I
Eu e o meu
amigo tínhamos acabado de nascer. Ele residia na casa de granito, mesmo em
frente da minha. Surgimos no seio das nossas famílias, ali, no Cimo de Vila,
como, de forma aleatória, a vida desponta e acontece em qualquer lugar. Ainda
usávamos os bibes que as nossas mães nos tinham talhado e cosido à mão. Éramos
da mesma idade e isso fazia com que sentíssemos uma afinidade especial que se
manifestava nos gostos pelas mesmas brincadeiras: construíamos casinhas com
pedras, pedaços de vidro e terra amassada; apanhávamos abelhas, das amarelas,
com uma mosca espetada na ponta de uma caruma; guardávamos as vacas (duas
pinhas bravas, abertas), atadas nas pontas de um fino cordel de sisal. Por
sermos os mais novos da rua, as jovens vizinhas, quase casadoiras, pegavam-nos
e passavam-nos de mão em mão esmagando-nos a cara com beijos.
Um dia, os
pais do meu amigo foram viver para a cidade. Ele também foi. Regressava de vez
em quando para visitar os avós e nós víamo-nos. Um dia morreu! Dizem que foi um
sopro no coração. E, assim, perdi, para sempre, o meu primeiro amigo.
A vida
continuou porque o sol todos os dias aparecia nas terras de nascente,
levantando-se entre os pinheiros bravos, onde o cuco cantava nas manhãs
quentes, para os lados do Louriçal. Não sei quantos anos a casa de granito,
ainda esteve fechada. Lembro-me apenas de a ver novamente ocupada pelo ti’
Joaquim Ferreiro e pela mulher, a ti’ Maria Adozinda. Nunca
soube o apelido de família do ti' Joaquim, mas apenas a alcunha da profissão.
Ele não era como o português mediano. Pelo contrário, era alto e espadaúdo. O
Elias, que via muitos livros de quadradinhos e já sabia ler bem, dizia que o
ti’ Joaquim Ferreiro era "tão grande como os alemães". Os alemães é
que eram assim! Apesar disso, o tamanho não lhes valeu de nada, porque "já
tinham perdido duas guerras mundiais!", dizia o Elias.
O ti'
Joaquim andava sempre com um casaco, mas nunca o vestia. Isso tolhia-lhe os
movimentos a trabalhar na sua oficina. Usava-o apenas pelas costas, "por
causa das pontas de ar". Mas, na banda filarmónica da Vila, onde tocava
caixa, tan-tarran-tan-tan(!), com a farda vestida e boné na cabeça, aprumado,
caminhava perfilado e com passo marcial, como na tropa. Um, dois, esquerdo...
Parecia outro!
A oficina
dele era numa rua para os lados da praça e tinha uma grande porta de entrada.
Dividia-se em duas partes. Uma em que trabalhava o ferro, onde havia uma forja,
uma bigorna, grandes martelos, tenazes compridas, alicates enormes e montes de
pedaços de ferro e aço. Se não havia portões e grades de ferro para fazer,
guilhos e picaretas para aguçar ou cavalos, burros e vacas para ferrar,
trabalhava na outra parte, onde fazia alguns utensílios, como latoeiro. Para
estes trabalhos menores, tinha um pequeno fogão de cozinha, de bomba, a
petróleo e as ferramentas eram o martelo de chapa, o alicate, o punção, uma
bigorna de reduzidas dimensões e uma máquina de frisar.
Sentava-se
no seu banquinho, sempre com o casaco pelas costas, atrás desse fogareiro, que
se encontrava no meio do espaço de trabalho, em cima de uma pequena banca de
madeira. Era onde aquecia o ferro de soldar. A matéria-prima era a solda de
estanho em pequenos pedaços, a folha-de-flandres lisa ou zincada e o rolo de
cinta de ferro para cortar à medida, rebitar e soldar à volta do fundo, a
robustecer as peças maiores: cântaros, caldeiros, regadores. Já, peças como os
copos, latões ou outros utensílios menores, dado o pouco volume de líquido que
levavam, não tinham necessidade desse reforço.
