Terras de heróis anónimos. Quase sempre homens e mulheres de unhas encardidas e mãos calejadas assim que começavam a ser gente. Uma vida a trabalhar de sol a sol para tirar da terra o sustento dos muitos filhos que Deus lhes dava e tantas vezes lhes levava, mal eram postos no mundo ou no correr da infância, mortos de fome. A melhor fatia do que produziam mal dava para pagarem as rendas àqueles que, por uma ordem social e moral velha, que ninguém contestava, se diziam donos delas. Não ficaram para a História imortalizados no nome de uma rua ou de uma praça. É natural, não haveria ruas nem praças que chegassem para escrever os nomes de tanta gente.
Mas deixaram pegadas por todo o lado que são testemunhos da sua passagem por estas terras. Não precisamos de estender muito o olhar para descobrirmos a herança generosa que nos legaram. É por isso que, com frequência, sinto que os nomes das ruas e lugares das várias povoações da nossa freguesia, não sendo de gente ilustre, são memoriais ao trabalho heroico dos nossos antepassados, incluindo os nossos pais e avós, os que nos estão mais próximos.
Certamente porque a História e a Geografia, mas sobretudo o modo de vida, as necessidades, as ambições e as crenças são comuns, os nomes das ruas, repetem-se ou assemelham-se muitas vezes nas várias aldeias da Freguesia: Rua da Eira, Rua da Fonte, Rua do Forno, Rua do Lagar, Rua da Barroca, Ruas dos Olivais, Rua da Igreja… Constatei isso ao percorrê-las:
Casal da Serra
«A aldeia era uma rua inclinada de poente para nascente. Semelhava uma cobra rabiscada por mão de criança. Dela se separam algumas ruelas. Em maior número para norte. Para Sul apenas duas, porque o declive era abismal…» (Albano de Matos, em “A casa Grande”).
Esta rua chama-se agora Rua da Fonte. Registos antigos dizem que já se chamou Rua do Forno, por referência a um forno, propriedade da Casa Grande, gente rica, dona de quase todas as terras ali à roda. O forno era particular, mas, em alguns dias, estava ao serviço da população.
Dela, sobem agora a Rua do Forno, a Rua da Capela, a Rua da Barreira, a Rua da Barragem e a Rua do Lagar.
De todas, a Rua da Lagariça, também para norte, é a que melhor testemunha a presença humana, desde há muito tempo, naquele lugar. As lagariças eram pequenos lagares escavados na rocha, onde se espremiam as uvas e fazia o vinho de forma bastante simples. Terão existido muitas na região da Beira Baixa. Algumas desapareceram, mas as que restam são consideradas pontos de interesse para os locais onde se situam. A do Casal da Serra foi coberta por uma camada de cimento…
Para Sul, correm a Rua da Ribeira, a Rua da Graça e a Rua Da Eira.
Neste conjunto de casas, a construção mais pequena, ao centro, terá sido a primeira habitação da família Simão Candeias. Foi ali que, mais tarde, funcionou também a primeira escola do Casal da Serra.
A eira que dá nome à rua ainda existe, à direita das casas, e está capaz de receber uma malha. Assim haja trigo, centeio e cevada, e braços fortes para levantar o mangual.
Paradanta
A origem do nome da povoação - pedra de anta, de acordo com informação do José Teodoro - sugere que o lugar será habitado desde há muito. Pouco mais que a Rua Principal, empoleirada na crista de uma elevação que corre no vale, de norte para sul. Meio escondida, surpreende quem por lá passa.
Nasceram-lhe outras duas, pequeninas, quase ao fundo: a Rua da Tapada, para oeste, e a Rua da Fonte, para leste.
Até há relativamente poucos anos era esta fonte que abastecia a povoação. A água é tão boa, que mesmo quem já não mora na terra ainda lá vai bebê-la e levá-la para casa. O local, junto duma cascata na ribeira, vale uma visita, pela frescura da água e pela beleza e tranquilidade do lugar.
