Conduzo por entre por entre pinheiros e carvalhos. Penso na nossa Teodósia da Paixão, que por ali passou, como eu agora passo. Encavalitada num burrito, talvez acompanhada pelo pai ou por homem de confiança da família. Mas também lhe poderia ter acontecido como ao Leonardo Nunes, um homem da sua terra que partira com uns padres jesuítas de passagem por São Vicente.
A torre do castelo do Sabugal ergue-se majestosa, mas eu
passo sem parar e sigo em direção à fronteira, no sentido de Vilar Formoso.
Agora quase só carvalhais e os campos muito mais arborizados do que eu os
imaginava, áridos como o planalto da Guarda.
A placa na estrada anuncia NAVE e eu surpreendo-me com a
pequenez do lugar. Julgava-a grande na minha adolescência, pois os meus colegas
do seminário tanto falavam dela. Afinal, grande é Alfaiates, que avisto lá mais
ao longe e que identifico pelo mapa mental que fiz antes da viagem.
Tenho de parar na NAVE, aos anos que quero vir aqui! Pergunto
a uma senhora pela capela do Santo Cristo e ela explica-me o caminho. Digo-lhe
que sou de São Vicente da Beira, cuja devoção principal é ao Santo Cristo,
porque uma senhora da minha terra viveu no convento que existia junto à capela
e quando voltou transmitiu às pessoas a adoração a Cristo. A senhora acena com
um sorriso embevecido e eu vou procurar a capela. Viro à direita e perco-me num
labirinto de ruas curtas e ruelas estreitas e tortas. Surpreendem-me as placas,
com os nomes das ruas a preto em fundo vermelho vivo. Volto a avistar árvores e
hortas e lá está ela, a resplandecer de brancura. A placa da cruz na rua
confirma: CAPELA DO SANTO CRISTO.
Capela ao Santo Cristo do convento de Nossa Senhora do Loreto das religiosas franciscanas, na Nave, Sabugal, onde viveu Teodósia da Paixão
Então foi aqui que tudo começou, nesta capela e num convento
anexo do qual nada resta.
Pinharanda Gomes, nome maior da historiografia da diocese da
Guarda, escreveu no seu livro História da Diocese da Guarda:
«Teodósia da Paixão ou Teodósia Vaz, fora para Almeida ida da
Nave, entre 1556 e 1564, e decidiu fixar-se em S. Vicente da Beira onde, em
1572, já vivia em comunidade com outras religiosas. Sór Teodósia vivia o mais
pobremente possível num tugúrio da vila, abrindo, apesar de tudo, uma
enfermaria.»
O convento da Nave era devoto a Nossa Senhora do Loreto e a
capela do Santo Cristo fazia parte dele. As religiosas abandonaram-no, devido
às frequentes incursões castelhanas, e foram para Almeida, uma fortaleza que
lhes garantia mais segurança.
Igreja Matriz de Almeida (tirada da net)
Do convento de Almeida, também a Nossa Senhora do Loreto, resta
atualmente o templo que é hoje a Igreja Matriz. E também o nome da porta sul da
fortaleza, a Porta de São Francisco, porque o convento das religiosas
franciscanas se situava nas imediações.
Mas voltemos a Teodósia da Paixão. Faleceu em 1577, mas antes
deslocou-se a Lisboa para obter da rainha D. Catarina, avó do futuro rei D.
Sebastião, a licença para fundar um convento em S. Vicente da Beira. Como D.
Catarina deixou de ser regente em 1562, é possível que Teodósia da Paixão tenha
regressado à sua terra logo que as religiosas de mudaram para Almeida e
imediatamente tenha ido a Lisboa pedir autorização régia para a criação de um
convento franciscano em São Vicente da Beira, do qual foi a primeira abadessa.
Pinho Leal (em Portugal Antigo e Moderno) escreveu que Maria da
Cruz, outra abadessa do convento, «Mandou fazer uma imagem de Cristo com a cruz
às costas, ofereceu-a aos moradores da Vila, para a procissão dos Passos, e
obteve do Romano Pontífice [o papa] muitas indulgências para todos os fiéis que
assistissem à mencionada procissão.»