A mulher do
ti’ Joaquim, a ti’ Maria Adozinda, era alta e magra. Quando andava boa, tinha
genica, mas a maior parte do tempo era frágil e tomava muitos comprimidos,
supostamente para as suas doenças da cabeça. Por isso, se o homem tivesse a
desfaçatez de lhe dar uma lamparina, dificilmente se aguentaria com ela! Um
pequeno encosto de um homem com um corpo daqueles, habituado a malhar ferro,
numa mulher como a dele, tão débil, era como um mosquito vergastado pela cauda
de um macho.
Quando o ti’
Joaquim Ferreiro e a mulher foram residir para a casa de granito, durante muito
tempo não se ouviu uma mosca na vida deles. Ele ia todos os dias de manhã para
a oficina e ela fazia o comer e ia à Fonte Velha buscar água. Eles também
tratavam uma hortita onde semeavam umas batatas e punham algumas couves de
inverno.
O ti’
Joaquim emborcava o seu copito nas tabernas da baixa, com os convivas de
domingo à tarde. Pois com certeza! Mas não era conhecido por ser amigo da pinga
como o ti' João Valente ou mesmo como o
ti' Chico Cambão. Portanto, em casa do ti’ Joaquim Ferreiro não parecia
que alguma vez viesse a haver desavenças por causa do mau vinho.
Por isso não
se sabia como é que, de vez em quando, mas, felizmente, muito raramente, se
ouvia uma grande algazarra e coisas a cair pelas escadas abaixo com grande
estrondo! Pareciam cântaros, panelas ou outros utensílios. Desconhece-se a
razão por que eles se zangavam. Talvez fosse por causa da energia da mulher
que, quando andava boa, nunca se calava! As pessoas de compleição tísica, dadas
a doenças cismáticas, no auge da discussão e, quando cerram os dentes, têm
muita força! Não se sabe muito bem se seria isso ou se seria o facto de a vida
nada lhes oferecer, senão lugubridade e desesperança.
Do mal, o
menos, esperava-se que o homem não atirasse a própria mulher pelas escaleiras,
juntamente com os tachos e os cântaros! Não o achávamos capaz disso, que diabo!
Mas, no limite, nunca se sabe até onde podia ir o comportamento de um chefe de
família, que defendia a "ordem e os costumes". O Estado entrava
assim, com o seu agente, em todos os lares, porque queria paz social. Embora,
dentro de cada lar, pudesse haver guerra! Era um mal menor. E, como eram apenas
homens que frequentavam os corredores do Estado e que mandavam em tudo, eram
também eles que decidiam o que era a "ordem e os costumes". Tudo
ficava em casa.
Tirando
estes alvoroços, o tempo fluía e as coisas aconteciam, mas devagar. Enquanto o
mundo girava, pouco mudava. E talvez nem fosse importante. Bastava que a um dia
se seguisse outro dia. Como a quietude do correr das horas de uma tarde de
verão, com as pessoas na indolência, ao sol, e as moscas a voltejar.
A filha do
ti’ Joaquim Ferreiro e da ti’ Maria Adozinda, se ela era uma rapariga graúda!
Era sim senhor! Solteira e independente. Estava para Lisboa e só vinha, de vez
em quando, visitar os pais. Por isso, eles estavam quase sempre sozinhos. Cada
um tem que tratar da vida, pois com certeza! Mas era no que dava ter filhos
únicos.
No inverno,
com os dias escuros e pequenos, a mulher do ti’ Joaquim retirava-se para o
quarto do fundo e ia para a cama cedo. Ele não costumava deitar-se com ela.
Entretinha-se com alguma coisa ou sentava-se, simplesmente, à lareira, com o
casaco pelas costas, "por causa das pontas de ar", pondo um aspeto
meditativo. Pudera! Às vezes desesperava porque sabia a vida que tinha, via o
tempo a correr e pensava: "para que andei eu a criar uma filha?". E
não podia parar o tempo. Uma noite esteve, vai e não vai, para tirar o relógio
de corda que tinha na parede, com aquele tic-tac implicativo, e atirá-lo ao
chão! Só não o fez porque se lembrou da sua falecida mãe, a quem o relógio
pertencera. Quando, já tarde, deixava o calor do lume para se ir deitar, a
mulher estava quase sempre a dormir. Era o que faziam zangas antigas e corpos velhos
e ressequidos.