Vale de Figueiras
Conta-se que o primeiro habitante do Vale de Figueiras veio desterrado de longe por ter matado um pinto de uma mulher rica e avarenta. Já lá irão muitos anos, mas há quem afirme que ainda existem vestígios da casa onde viveu, perto da ribeira. Verdade ou não, as ruínas de algumas habitações e a arquitetura de outras que ainda se aguentam de pé, falam bem da antiguidade do Lugar. Infelizmente falam também do despovoamento.
A justificar o nome da povoação estará o facto de ter nascido no vale da ribeira, num local onde cresceriam algumas figueiras. Trepou depois, encosta acima, como um presépio nos postais de natal; primeiro numa das margens, depois ao longo da outra (talvez nas duas ao mesmo tempo…).
Para além da Rua da Escola, a Rua da Capela, a Rua do Terreiro e a Rua da Ponte, passamos também pela Rua da Várzea, a Rua da Barroca e a Rua do Forno. Esta, que sobe a pique desde a ribeira até ao cimo do povo, já se chamou Rua da Eira, por, quase lá no topo, ter existido uma eira comunitária. O local está agora calcetado.
Pereiros
É também uma Rua Central, a mais antiga, por onde passavam os moradores do Mourelo ou do Violeiro quando vinham tratar das vidas a São Vicente. Corre o povo quase de Norte para Sul e nela nascem outras mais pequenas para ambos os lados: a Rua da Ribeira, a Rua do Forno, a Rua das Lameiras, a Rua do Barro, a Rua da Laje… todas a provocar a imaginação e a pedir que se contem as histórias de quem por lá andou.
De todas as ruas e recantos dos Pereiros o que mais me encantou foi o Pátio das Cancelas. Não encontrei quem me desse a razão deste nome, mas não custa imaginar que, em tempos passados, fechariam as entradas da povoação com cancelas para protegerem o gado que dormia nas lojas e currais, junto das casas, dos ataques dos lobos esfomeados. Era assim em muitas aldeias isoladas.
Foi numa destas casas, agora só paredes que mal se aguentam de pé, que funcionou a escola até aos anos 60 do século passado. Dizem que era uma sala acanhada, cheia de crianças sempre ansiosas pelo toque da campainha. Que animação a daquele Pátio na hora do recreio!
Esta casa, quase de brinquedo, é um exemplo de como se podem aproveitar estas construções antigas para passar uns dias a descansar. Evita-se a derrocada e as terras ficam mais lindas.
(Continua)
M. L. Ferreira
2 comentários:
Um périplo interessante, esse das aldeias, à procura das ruas e das origens de terras e gentes! O que mais impressiona é esta desertificação que arranca as pessoas às suas terras, o abandono que dói, em nome da civilização! Bem sei que o homem deve tratar da vida, melhorar as condições materiais, mas talvez pudesse fazê-lo onde nasceu. Por que é que quase todos nós tivemos que sair do Interior? Porque a maioria não tinha solução. Tenho reparado que depois da criação da Universidade da Covilhã, os casos, mesmo a nível da medicina, continuam a ir para Coimbra. Por isso há quem continue a falar tanto das assimetrias do território nacional. Mas que dá dó, isso dá!
Abraços, hã!
JB
O Pátio das Cancelas, nos Pereiros, lembra-me uma povoação da Beira Alta, por onde passava o gado de transumância da vertente norte da Estrela.
A terra tinha só uma rua, com cancelas nas pontas. O gado entrava e fechavam-se as duas cancelas, ficando os pastores livres por toda a noite.
Sendo os Pereiros o local de passagem de quem vinha do Mourelo e do Violeiro, não é de todo impossível que este pátio tivesse uma função idêntica.
Também na Figueira, aldeia de Proença-a-Nova com um bom restaurante, existem cancelas que fecham as ruinhas estreitas, impedindo a saída de galinhas e cabras e a entrada de predadores (raposas...). Penso que a Libânia já aqui publicou fotos destas.
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