair da tarde calma daquele domingo de verão, foi ouvida por todo o Cimo de Vila. E, de tal modo desassossegou os moradores, que acudiu ali um tropel de pessoas, afigurando-se que se tinham esvaziado, num rompante, todas as casas da vizinhança. Parecendo, como se dizia dos ajuntamentos, que "tinha parido ali a galega"!

Com a chegada das gentes, alguns homens mais destemidos procuraram remover o obstáculo, acabando por forçar a entrada, passando apertadamente entre a porta semiaberta e o corpo inanimado do ti' Mané Gato. Pegaram nele, ergueram-no, abanaram-no, tentando reanimá-lo e falavam com ele, julgando que estava apenas sob o efeito do álcool e atordoado pela queda. Não articulou palavra, não emitiu som, nem deu acordo de si. Puderam ver os ferimentos, especialmente, o da cabeça, que fora provocado pelo prego atrás da porta. Perceberam então que estava morto!

 

Depois que passaram muitos anos que a viúva do ti' Mané Gato morreu, a casa de granito foi vendida. A pedra das paredes, parecia tornar-se eterna, como eterno era o maciço da serra da Gardunha onde foi cortada por mãos calosas, talvez, houvesse quase dois séculos. Testemunhando um passado de gente pobre de bens, mas rica de alma, lá continuava de pé, enegrecida pelo rigor dos invernos e chacinada ao calor dos estios. Nunca mais foi habitada. 

JOSÉ BARROSO  

4 comentários:

M. L. Ferreira disse...

Cheguei ao fim da leitura desta história quase sem fôlego. Não tanto pelo número de páginas, que também é obra, mas sobretudo pela emoção que estes quadros das vidas das nossas gentes, contada de forma tão realista e sensível, me provocaram: as brincadeiras da infância, na rua; a forja ou a oficina do latoeiro; a Maria Gata, à janela ou rua abaixo rua acima de cesta enfiada no braço; as zaragatas de domingo, única linguagem dos copos de vinho emborcados desde o fim da missa até ao sol-posto; o alvoroço provocado pela morte acidental de alguém, tão frequente naquele tempo.
Vidas de gente simples, cujas ambições não iam muito para lá do pão para a boca e o direito a uma migalha de sol. Que bom que haja quem conte as suas histórias! Assim, até as casas, mesmo desabitadas, parece que têm gente…

José Teodoro Prata disse...

Há uns anos li uma entrevista de uma figura pública, não me lembro de qual, talvez o Mega Ferreira, que dizia não querer mudar da sua casa em Lisboa, porque era uma casa com História, e enumerava figuras públicas que ali tinham vivido. E há uma barragem empatada na serra da Estrela, propriedade de familiares do Dr.º Dória, porque foi lá que o José Cardoso Pires escreveu O Delfim.
Existe no Arquivo Distrital de Castelo Branco um documento de cerca de 1820-24, muito curioso: é um registo da população da Vila, por casas, com indicação das pessoas que lá moravam, em cada ano. Nunca o estudei.
Posto isto, vou repetir-me: o Zé Barroso escreve lindamente e o conjunto dos seus textos compõem um retrato muito coerente da nossa terra, no passado recente (cerca de 1900-1970).

M. L. Ferreira disse...

Eu faço ideia da emoção que deve ser ter um documento desses nas mãos! Quando, nos registos paroquiais da segunda metade do sec. XIX, descobri em que ruas tinham nascido e vivido os meus avós, bisavós e outros familiares passei a olhar para a Rua Velha, a Rua da Cruz ou a Rua da Igreja com olhos muito mais afetuosos. O que seria se soubesse as casas (algumas já sei) em que tinham morado!
Curiosamente, nessa altura, as ruas das anexas ainda não teriam nome. Possivelmente por serem poucas...

Anônimo disse...

Verdadeiramente fantástica esta narrativa meio real meio ficcionada. E tão bem escrita! Deliciei-me com ela.
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