Essa imagem de Cristo com a Cruz encontrava-se nos Claustros
aquando da extinção do convento e foi registada no inventário de 1835-36, como
«imagem de Nosso Senhor dos Aflitos com a cruz às costas». É certamente a
imagem do Senhor dos Passos que se encontra na Igreja da Misericórdia e sai em
procissão na Semana Santa.
Em 1758, já a Igreja da Misericórdia se tornara no centro do
culto ao Santo Cristo. As Memórias Paroquiais desse ano referem que «Na
capela-mor da dita Misericórdia, em uma tribuna de entalhado dourado, está
colocada uma devotíssima e milagrosa imagem de Cristo Crucificado, a quem
recorrem todos os moradores desta vila nas suas aflições, e acham os ditos
ajuda e alívio, e tem dado lugar a conhecer os inumeráveis milagres todos os
que recorrem ao seu patrocínio. Concorrem ao Senhor não só os moradores desta
vila, mas das terras circunvizinhas muita gente de romagem.» Quanto à data da
romagem, o nosso vigário respondeu que «há frequência de gente de romagem em
todo o ano ao Santo Cristo.»
Igreja da Misericórdia de São Vicente da Beira, aquando do lançamento do livro Dos Enxidros aos Casais (da net - Diário Digital)
Assim, da pequena capela do Santo Cristo do convento de Nossa
Senhora do Loreto, da Nave, Sabugal, as religiosas franciscanas trouxeram a
devoção ao Santo Cristo para o seu convento de São Vicente da Beira, devoção que
passaram à população da Vila, através da irmandade da Misericórdia, cuja igreja
se tornou o centro do culto ao Santo Cristo.
José Teodoro Prata
5 comentários:
Desde que o meu amigo, o padre Manuel Botelho, me ofereceu o livro «O Foral Leonês de Alfaiates», que fazer esse roteiro é um dos meus projetos de viagem; ainda por cima aqui tão perto… Acho que este artigo reacendeu a chama.
A propósito do nosso convento, ando há tempos com um livro em mãos (Miscellanea, de Miguel Leitão de Andrada, publicado pela primeira vez em 1629) que, entre muitos outros assuntos, fala da fundação do mosteiro de Figueiró dos Vinhos, em 1549. A certa altura, a propósito da qualidade das freiras ali formadas diz o seguinte: «…que sendo mosteiro tão moderno, mandão delle reformar outros. E ao de Santa Anna de Lisboa foi daqui huma abbadeça que lá o foi onze annos, e ao de São Vicente da Beira, e a outras partes.» Que pena não referir nomes nem datas ou cargos, mas, quem sabe, tenha vindo de Figueiró dos Vinhos uma das primeiras abadessas do nosso Convento.
A quem estranhar que Alfaiates tenha um foral dado pelo reino de Leão, há que recordar que toda a margem direita do rio Côa, onde Alfaiates, Almeida... de situam, era território do reino de Leão e só se tornou português após a Reconquista, no tempo de grande D. Dinis, que definiu as atuais fronteiras de Portugal, através de uma troca de terras com Leão, pelo tratado de Alcanises, em 1297.
O nosso convento teve algumas abadessas que ficaram famosas. O texto de Pinharanda Gomes, que citei, refere que «Ainda no século XVI, aderiu à comunidade uma senhora inglesa, que tomou o nome de Sór Joana Baptista, pessoa culta e letrada. No fim do século XVI, a casa dispunha de cómodos para nove religiosas, das quais se distinguiram Sór Maria da Visitação, que chegou a jejuar continuamente e se coroava de espinhos na noite de Quinta para Sexta-feira Santa, e Maria da Ressurreição, escritora.»
Existiu ainda a abadessa Maria da Cruz, que criou a nossa Procissão dos Passos. E dele saiu, em 1753, D. Joana Francisca de Sousa Refoios, para dirigir o recolhimento de Santa Maria Magdalena, no bairro do Castelo, em C. Branco, onde hoje de situa a parte mais antiga do Museu Cargaleiro e quer se estendia pela casa onde vive o nosso José Manuel dos Santos.
Quero ainda acrescentar que foi Pinharanda Gomes quem defendeu que foram Teodósia da Paixão e as outras religiosas que com ela vieram para São Vicente quem aqui instituiu o culto ao Santo Cristo.