Certo dia,
ao escurecer, o ti’ Joaquim Ferreiro acendeu a braseira de zinco, com reforços
de ferro, obra da sua arte de trabalhar os metais, aproveitando os carvões
vivos da lareira e pô-la no estrado, na pequena sala. Estava frio e a chuva
batia ligeiramente na janela. O tempo foi-se escoando com ele a cogitar,
recolhido, embalado por aquele tamborilar suave. Sentado na cadeirinha, com o
casaco pelas costas, no aconchego das brasas, por longas horas, estava já a
cabecear. Não havia meio de se ir deitar e já eram horas! A mulher acordou do
primeiro sono a meio da noite, estranhou a demora, saiu do quarto e foi à
sala.
Com o lume
alto, na pedra do lar, os gases saíam pela chaminé. Mas a braseira,
incandescente, no meio da sala, com uma prata por cima para avivar as brasas,
exigia arejamento. Talvez porque não tivesse aberto as janelas e não renovasse
convenientemente o ar da exígua divisão, o ti’ Joaquim morreu. A mulher foi dar
com ele caído no chão, envenenado com os monóxidos carbónicos da combustão.
"Aqui
d’el-rei"!
Veio a
vizinhança mais próxima, com os olhos entumescidos do sono, um casaco e uns
sapatos enfiados à pressa. Algumas mulheres confortavam a viúva. Entre o sururu
do acontecimento, foram-se inteirando do sucedido e comentavam aleatoriamente:
"Estas
tragédias estão sempre a acontecer!"
"Não
foi o primeiro, nem será o último!", lamentavam alguns que aparentavam as
mesmas idades do finado.
Era o que
sempre se dizia, quando alguém morria. Os lugares comuns eram sobre a tristeza
e a saudade que deixava o defunto:
"Foi
uma pena! Tão boa pessoa! E ainda não era velho!"
Ao cabo,
pensavam sempre:
"Estou
confortável porque desta ainda não fui eu".
A mulher do
ti' Joaquim Ferreiro não demorou muito, foi-se-lhe juntar. Pois, diz-se que,
para todos, a vida tem um término e que a morte é a coisa mais certa da vida.
Mas eu interrogo-me sempre sobre isto. Por que havemos nós de ter a certeza da
morte? Na verdade, enquanto vivos, vemos os outros morrer. Quando morremos não
temos consciência da morte. Nunca se ouviu alguém dizer:
"Afinal,
sempre morri!"
De todo o
modo, caso eu morra, a minha sepultura é a número 35 do Cemitério Novo!
II
A casa de
granito continuava vaga desde que o ti' Joaquim Ferreiro e a ti' Maria Adozinda
tinham falecido. Foram mais tarde trastejá-la e passaram a habitá-la, o ti’
Manuel Pedro, homem alto, olho branco, conhecido por Mané Gato e a mulher, a
ti' Ludovina, cujo nome, as gentes da Vila, pelas suas boas artes linguísticas,
pronunciavam, "Delevina".
O ti' Mané
Gato era um homem muito considerado na Vila, não só pelo seu forte pulso, mas
também pela sua honradez. Era muito amigo do ti’ Zé Silvério. Ambos eram
resineiros, encarregados de outros resineiros. Eram eles que entabulavam
mediações com o empregado engravatado da fábrica da resina, que vinha fazer os
pagamentos ao pessoal. Ambos tinham também a sua quota-parte na agricultura
para complemento dos rendimentos da resina. Por via das suas funções de tomarem
conta do pessoal e da forte impressão, tanto física, como de palavra de honra,
que ambos gozavam, havia a impressão que entre eles se disputava o lugar de
"número um da terra". A questão esteve sempre em aberto. Mas depois
que o ti’ Mané Gato morreu, o ti’ Zé Silvério reivindicou o lugar só para si,
não se sabe se com toda a justiça ou não. Com o seu copito no estômago e a alma
toda contente, batia com o pé-direito no chão, ao mesmo tempo que proclamava:
"Número
um da Vila!"
