A relação do povo simples com os padres sempre foi uma
relação dual, de respeito e escárnio. Respeito/reverência porque eram os
representantes de Deus, escárnio/crítica pois, com muitas exceções, que sempre existiram,
o clero integrava o pequeno grupo (2%) dos privilegiados (clero e nobreza), a elite
que detinha o poder político, económico, social, cultural e, no caso do clero, também
religioso.
Isso está presente na literatura popular como a que
integra a coletânea publicada na Etnografia de S. Vicente da Beira, pela Isabel
Teodoro.
Das recolhas de Leite de Vasconcelos temos os “Dez mandamentos
dos padres”:
1.
Amar a Deus por dinheiro.
2.
Enganar todo o mundo.
3.
Comer boa carne de carneiro.
4.
Jejuar depois de farto.
5.
Beber do branco e do tinto.
6.
Beijar as meninas bonitas todas a eito.
7.
Dar a bula por empréstimo.
8.
…nem da cabeça, nem do rabo.
9.
Dormir quando tem sono.
10.Não
cobiçar as coisas alheias, nem precisar dos outros, depois das barrigas cheias.
Estes 10
mandamentos encerram-se em dois:
Deus dê aos padres, o que deu aos bois.
E que dizer do que o povo imaginava que os padres pensavam
nos funerais?
Se é rico e tem
dinheiro,
Faz-se-lhe o
ofício inteiro;
Se é pobre e não
tem nada,
Faz-se-lhe uma
trapalhada.
Passo lento,
passo lento,
Que este é rico e
paga a tempo.
Enrola, enrola,
Deita o defunto à
cova.
Se é viúva fica
bem,
Não é para mais
ninguém.
Quanto a doações/ofertas/pagamentos...
Se é para obras
de castanho,
Venha a nós o
vosso ganho.
E por alma do
defunto,
Que venha mais um
presunto.
O
meu pai (António Teodoro) era um Teodoro, e isto só por si implica(va) ser uma
pessoa muito religiosa e respeitadora das convenções sociais. Mas também era um
Jerónimo, gente com açougues e comércio de gados, habituada ao contacto com
outras terras e diversas gentes.
Quando
os filhos eram pequenos, a nossa mãe foi operada em Castelo Branco e ele teve
de ser pai e mãe por uns dias e isso implicava preocupar-se em transmitir-nos a
religião. Rezava connosco todos os dias na cama, antes de adormecermos, bastante
mais do que a minha mãe nos impunha! Mas fora desses dias, a religião era
tarefa da minha mãe. Por isso ele, esporadicamente, aventurava-se em brincadeiras
que refletiam o ancestral humor do povo com todas as coisas, mesmo com as de
Deus.
Experimentem
dizer esta lengalenga fazendo o sinal da cruz na testa, na boca, no peito e finalmente
abrangendo todo esse espaço:
Pelo sinal,
Do Ingarnal.
Comi toucinho,
Fez-me mal.
Comi farinheira,
Fez-me caganeira.
Alcatruz,
Ámen Jesus.
Ou
este sermão que deve ser dito imitando o padre Leal das Minas da Panasqueira
que vinha cá pregar na Semana Santa. Não sei como é que a minha irmã o
conseguiu, pois ele raramente o dizia.
Prego o meu
sermão,
Carriça dum cão.
Sr. João Coelho,
Com seu barrete
vermelho,
Sua espada de cana
na mão,
Pra matar a
garrana,
A garrana deu um
berro,
Toda a gente
atormentou,
Só uma velhinha
ficou,
Embrulhada nuns
farrapinhos,
Atolada num
chocalho de merda até ao pescoço.
Meus irmãos,
Cortai os dedos e
olhai prás mãos!
Parafraseando Picasso, ao contemplar as pinturas rupestres da gruta de Lascaux: o Gil Vicente, o Bocage e o Herman José não inventaram nada.
José Teodoro Prata
5 comentários:
Ainda não tenho esse livro. Tenho de ver onde o posso adquirir. O posto dos correios de SVB tem lá o livro?
O livro está à venda apenas na Biblioteca Municial, em Castelo Branco. Talvez venha a estar em São Vicente, mas por enquanto, não.
Essas orações/lengalengas do nosso pai foram registadas era eu ainda muito nova, pois mais tarde já não as contava.
A religião fazia parte da vida das pessoas, talvez por isso mesmo fosse ainda mais apetecível poder brincar (e dizer umas verdades) com assunto tão sério... O proibidop é mais apetecido.
Como disse Giacometti, o sentido de humor varia ao longo dos tempos, o que não muda é a vontade de brincar com o proibido, com os poderes intituídos. Agora é o Ricardo Araújo Pereira, que "goza com quem trabalha", não poupando os poderosos, juízes ou políticos.
Maria Isabel Teodoro
Que sorte a nossa que a Isabel Teodoro tenha ganhado gosto por estes aspetos da cultura da nossa terra e se tenha aventurado numa pesquisa tão exaustiva e variada como a que nos apresentou neste livro.
Lê-se quase sem pestanejar, com o prazer das viagens (neste caso ao passado), porque as memórias dela, ou das pessoas que lhas contaram, são quase as mesmas de todos nós.
Ficamos à espera do próximo livro…
Já tentei vários comentários, mas, como se sabe, o meu telemóvel é da época dos Flintstones. A coisa torna-se difícil... e isso obriga-me a ser pouco mais que telegráfico.
Dou apenas dois exemplos com algum humor popular da literatura portuguesa, sobre a condição social do clero (cito de memória).
Num deles, "Manhã Submersa" de Vergílio Ferreira, o irmão mais velho diz a António Lopes, protagonista do livro, um seminarista, quando ele vai de férias à aldeia:
"Que raio de vida havias de escolher; nem uma mulher podes arranjar para tratar de ti!"
No "Malhadinhas" ( e não só), Aquilino brinca várias vezes com a condição de padre e dos arranjinhos deles com as paroquianas (ele, que creio que foi filho de padre), dizendo: "Danados e com unhas para a vida não há como filhos de padre!"
E quase sempre manifesta o mesmo autor uma compreensível complacência para com estes padres, dada a sua difícil situação de celibatários. Tudo, é claro, com imenso humor, mas sem esquecer uma boa dose de escárnio. Muito bom!
Parece-me que, afinal, não fui lá muito telegráfico...
Abraços, hã!
J. Barroso
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