Pinharanda Gomes terá sido colega de Hipólito Raposo no Seminário Maior da Guarda, nos inícios do século XX, pois na net existem textos dele em que conta o conflito que o nosso conterrâneo teve com os superiores do seminário e que ditaram a sua saída.
Muita informação! Estou a aprender muito convosco neste post, sobre o culto do Senhor Santo Cristo.
Estas serão as origens históricas e que até estão bastante bem documentadas. Eu sempre soube mais da parte lendária, nomeadamente, da praga dos gafanhotos que invadiu a região e da qual o Senhor Santo Cristo nos salvou, como dizem. Fenómeno do qual terá nascido, pelos vistos, não o culto, mas mais concretamente, a Festa de Verão em honra do mesmo Santo, cujo nome tem em S. Vicente da Beira um cunho muito especial.
Pois, era notório, noutros tempos de muita gente por estas paragens do Interior, a profunda devoção ao Senhor Santo Cristo, através das grandes manifestações de pessoas quer religiosas, quer profanas. Quem não se lembra das intermináveis procissões, missas cantadas, sermões, etc? E quem não se recorda das infindáveis alvoradas de fogo na manhã de Segunda Feira de Festa? Parecia desproporcionado todo aqueles foguetório, mas essa era a forma da homenagem naquele tempo!
E tudo isso já são só quase memórias para as nossas gerações! Porque o tempo, como já escrevi pela boca do João "Jerolme", "o tempo, esse ladrão, vai-nos roubando lentamente a vida"!
Abraços, hã!
J. Barroso
A origem da festa ao Santo Cristo é desconhecida (a data), pois faltam livros de atas da Câmara e da Misericórdia.
Certo é que em 1823 ainda não havia festa anual, pois uma lista das atividades da Misericórdia desse ano, enviada ao Provedor da Comarca de Castelo Branco (representante regional do poder central), não regista qualquer festa, mas o Domingo Ilustrado de 1897 já a refere.
Nos dias 21 e 22 de outubro de 1762, a Vila de S. Vicente da beira esteve ocupada por uma força militar franco-espanhola (episódio da Guerra dos Sete Anos): houve dois mortos, incendiaram a casa da Câmara e muitas habitações e levaram preso o Pe. José Antunes do Casal da Serra, capelão de Santiago da Partida, e certamente outras pessoas (na Póvoa de Rio de Moinhos levaram 8 pessoas das mais importantes).
No ano de 1762, faleceram na freguesia 49 pessoas (a média anual era de 21 óbitos), tendo morrido 31 pessoas entre 21 de agosto e 30 de novembro. Neste período terá ocorrido uma epidemia que matou tão elevado número de pessoas, a qual coincidiu com o ataque castelhano.
As atas camarárias não referem uma praga de gafanhotos por esses anos, mas em maio de 1781 a Câmara recebeu um ofício da Provedoria de Castelo Branco, mandando que se tomassem providêcnias para evitar uma praga de gafanhotos que já afligia outras terras. E mandava ainda que se participasse ao Provedor da Misericórdia para que se rezassem novenas e preces na Igreja da Misericórdia, para que a praga de gafanhotos não atacasse a região. Será esta a origem da lenda de os gafanhotos terem vindo morrer na parede do altar-mor da Misericõrdia, por detrás da cruz com Cristo.
E terá sido esta tríplice ocorrência (guerra, peste e fome-praga de gafanhotos evitada) que reforçou a devoção ao Santo Cristo e mais tarde originou a criação dea sua festa anual.
Avisa-me o JMT de que o Pinharanda Gomes não é do tempo do Hipólito Raposo, mas bastante mais novo. É verdade, esqueci-me de perguntar ao sr. Google e ainda por cima esqueci-me de que ele enviou uma mensagem ao casal Salvado, a felicitar-me pelo meu artigo Instantes Saborosos, publicado nos Estudos de Castelo Branco, n.º 6, Nova Série, em 2007.
O estudo que ele fez da polémica que envolveu o Hipólito Raposo, no Seminário Maior da Guarda, é tão pormenorizado que, quando o li, ficou-me na cabeça que o Pinharanda Gomes vivera tudo aquilo.
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