O que se
sabia, com certeza, era que se o ti’ Mané Gato estivesse presente onde houvesse
uma escaramuça, muitas vezes por causa do tinto, era homem para apaziguar os
ânimos a contento de todos. Impunha a sua autoridade pela consideração que
gozava e pela imponência da estatura. Sobretudo, se via desproporção entre as
forças litigantes.
Uma vez,
veio a dar-se esse caso, aquando da prisão do Peito de Cavalo, o enorme
salteador, que, segundo o ti' Albertino, varreu a serra da Gardunha por uns
anos. O homem tinha sido preso, em flagrante, por populares que, talvez já
pingados, porque, em qualquer sociedade, não faltava o garrafão, o queriam
matar pela inquietação que causava na pacata vida das famílias. Foi o t'i Mané
Gato que, impondo a sua conceituada palavra, disse:
"Enquanto
eu aqui estiver não se mata ninguém!"
Os
circunstantes, e eram muitos, ouviram, mas nenhum levantou um dedo. O homem foi
entregue às autoridades concelhias competentes, vindo a ser julgado em
tribunal, como era de lei.
De outra
vez, houve outra circunstância. Não sei se é verdadeira, nem me lembro quem ma
tivesse narrado. Nem isso é decisivo. Pois, como sabemos, qualquer homem de
quem se contem façanhas e atos heroicos, a certa altura, passa a fazer parte do
mito. Deixamos de saber o que pertence à realidade dos factos e o que é do
domínio do imaginário.
A conjuntura
foi que, um dia, na taberna da ti' Maria Viúva, com as sociedades regadas pelos
copos, viva a nossa que é melhor que a vossa (!), três irmãos graúdos, uns
trastes, há anos desavindos com um homem da terra, parecia que se estavam a
unir para o sovar. Ainda que ele sorvesse o seu copo ao balcão e se
apresentasse calmo. Mas eles procuravam ocasião para levarem por diante a sua
maquinação. No meio da malta, fingiam meios tombos, falsamente provocados pela
bebida, para dar encostos nuns e estes baterem no outro. O intuito era
provocatório.
Nestes
casos, o ti' Mané Gato, não olhava à razão da luta. Dava-lhe volta ao estômago
assistir ao massacre de qualquer ser vivo, quanto mais de um homem! Confortado
na sua autoridade, ia pedir desforços, pondo-se sempre do lado dos mais fracos.
A seu ver, era uma forma de pôr em prática a caridade cristã que lhe tinham
ensinado e, por essa forma, tentear o mundo, que tão desequilibrado lhe
parecia. Quando se apercebeu que os malandros estavam a chegar a pontos
ostensivos, que não deixavam dúvidas quanto às suas intenções, o ti' Mané Gato
chegou-se à frente:
"O que
é que se passa? Vocês estão doidos ou quê? Estão aqui umas belas sociedades e
não admito que se estrague a boa união com conflitos e zangas antigas. Não
tendes vergonha de andardes a tramar coligações contra um homem só?"
Soava que,
noutros tempos, tinha havido quezílias de namoro entre o visado e uma irmã dos
amotinados, que não deu em casamento. Mas, como era costume, o assunto era lá
entre homem e mulher, pois se eles, na época, eram maiores e solteiros, ninguém
tinha nada com isso! Porém, se o costume quase sempre prevalecia, o certo é
que, muitas vezes, as famílias também se metiam, para defender a honra.
"Ele
chamou curta à nossa irmã!", atiraram os da horda. "Havemos de lhe
fazer engolir a má criação!", vociferavam os marmanjos.
Ele, o
vinho, fazia coisas!
E o ti' Mané
Gato, que conhecia bem a vida da pequena Vila:
"Isso
são coisas antigas. Mas, se querem, vão à cidade e resolvam o assunto de outra
maneira, com a justiça. Comigo aqui, não há bulhas! Se querem guerrear, mas de
homem para homem, vão lá para os infernos, para a Devesa. Haja respeito pelo
Senhor Santo Cristo que está ali ao lado na Igreja da Misericórdia".
E mais assim
e mais assado, lá tentou dissuadir a conjura dos manos, para que não levassem
por diante os seus intentos de estragar a festa de domingo à tarde. Porém, um
dos irmãos, o mais masmarro, não esteve pelos ajustes. Novo e altivo, veio
direito ao ti’ Mané Gato:
"Nem
você, nem o Regedor. Ainda havemos de lhe fazer amargar a sua petulância e a
mania de que manda em tudo nesta terra!"
Parecia que
também falava pelos irmãos, mas nenhum deles se mexeu. Fiado na sua juventude,
aventurou-se ao pé do ti' Mané Gato, até à distância de um braço, dando-lhe um
pequeno encosto na cara que lhe fez cair o chapéu domingueiro. Fizeram roda! O
ti’ Mané Gato, na sua forte compleição da maturidade, cegou! Ah! homem de uma
cana! Felino, fazendo jus ao próprio nome, lançou-se aos gorgomilos do
revanchista que nem um lince ao cachaço de um coelho. Estava o outro a ofegar,
dominado, e o ti' Mané Gato preparava-se para lhe saltar com os pés em cima da
arca do peito. Foi quando quatro rapazes da roda dos assistentes decidiram, a
custo, tirar-lhe o homem das mãos.
"Ó ti’
Mané, então, que diabo…!"
O ti' Mané,
esbraseado, apartado, moderou a sanha, apanhou o seu chapéu e rematou:
"Só o
barbeiro me põe as mãos na cara!"
O machacaz,
combalido, dorido, ia-se levantando devagar, encostando-se ao balcão, a
recompor-se. Os irmãos quedos e mudos, tinham apostado nele, um digno e forte
candidato a desagravar as mágoas familiares, mas perderam. A coisa serenou
graças à intervenção do ti' Mané Gato, pondo-se fim à questão, pelo menos
daquela vez.
O raio do
sumo da uva, depois de fermentado, parece ganhar a alma dos anjos e do demónio!
E tem, nestas partes, um papel crucial. Tanto espalha as alegrias, como arranja
as sarrafuscas. Com a volubilidade que se lhe reconhece, ora porque faz tantos
amigos, ora porque entre eles cria desavenças, era natural que as zangas por
sua causa também fossem intensas, mas breves. E, daí a bocado, depois da
discórdia, foram, todos abraçados, deixando de lado ofensas antigas,
contendores, olheiros e papalvos, beber a sossega. A paz, por ora, voltava à
taberna, até que surgisse nova oportunidade a juntar outros antagonistas.
Tem-se por
verdadeiro que “a ocasião faz o ladrão”. Numa taberna, mais que numa mesquita,
era provável que "o cura doenças", nome que Mané Gato dava ao vinho,
começasse a subir à cachimónia de alguns. E depois davam-se estes casos. Mas
não pagava a pena apeguilhar porque, depois, em chegando a Semana Santa, tinham
que ter o trabalho de confessar tudo ao padre Tomás, sem o que não podiam
apresentar-se à Sagrada Comunhão. E ninguém queria ficar de fora.
III
Por aqui já
se vê que o ti’ Mané Gato, gostava muito da pinga, ao contrário do ti' Joaquim
Ferreiro. À noite, mas, especialmente, aos domingos à tarde, tinha na praça ou
nas tabernas da baixa, a sua assembleia de amigos, onde era igual entre iguais
porque a todos respeitava. Mas sobre ele pairava uma aura de justiça, fazendo
frente aos fortes e acudindo aos fracos, num tempo em que, nem o Regedor, com
os seus Cabos de Ordens, tinham mão nos mais fortes. E faltavam os meios de
polícia e de justiça que tinham chegado às cidades. Nas tabernas, os homens iam
bebendo e conversando sobre a vida, tão catolicamente como no trabalho ou no
recato da família, enquanto, sem o saberem, festejavam o pagão Baco. Mas também
celebravam o Cristo, em cuja Mesa o Vinho nunca falta.
"É da
nossa religião beber vinho. Na taberna, como na missa!", dizia o ti' Mané
Gato. Eram esses bons convívios e boas harmonias, que ele defendia a todo o
custo.
Assim é que,
volta de um lado, volta do outro, conversa daqui, conversa dali, passavam umas
valentes horas nas baiucas, muitas vezes, a beber muito e a comer nada. E
quanto mais um homem bebe, mais vontade tem de beber. Há uma altura em que não
concede ter a garganta seca. Experimentar, repetir, cultivar e abusar causa
todos os vícios. O homens é o único animal com estas fraquezas. Já, como se
viu, em casa do ti' Joaquim Ferreiro, as desavenças aconteciam porque a ti'
Adozinda, a mulher, quando começava a falar, não havia meio de se calar! Era um
vício menor mas, também, nada recomendável. E o homem descoroçoava!
Razão tinha
o padre Tomás!
Ele que, na
sua pureza ortodoxa e não desviante, pugnava por uma comunidade de paroquianos
sem mácula, ralhava:
"Velhacos,
confessais-vos agora e logo vos afogais outra vez nos vícios. Não tendes
temperança. Vinde cá, que eu logo vos coço!"
Dizia isto,
mas, da próxima, lá tinha que perdoar novamente! Porque, ainda que de má
vontade, estava obrigado a perdoar, pelo menos, "setenta vezes sete".
Mas, a vida,
na Vila, continuava. E foi assim, que num domingo de verão, como tantos outros,
tinha entretanto corrido uma carrada de anos (!), o ti’ Mané Gato, já bem
aviado, mesmo ao fim dessa tarde de sol, deixou a taberna da ti' Maria Viúva.
Havia mais de 30 anos que a sua idade tinha entrado nos "entas".
Nesse dia,
ainda passou pelo ti' João Arrebotes, onde tomou um derradeiro copo. Seria o
último que, sem o saber, bebia na vida! Disse "até amanhã" e saiu.
Voltou para a rua D. Úrsula, dobrou a esquina para a rua Manuel Lopes e começou
a subir. Tentava não dar parte de fraco, como todos os que se tocavam da pinga,
aqui ladeando a rua, ali tateando a parede para retomar o equilíbrio. E
embicou, como pôde, direito à casa de granito, ao topo da rua, no Cimo de
Vila.
Quando
chegou à porta de casa não encontrou a chave. A mulher não estava. Como
habitualmente, devia ter ido à horta acomodar os borregos. Ao fundo da porta
havia um buraco para deixar entrar o gato e as galinhas para a loja. Ao sol
posto, com os animais recolhidos, cerrava-se com uma pedra amovível. Quando os
donos saíam, fechavam a porta, metiam o braço pela abertura e penduravam a
chave na parte de trás, onde se encontrava um prego espetado, saliente, para
esse efeito.
Ti' Mané
Gato procurou-a, a custo, no lugar habitual, tirou-a, rodou a fechadura, abriu
e subiu, com dificuldade, as escadas de madeira inclinadas. Acabou de subir e
pôs-se de pé no alto da escadaria, procurando agarrar-se à ombreira da porta
que dava para a sala. Nessa altura, não se soube bem o que aconteceu. Com o
espirito do vinho a puxar para um lado e o ti' Mané a puxar para o outro,
talvez o primeiro tenha sido mais forte! Tudo aponta para que se tenha
desequilibrado e caído para trás, desamparado, pelas escadas, indo embater, ao
fundo, no granito do limiar e ferindo-se com gravidade na cabeça, no prego
saliente atrás da porta, onde se costumava pendurar a chave.
Ao
regressar, a mulher, não conseguiu abrir a porta porque, como veio a verificar,
atrás dela se encontrava o corpo do homem, se não mais, pelo menos,
profundamente inanimado, pelas consequências da queda. Por uma fresta, era
visível na pedra clara do limiar uma mancha vermelha. Era sangue! Assim que a
ti' Ludovina, entreabrindo mais a porta, se apercebeu do lagoeiro, e percebeu a
verdadeira gravidade da situação, desatou aos gritos:
"Ai
Jesus! Ai o meu homem que está morto! Ai, meu rico homem! Acudam...!
Acudam...!", gritava a mulher, surpreendida e consumida pelo desespero.
A caramunha
e a gritaria, ao cair da tarde calma daquele domingo de verão, foi ouvida por
todo o Cimo de Vila. E, de tal modo desassossegou os moradores, que acudiu ali
um tropel de pessoas, afigurando-se que se tinham esvaziado, num rompante,
todas as casas da vizinhança. Parecendo, como se dizia dos ajuntamentos, que
"tinha parido ali a galega"!
Com a
chegada das gentes, alguns homens mais destemidos procuraram remover o
obstáculo, acabando por forçar a entrada, passando apertadamente entre a porta
semiaberta e o corpo inanimado do ti' Mané Gato. Pegaram nele, ergueram-no,
abanaram-no, tentando reanimá-lo e falavam com ele, julgando que estava apenas
sob o efeito do álcool e atordoado pela queda. Não articulou palavra, não
emitiu som, nem deu acordo de si. Puderam ver os ferimentos, especialmente, o
da cabeça, que fora provocado pelo prego atrás da porta. Perceberam então que
estava morto!
Depois que passaram muitos anos que a viúva do ti' Mané Gato morreu, a casa de granito foi vendida. A pedra das paredes, parecia tornar-se eterna, como eterno era o maciço da serra da Gardunha onde foi cortada por mãos calosas, talvez, houvesse quase dois séculos. Testemunhando um passado de gente pobre de bens, mas rica de alma, lá continuava de pé, enegrecida pelo rigor dos invernos e chacinada ao calor dos estios. Nunca mais foi habitada.
JOSÉ
BARROSO
4 comentários:
Cheguei ao fim da leitura desta história quase sem fôlego. Não tanto pelo número de páginas, que também é obra, mas sobretudo pela emoção que estes quadros das vidas das nossas gentes, contada de forma tão realista e sensível, me provocaram: as brincadeiras da infância, na rua; a forja ou a oficina do latoeiro; a Maria Gata, à janela ou rua abaixo rua acima de cesta enfiada no braço; as zaragatas de domingo, única linguagem dos copos de vinho emborcados desde o fim da missa até ao sol-posto; o alvoroço provocado pela morte acidental de alguém, tão frequente naquele tempo.
Vidas de gente simples, cujas ambições não iam muito para lá do pão para a boca e o direito a uma migalha de sol. Que bom que haja quem conte as suas histórias! Assim, até as casas, mesmo desabitadas, parece que têm gente…
Há uns anos li uma entrevista de uma figura pública, não me lembro de qual, talvez o Mega Ferreira, que dizia não querer mudar da sua casa em Lisboa, porque era uma casa com História, e enumerava figuras públicas que ali tinham vivido. E há uma barragem empatada na serra da Estrela, propriedade de familiares do Dr.º Dória, porque foi lá que o José Cardoso Pires escreveu O Delfim.
Existe no Arquivo Distrital de Castelo Branco um documento de cerca de 1820-24, muito curioso: é um registo da população da Vila, por casas, com indicação das pessoas que lá moravam, em cada ano. Nunca o estudei.
Posto isto, vou repetir-me: o Zé Barroso escreve lindamente e o conjunto dos seus textos compõem um retrato muito coerente da nossa terra, no passado recente (cerca de 1900-1970).
Eu faço ideia da emoção que deve ser ter um documento desses nas mãos! Quando, nos registos paroquiais da segunda metade do sec. XIX, descobri em que ruas tinham nascido e vivido os meus avós, bisavós e outros familiares passei a olhar para a Rua Velha, a Rua da Cruz ou a Rua da Igreja com olhos muito mais afetuosos. O que seria se soubesse as casas (algumas já sei) em que tinham morado!
Curiosamente, nessa altura, as ruas das anexas ainda não teriam nome. Possivelmente por serem poucas...
Verdadeiramente fantástica esta narrativa meio real meio ficcionada. E tão bem escrita! Deliciei-me com ela.
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